Uma entrevista do presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, do Partido Progressista Popular, vinculado aos chamados “indo-ingleses” (descendentes de indianos e ingleses, cerca de 40% da população do país), recebeu elogios de parte dos setores nacionalistas e progressistas do Brasil. A boa impressão está ligada ao discurso assertivo de Ali, que confrontou os jornalistas britânicos com uma intervenção de hostes nacionalistas. Em síntese, o mandatário refutou as “lições” de preservação do meio-ambiente dos jornalistas, apresentando suas decisões relativas à exploração de petróleo no país como decisões soberanas. De fato, os latino-americanos não necessitam de “lições” das potências coloniais, que dilapidaram o meio ambiente não apenas em seus territórios, mas em todo o globo. Mas o acerto do presidente Ali termina aí. O projeto de exploração petrolífera da Guiana não tem qualquer caráter nacionalista.
A primeira questão a ser destacada é a dimensão da influência da Exxon Mobil na Guiana, hoje o principal ator político do país, capaz de influir diretamente nas decisões do governo do país. Conforme a reportagem de Werther Sandoval, o bloco Staebroek, localizado na região do Essequibo, é explorado pela filial da Exxon Mobil Esso Explotation and Production Guyana Limited (EEPGL), pela estadunidense Hess Corporation e também pela chinesa China National Offshore Corporation (CNOOC), que é a terceira maior companhia petrolífera do país asiático.
Nessa região, as empresas encontraram jazidas de mais de 10 bilhões de barris de petróleo. A repartição da extração é de 25% para a CNOOC, 30% para a Hess e 45% para o bloco vinculado à Exxon. O nível de comprometimento do governo da Guiana com a petroleiras tornam quase nulas as possibilidades de revisão dessa participação das grandes petrolíferas na exploração local.
É claro que o país sul-americano recebe parte dos rendimentos, o que explica seu crescimento econômico nos últimos anos. Conforme reportagem da BBC, entre 2019 e 2023, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estimou que o PIB do país saiu de 5,17 bilhões de dólares (R$ 27,7 bilhões) para 14,7 bilhões de dólares (R$ 68,2 bilhões), um salto de 184%. Ainda, a matéria informa que em 2022 o crescimento do PIB foi de 62%.
A repartição dessa riqueza, no entanto, não atende equitativamente toda a população do país. Concentra-se entre os grandes grupos empresariais e políticos “de elite” responsáveis pela gestão dos contratos. Esses grupos, destaque-se, são majoritariamente pertencentes a um setor específico da população do país, muito marcadas por divisões étnicas. Em uma caracterização rápida, pode-se dividir a população guianense em três grandes grupos. Uma parte da população compõe-se de descendentes de indianos imigrados em tempos de domínio britânico na Índia. Parte desse grupo forma o setor mais abastado do povo, entre empresários donos de terras onde se produz açúcar, industriais, donos de áreas de mineração, comércio, etc. Esse é majoritariamente também o eleitorado do partido do atual presidente. Outra parte da população é formada pelos descendentes de africanos escravizados, trazidos pelos ingleses antes dos indianos, para o trabalho rural. Por fim, um grande grupo de “ameríndios”, assim chamados na Guiana para que não se confundam com os descentes de indianos. Após a independência do Reino Unido, os afro-guianenses consolidaram-se na zona costeira e nas zonas urbanas, e os indo-guianenses tornaram-se inicialmente mais dedicados à agricultura. Consolidou-se também uma importante colônia de população proveniente da China, dedicada ao comércio. A mistura entre estes grupos foi relativamente baixa. Os chamados “ameríndios” foram marginalizados da vida política, econômica, social e cultural. Representam 10% da população e a maioria vive no Território de Essequibo. Mais ao sul, na área de Rupununi, a presença histórica venezuelana é profunda e muitos de seus habitantes têm cidadania venezuelana. Após a sangrenta repressão da rebelião indígena ocorrida em 1969, a chamada “Rebelião Rupununi” – liderada por indígenas e desencadeada por diversos motivos, entre eles a questão não resolvida da propriedade da terra e, ainda, um sentimento de independência em relação ao governo da Guiana – muitos deles estabeleceram-se no estado de Bolívar, na Venezuela. As principais etnias que compõem esse grupo são a Wapixana e Macuxi. Historicamente, os indígenas ficaram marginalizados. Na época da independência do Reino Unido, os grupos que lideravam politicamente a Guiana prometeram aos ameríndios reconhecer seus direitos territoriais, o que não aconteceu. Atualmente, as terras por eles ocupadas tradicionalmente vêm sendo tomadas por garimpeiros e fazendeiros. Além disso, a expansão da exploração petrolífera vem ocorrendo nas áreas tradicionalmente ocupadas pelos “ameríndios”, sem que a vultosa riqueza acumulada tenha qualquer impacto positivo em suas condições de vida.
Para além da questão do controle das transnacionais do petróleo sobre as decisões governamentais, é importante destacar que, ao contrário do Brasil, a Guiana não dispõe de nenhum mecanismo de regulação e licenciamento ambiental. A exploração das áreas petrolíferas, tal como já acontecia com a exploração das jazidas de ouro, ocorre sem qualquer embaraço, com grande impactos nos rios que banham a região, e têm influência direta nos ecossistemas dos países vizinhos e também nos oceanos. Para completar, o território onde ocorre a exploração desenfreada de ouro é o território do Essequibo, região reivindicada pela Venezuela.
O território do Essequibo tem uma extensão de aproximadamente 149.500km2, dos quais cerca de 73% localizam-se sobre a bacia hidrográfica do Essequibo, limite histórico natural entre a Venezuela e a atual Guiana, antiga colônia britânica, independente apenas em 1961. A bacia do Essequibo, assim como a do Rio Orinoco, com a qual confronta-se na região do delta, deságua no Oceano Atlântico e segue em direção ao mar do caribe. Ao Norte/Nordeste, a região do Alto Essequibo encontra-se com a serra Pacaraima, uma “cordilheira” que ocupa grande parte do território do Essequibo – onde encontra-se a maior parte da área de floresta –, que faz fronteira com o Brasil, no Estado de Roraima. A área era já conhecida pelas jazidas minerais, com cerca de 1.499 polígonos de atividade mineira na região. A descoberta do petróleo levou as grandes empresas petrolíferas para essa mesma área, disputada com a Venezuela e com ecossistemas extremamente sensíveis.
Em 1966 Venezuela, Reino Unido e Guiana assinaram o Acordo de Genebra, em que concordavam buscar uma solução satisfatória para as contestações apresentadas pela Venezuela ao documento anterior, assinado em Paris, que cedia o Essequibo à Inglaterra. A base da reivindicação da Venezuela sobre o território de Essequibo é o princípio do ¨uti possidetis juris¨, amplamente utilizado nas disputas territoriais na América do Sul. Por esse princípio, a Venezuela continuaria no exercício dos direitos territoriais que eram exercidos pela Capitania Geral da Venezuela, no tempo da Monarquia Espanhola, antes da transformação política iniciada em 1811.
A Guiana, no entanto, não cumpre o acordado em Genebra. Dentre os pontos acordados, a Guiana deveria abster-se de usos do território que pudessem causar prejuízos ao lado venezuelano. A exploração de ouro na região e a devastação das florestas estão em pleno curso, gerando um impacto insustentável nos ecossistemas da Zona de Recuperação. O Artigo 5 do Acordo de Genebra prevê também que não poderia haver renúncia ou diminuição da soberania sobre o território até que a disputa se resolvesse. A Guiana não poderia realizar concessões mineiras ou florestais, nem desenvolver projetos que afetassem os recursos naturais desse território. Apesar dos compromissos assumidos pela Guiana no âmbito do Acordo de Genebra para alcançar uma solução prática para a disputa fronteiriça com a Venezuela sobre o Território de Essequibo, a Guiana tem explorado de forma insustentável o território disputado, sem sequer sinalizar qualquer medida de regulação ambiental.
Ao mesmo tempo em que o governo sediado em Georgetown desenvolve uma política extrativista agressiva, que também viola os direitos territoriais ancestrais dos povos indígenas, elimina juntamente com as florestas e os leitos dos rios uma imensa riqueza em forma de biodiversidade e também atua contra os acordos internacionais sobre a questão climática.
Em confrontação às investidas da Venezuela para retomar o debate e também, de forma mais tangencial, do próprio Brasil, que tem seus interesses diretamente afetados pela degradação ambiental na região, o presidente Ali tem respondido com sinalizações positivas à recepção de tropas militares inglesas e estadunidenses. Quanto aos EUA, aliás, Georgetown tem feito acenos positivos diante da proposta de abrir (mais uma!) base militar no coração da Amazônia.
Pelo visto, o discurso anticolonial de Ali só se dirige aos ambientalistas. A força dos conglomerados do petróleo, da mineração e das armas estadunidenses não parecem ser vistas por ele como uma ameaça à soberania do seu país. Se as coisas seguirem nessa toada, Venezuela e Brasil terão, em breve, um posto avançado do imperialismo estadunidense cravado na Amazônia.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.