Claro que não existe um gênero literário com o recorte “romances de esquerda”. Em várias escolas e estilos, porém, podemos encontrar, na literatura, obras que retratam os grandes dilemas e lutas sociais de nosso tempo.
Um número expressivo de autores e autoras dedicou sua arte e talento para dar vida a livros que expressassem as causas populares.
Não estou falando de biografias ou ensaios, importante destacar, mas de ficção e fantasia, da imaginação a serviço da rebeldia.
Resolvi listar, assim, quinze romances dessa tradição. Claro que será uma relação polêmica, cada leitor certamente tem suas próprias preferências. Creio, no entanto, que essas sugestões podem ser um ponto de partida para quem quiser conhecer melhor a prosa de barricada.
Critérios
Antes de mais nada, irei explicar meus critérios.
O primeiro deles é que os autores tenham alcance universal, à sua época ou depois. Ou seja, que tenham sido ou sejam referências tanto em seus países, quanto no resto do mundo. Isso pode ser mensurado, por exemplo, no número de traduções e na vendagem de seus livros.
O segundo critério era o de buscar não só representatividade literária (gênero e raça), mas também origem regional. Não se trata de uma tarefa simples: a literatura é atividade erudita, produto de conhecimentos historicamente monopolizados por colonizadores brancos, e a própria ficção de esquerda frequentemente brota de descendentes dessas elites, com raras exceções.
O terceiro critério foi respeitar uma certa linha histórica, a partir do século 19, quando efetivamente as lutas sociais foram incorporadas à literatura.
O quarto critério foi a exclusão de autores vivos, cuja obra ainda não está encerrada, embora possamos identificar que a saga da literatura de esquerda siga viva e pulsante.
Por fim, quero salientar que adotei uma ordem cronológica, sem juízo de preferência ou qualidade, entre os quinze romances que estou sugerindo.
Abaixo, a lista completa dos quinze romances de esquerda. Clique nos títulos para ler os resumos:
1. Norte e Sul, de Elizabeth Gaskell
2. Os Miseráveis, de Victor Hugo
6. Assim Foi Temperado o Aço, de Nikolay Ostrovsky
7. Terra e sangue, de Mikhail Sholokhov
8. Capitães da Areia, de Jorge Amado
9. As Vinhas da Ira, de John Steinbeck
10. Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway
11. Os Donos do Orvalho, de Jacques Roumain
12. Sol sobre o Rio Sangkan, de Ding Ling
13. Os Mortos Permanecem Jovens, de Anna Seghers
15. Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez
1. Norte e Sul, de Elizabeth Gaskell
A autora, nascida na Grã-Bretanha em 1810, para muitos é a matriarca da literatura social. Por isso, iniciamos nossa lista com uma de suas obras. Norte e Sul, publicado em 1854, se passa em uma cidade industrial fictícia, no norte da Inglaterra, possivelmente inspirada em Manchester, e tem como personagem central uma jovem mulher, Margaret Hale. Ela testemunha o cenário brutal da Revolução Industrial, com os crescentes conflitos entre trabalhadores e empresários. Aos poucos, a protagonista se aproxima do movimento operário e estabelece uma relação de conflito aberto com John Thornton, dono de uma tecelagem, que lhe devota um amor doentio.
2. Os Miseráveis, de Victor Hugo
Publicado em 1862, é um dos livros mais vendidos da história, com inúmeras adaptações, até para quadrinhos. Conta a história de um condenado, Jean Valjean, da restauração monárquica, após a derrota de Napoleão na Batalha de Waterloo, até os anos subsequentes à Revolução de 1830, quando a burguesia liberal – com o apoio das massas populares – coloca fim ao novo ciclo de absolutismo real. Entre 1815 e 1832, Valjean era implacavelmente perseguido pelo inspetor Javert. Ascende ao trono, então, Luís Filipe I, da dinastia dos Orleans, em substituição aos Bourbons, que tinham governado de 1815 a 1830. Em junho de 1832, quando chega ao final a saga d’Os Miseráveis, ocorre uma revolta republicana em Paris, que uniria representantes da pequena-burguesia e massas trabalhadoras contra a coroa, em uma insurreição brutalmente reprimida. Esse é o pano de fundo desse incrível romance histórico, uma alegoria do permanente conflito entre o Estado repressor, alinhado às castas superiores, e os pobres da cidade e do campo. Certamente um dos maiores clássicos do chamado romantismo francês.
3. Germinal, de Emile Zola
Lançado em 1885, provavelmente é o mais famoso livro do célebre escritor francês, da escola naturalista, que passou dois meses trabalhando como mineiro na extração de carvão. Viveu com os mineiros, comeu e bebeu nas mesmas tavernas para se familiarizar. Sentiu na carne o trabalho sacrificado que era necessário para escavar o carvão, além da promiscuidade das moradias, o baixo salário e a fome. Acompanhou de perto uma grande greve da categoria. Sua obra conta a história de Etienne, um jovem que vagava na miséria pelo interior francês, até encontrar ocupação na mina de Montsou, uma das mais importantes do país. Aos poucos, o personagem adquire consciência da exploração, se aproxima das ideias socialistas e se transforma em líder grevista, comandando uma revolta de mineiros que enfrentaria as forças de segurança do Estado.
4. A Selva, de Upton Sinclair
O autor é um celebrado jornalista e escritor norte-americano, representante dos chamados “Muckrackers” (caçadores ou arrastadores de lixo), termo utilizado pelo presidente Theodore Roosevelt para identificar quem se empenhava em denunciar as chagas do capitalismo. O romance, escrito em 1906, retrata as brutais condições às quais estavam submetidos os trabalhadores de Chicago, especialmente os imigrantes, nos frigoríficos daquela cidade. O livro teve tal impacto que provocou um movimento por reformas nesse ramo econômico, incluindo a Lei de Inspeção de Carne. Sinclair diria sobre a reação à sua obra: “mirei no coração do público e, por acidente, acertei-o no estômago”.
5. A Mãe, de Máximo Gorki
Escrito em 1907, foi inspirado em acontecimentos reais: a manifestação de jovens trabalhadores no 1º de maio de 1902, violentamente reprimidos pela polícia czarista. Os principais personagens são o jovem Piotr e sua mãe, Anna. O enredo central trata da evolução política e da transformação dessa mulher, a mãe à qual se refere o título, por muitos anos oprimida pelas relações do patriarcado, rumo à participação engajada na luta revolucionária, já em sua idade madura. Máximo Gorki, nascido Aleksei Maksimovitch Piechkóv, integrante do naturalismo russo, é considerado um dos pais da literatura soviética.
6. Assim Foi Temperado o Aço, de Nikolay Ostrovsky
Muitos críticos consideram que esse seria o livro seminal do chamado realismo socialista, impulsionado após o triunfo da Revolução de Outubro, de 1917, na antiga Rússia. A obra, publicada em 1932, relata a vida do protagonista Pavel, da época em que os bolcheviques tomaram o poder até o final da década de 1920. O personagem é castigado pelos acontecimentos históricos, da guerra civil às dificuldades da construção do socialismo, em um retrato das esperanças e dos sacrifícios dos trabalhadores no período pós-revolucionário. Escapa várias vezes da morte, mas sua saúde fica debilitada. Aposentado, converte-se ao trabalho intelectual e jornalístico, embora não tivesse sequer completado o ensino fundamental.
7. Terra e sangue, de Mikhail Sholokhov
O livro, de 1932, relata o processo inicial de coletivização da terra na União Soviética, apontando suas contradições: pequenos proprietários, como Andreiev e Davidov, por exemplo, personagens do livro, doam seus lotes para o Estado e se integram às forças bolcheviques contra latifundiários e camponeses ricos, que resistiam à reforma agrária decidida pelo governo Stálin no final dos anos 20 do século passado. Embora a simpatia do autor pela coletivização seja nítida, a obra expõe as contradições e as dores desse processo decisivo na consolidação do primeiro Estado socialista.
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8. Capitães da Areia, de Jorge Amado
Poderiam ser incluídas várias obras do escritor brasileiro, como o engajado Subterrâneos da Liberdade, a trilogia que narra a resistência ao Estado Novo. Mas Capitães da Areia, publicado em 1937, talvez seja seu livro mais emblemático. Conta as peripécias de adolescentes marginalizados em Salvador, organizados em um grupo cujo nome deu origem ao título. Sob o comando de Pedro Bala, filho de um grevista assassinado, vários personagens das camadas populares se integram à cena, enquanto o personagem central, cada vez mais fascinado pelas histórias do pai sindicalista, transita à militância revolucionária, substituindo a marginalidade pela luta social.
9. As Vinhas da Ira, de John Steinbeck
Trata-se da mais afamada obra do escritor norte-americano, publicada em 1939. O livro conta a história dos Joads, uma família de meeiros pobres, durante a Grande Depressão, entre 1929 e 1934, expulsos da propriedade que ocupavam no Oklahoma. Junto com muitas outras famílias, os Joads migrariam para a Califórnia, em um relato épico que vai desnudando o chamado “sonho americano” e demonstrando o pesadelo no qual o capitalismo, no pré-guerra, havia transformado a vida das classes trabalhadoras dos Estados Unidos.
10. Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway
Considerado pela crítica uma das melhores obras do escritor norte-americano, esse romance foi publicado em 1940. Narra a história de Robert Jordan, um jovem estadunidense integrado ao Batalhão Lincoln das Brigadas Internacionais, que lutavam ao lado dos republicanos contra os nacionalistas de Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). O romance traz comentários desfavoráveis a práticas de ambos lados, rompendo com uma certa divisão moral entre o bem e o mal, sobressaindo uma narrativa complexa sobre a condição humana, especialmente a partir desse professor de espanhol, Jordan, que se torna especialista em explosivos e recebe uma importante missão militar. O próprio Hemingway, aliás, foi voluntário nessa guerra, combatendo pelos republicanos.
11. Os Donos do Orvalho, de Jacques Roumain
O autor, nascido no Haiti, foi um dos principais intelectuais de seu país e fundador do Partido Comunista. O livro, publicado em 1944, conta a história de Manuel, que retorna ao Haiti depois de quinze anos trabalhando nos canaviais de Cuba, de onde regressa com um forte compromisso revolucionário, dedicando-se, em seu retorno, a promover a união e a rebelião dos camponeses haitianos.
Estão muito presentes referências às matrizes africanas da cultura haitiana, ao ponto de alguns críticos considerarem essa obra uma precursora do que seria o realismo mágico.
12. Sol sobre o Rio Sangkan, de Ding Ling
Militante comunista e integrante da Liga de Escritores de Esquerda, essa autora chinesa foi marcante para a literatura de seu país, ainda que tenha sido perseguida durante a Revolução Cultural, nos anos 60, e posteriormente reabilitada na década seguinte. O livro que escolhi foi publicado em 1948. Relata a vida e a luta dos camponeses durante a implementação da reforma agrária. Mistura personagens dos mais distintos grupos sociais – dirigentes comunistas, camponeses pobres, intelectuais, latifundiários – com muita complexidade e riqueza de caracterização, para extrair dessas vivências pessoais um painel de época.
13. Os Mortos Permanecem Jovens, de Anna Seghers
Talvez seja a principal obra da renomada autora alemã. De origem judaica e militante comunista, fugiu para o México durante a 2º Guerra e retornou para viver na Alemanha Oriental. Publicado em 1949, o livro é um fenomenal retrato histórico da Alemanha destroçada pela I Guerra Mundial até o terror do nazismo, da traição social-democrata que sufocou a revolução alemã de 1919 à barbárie hitlerista.
Desde as primeiras páginas, quando relata o assassinato de um jovem comunista por militares, forma-se uma narrativa repleta de personagens complexos, de ambos lados da trincheira, entre os quais oficiais ou suboficiais formados pela antiga política imperial envenenados pelo anticomunismo. Para quem quiser entender a ascensão do nazismo a partir da literatura, certamente essa obra é imprescindível.
14. Espártaco, de Howard Fast
Lançado em 1951, o livro conta a história da revolta de escravos liderada pelo personagem-título em 71 a.C. A obra retrata, além da lendária rebelião, as condições materiais e morais da escravização no Império Romano. Embora possa ser criticado, à luz do presente, por certos preconceitos – por exemplo, a forma pela qual trata a homossexualidade, ao contrário de como era abordado no próprio período histórico do livro -, é inegável que Fast escreveu um dos principais romances históricos do século 20, com uma incrível riqueza de detalhes, dilemas e emoções.
15. Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez
Uma das obras latino-americanas de maior repercussão mundial, foi publicada em 1967. Narra a história da fictícia cidade de Macondo, a partir da ascensão e queda de seus fundadores, a família Buendía. Um clássico do realismo mágico, dramatiza a história da Colômbia através de dois grandes eventos: a Guerra dos Mil Dias (1899-1902), que levaria à separação do Panamá, com apoio dos Estados Unidos, e o massacre dos trabalhadores bananeiros em Ciénaga (1928). São seis os personagens centrais, mas um caleidoscópio de outras figuras vai se formando para compor um dos livros primordiais da história da literatura.