A fome
Uma mulher segura seu filho no colo. Com a outra mão, em gestos rápidos, arruma o lenço na cabeça e estira com esforço o braço para alcançar a ajuda distribuída por um funcionário de algum organismo internacional de ajuda humanitária. A reportagem não esclarece em qual das 34 províncias do Afeganistão isso aconteceu.
São cenas de miséria antes do dia 15 de agosto, quando o Talibã chegou à capital do país, Cabul. Nos 20 anos de ocupação dos Estados Unidos, a situação econômica do país atingiu níveis de pobreza extrema. Quem era o pai daquela criança que a mãe segurava nos braços? Estaria ele vivo? Talvez estivesse em Guantánamo, a prisão de segurança máxima dos Estados Unidos para “os terroristas”?
Guantánamo tornou-se o símbolo exemplar do desrespeito aos Direitos Humanos na contemporaneidade. Nenhum Acordo ou Convenção Internacional foi respeitada pelos Estados Unidos. Não houve processos nem tribunais que assegurassem aos prisioneiros o direito de defesa. No artigo “Detenção Indefinida”, a filósofa Judith Butler[i] se pergunta qual o valor que essas vidas têm para ficarem privadas de direitos legais garantidos nas leis internacionais.
O império estadunidense transforma-se ele mesmo em lei absoluta, em poder soberano instaurado, contraditoriamente, na chamada “maior democracia do mundo”. Depois de 20 anos, ainda há 140 prisioneiros. Onde estavam (e estão) as mães, esposas, irmãs, filhos e filhas desses prisioneiros?
Há muito tempo mulheres ativistas afegãs denunciam a ocupação. A deputada afegã Malila Joya, autora do livro Woman among warlords: the extraordinary story of an Afghan woman (“Mulher entre os senhores da guerra: a extraordinária história de uma mulher afegã”, tradução livre), tem sido enfática em afirmar que a situação das mulheres durante a ocupação não se alterou. Em suas entrevistas e textos, aponta dimensões específicas identificadas como das mulheres, mas o eixo central está na precarização da vida do seu povo. Os homens vão à guerra e as mulheres, muitas já vivendo a viuvez, tornam-se responsáveis por conseguir o alimento para assegurar a sobrevivência da família. Afeganistão, diz ela, é uma mistura de miséria, desemprego, jovens viciados, crianças subnutridas. Seu desejo:
Sem dúvida que devem comparecer ao Tribunal Penal Internacional pelos crimes de guerra que cometeram, todos esses fomentadores de guerra – o criminoso Bush, Obama, o racista e fascista Trump, e agora o Biden, que segue essa política criminosa nojenta. Eles não se preocupam com os desejos do povo afegão ou com o quanto eles estão cansados. (…) Eles empurram o Afeganistão mais para a Idade das Trevas (…) Eles devem ser processados. O mesmo acontece com o Talibã.
Nada foi feito nessas duas décadas de ocupação? Outra vez, cito Malala: “Sem dúvida alguns projetos foram feitos [pelos Estados Unidos e OTAN] para mulheres e meninas afegãs, algumas escolas foram construídas, principalmente nas grandes cidades. Isso para justificar a ocupação, essa guerra criminosa no Afeganistão. Mas ainda agora você vê os casos de estupro, violências domésticas, ataques de ácido, casamentos forçados, autoimolação, espancamentos públicos de mulheres com chibatadas, apedrejamento até a morte”. Além da função-fachada dessas construções, não podemos desprezar a busca de lucros de empresas estadunidenses e de ONGs internacionais, envoltas em constantes denúncias de corrupção.
As mulheres aprenderam estratégias para lidar com a situação de escassez. Uma delas foi negociar com os sentidos de “Talibã”. Sahar Ghumkhor e Anila Daulatzai apontam que a redução dos recursos dos programas de ajuda humanitária às viúvas levou-as a encontrar um meio para aumentar as rações de alimento. Elas descobriram que, se contassem aos agentes de organismos de ajuda (financiados pelos EUA e países europeus) que o Talibã matou seus maridos, elas teriam apoio. Uma mulher afegã diz:
Não somos úteis e eles não se importam se lhes dissermos que os soviéticos mataram nossos maridos, ou se nossos maridos morreram nas guerras de Cabul na década de 1990, ou se nossos maridos morreram jovens, de doenças incuráveis, ou de estresse ou do uso de heroína. Eles só se importam se o Talibã nos deixar viúvas (…).
A imagem do jovem afegão despencando, como uma fruta podre, do avião das Forças Armadas Norte-Americanas em 18 de agosto de 2021 talvez seja a expressão máxima dessa não importância do povo afegão para a potência ocupante.
O que essas mulheres estão nos dizendo? A impossibilidade de isolar suas situações do contexto de sua sociedade. Isso significa que não há dimensões singulares da condição feminina? Que a roupa que elas usam (seja por escolha ou mandado) é uma questão secundária? Voltarei a esses pontos.
As análises sobre as mulheres afegãs são feitas descolando-as da situação concreta de suas vidas e das relações sociais nas quais estão imersas. Essa estrutura de análise também aparece em textos que tentam denunciar a instrumentalização dos Estados Unidos das lutas das mulheres. Se alguns dizem que as mulheres afegãs não têm rosto, em outras, ela aparece como uma heroína, com controle total de suas vidas.
As duas perspectivas se igualam porque as isolam do contexto relacional e plural em que estão imersas. É como se essas mulheres não fossem irmãs de homens, mães de homens, filhas de pais, viúvas. Nessas análises, a heroína e a mulher sem rosto vivem em um mundo segregado do “mundo homem”.
Qual o efeito de análises descontextualizadas? Transformam a mulher em uma moeda, algo que permite que discursos circulem, ganhem valor nas disputas das narrativas. Na geopolítica global, “mulher-moeda” tem se tornado um valor em si. Basta eu falar: “mulheres afegãs” para que a moeda comece a circular. As mulheres tiveram suas casas invadidas, parentes presos, torturados, mortos, perderam filhas e filhos nos atentados do Talibã em escolas, mas essas tragédias desaparecem quando se põe em circulação a “mulher-moeda”. As figuras da heroína (elas têm agências) ou da mulher sem rosto (elas são oprimidas) terminam por igualar-se porque isolam as mulheres das relações sociais, econômicas e históricas que irão definir as condições de possibilidade para a agência. Na cena das mulheres viúvas acima descrita, vimos que ali mesmo se articulam três dimensões de suas existências: gênero (mulheres), classe (pobres), estado civil (viúvas).
Há poucas semanas, em uma entrevista, o ex-presidente G. W. Bush dizia ser um erro a saída dos Estados Unidos do Afeganistão. Ele temia que todo o trabalho dele e Laura (sua esposa) fosse perdido. Parte considerável da justificativa da invasão dos Estados Unidos ao Afeganistão esteve assentada no tripé direitos humanos/direitos das mulheres/democracia. Precisamos reconhecer a eficácia da “mulher-moeda” na geopolítica. Ela funciona.
O silêncio da imprensa global para os horrores da ocupação foi quebrado no dia 15 de agosto. Mas não para apontar os escombros em que o país foi deixado. Mais uma vez, instrumentalizam a luta e a vida das mulheres afegãs. De repente, como um raio em um dia de sol, o Talibã chega a Cabul e o país volta à pré-história. No artigo “Destino trágico das mulheres afegãs”, da jornalista Miriam Leitão, a “mulher-moeda” foi usada. “O mundo vê paralisado o destino das mulheres e meninas do Afeganistão”, diz a jornalista. Quantas vezes Miriam Leitão mostrou-se horrorizada pelas condições de vida das mulheres que tiveram seus parentes mortos, torturados pela força ocupante?
Em outra matéria, há uma amostra da eficácia da circulação da “mulher-moeda”:
Os dados da opinião pública digital do mundo estão olhando para o drama das mulheres no regime do Talibã: Do total de 53.320 artigos produzidos em 24 horas –até o final da tarde desta 3ª feira (17.ago.2021) – por sites de notícias no planeta, 29% trazem narrativas sobre a questão feminina (grifos meus).
Quantas vezes a mídia escutou as mulheres afegãs ou nos deixou saber das escassas políticas de cuidado da vida do povo afegão em tempos de pandemia da covid-19? A “mulher-moeda” torna-se um tropo que serve às tropas. A força ocupante sairá, mas continuará ocupando os corpos das mulheres. A “mulher-moeda” em circulação garante poder e legitimidade para as atrocidades da potência ocupante. Tece-se uma narrativa mítica em que, no antes (o tempo da ocupação), as mulheres eram livres e, agora, se instauram as trevas e as elas irão se encontrar com um destino trágico: a morte física ou simbólica.
Para que a eficácia da “mulher-moeda” seja garantida, é preciso fetichizar as mulheres, retirando-lhes e negando-lhes existências relacionais e plurais. Mulher afegã torna-se, no mercado global das moralidades, um todo. Sua circulação tem como um dos efeitos a produção do esquecimento das violências de gênero estruturantes de nossa sociedade. Essa alienação faz desaparecer, com um passe de mágica, nossa própria tragédia: o Brasil é 5º país do mundo em feminicídios.
Uma ressalva: a noção de “mulher-moeda” que impulsiona a economia moral global não pode servir para não se reconhecer a importância histórica dos movimentos de mulheres globalmente (com imensa pluralidade de agendas). É justamente pelo protagonismo que as múltiplas vozes feministas assumiram que os Estados passaram a tentar usar nossas lutas como retóricas para justificar a dominação.
Depois de 20 anos de ocupação e de guerra, cerca da metade da população do Afeganistão, incluindo quase 10 milhões de crianças, precisa de ajuda humanitária. Mais da metade de todas as crianças com menos de 5 anos está desnutrida. A ONU estima que quase 400.000 afegãos foram forçados a deixar suas casas até agora, sendo que 300 mil pessoas perderam suas vidas.
Afinal, qual o crime que o povo afegão cometeu contra o mundo? Que tipo de punição coletiva é essa? Depois da chegada da milícia Talibã em Cabul, os Estados Unidos bloquearam 9,5 bilhões de dólares do Estado afegão em bancos norte-americanos e o FMI suspendeu o acesso do Afeganistão aos fundos. A guerra contra o povo afegã irá continuar por outros meios.
Em uma reportagem sobre refugiados na Europa, um homem afegão, com a pele grudada nos ossos e olhos quase em queda livre, segurava um cartaz: “Nós estamos aqui porque vocês estão lá”.
A pedra
Um problema: ora, se estou propondo como alternativa analítica conectar a situação das mulheres em enquadramentos mais amplos, eu não estaria ocultando a opressão das mulheres? Vou me ater nesse ponto, “convidando” para essa conversa mulheres afegãs.
No seu artigo “My Taliban nightmare came true. I left, but my sister couldn’t” (“Meu pesadelo Talibã se tornou realidade. Eu saí, mas minha irmã não pôde”, tradução livre), Nasrin Nawa relata as cenas de medo que tomou conta de Cabul com a aproximação, do Talibã, da cidade. O seu desespero é com o destino de sua irmã. Ela diz: “Com relatos circulando sobre militantes do Talibã invadindo as casas de ativistas, jornalistas e outros, liguei para minha irmã e disse a ela para ir para casa e esconder todas as nossas carteiras de identidade. Então eu lhe disse que ela precisava destruir seu violão. Ela disse que suas mãos não eram capazes de fazer isso, mas eu implorei a ela. Eu disse-lhe que “as mãos do Talibã são capazes de matar você por sua arte”.
Para a jovem afegã Zahara Nader, há outra camada de medo e angústia. Ela é da etnia Hazara (província de Bamiyan), uma minoria muçulmana xiita perseguida pelos talibãs. A estátua do líder xiita Abdul Ali Mazari (morto pelos milicianos Talibã em 1995) foi destruída pelo Talibã. Eu não estou me referindo às estátuas gigantes de Budas, localizadas em Bamiyan, e que também foram destruídas pelo Talibã em 2001. Esta destruição aconteceu em 17 de agosto de 2021.
A saída dos Estados Unidos tinha sido acordada para o dia 31 de agosto. Desde 2020 que as negociações de saída da potência ocupante e da OTAN já estavam em curso. Essas negociações se davam entre o Talibã e o Trump e não entre o presidente do país, o fantoche Ashraf Ghani. Então, o primeiro país que reconheceu o Talibã como governo são os Estados Unidos. Isso não parece estranho? Acredito que essa estranheza ou mistério foi desvendada pelo filósofo Rodrigo Karmy: os milicianos talibãs operam suas políticas no mesmo registo do império: no âmbito da necropolítica. Para Rodrigo,
Os comandantes do Talibã que entraram no palácio presidencial não vieram das trincheiras. Suas roupas pareciam muito limpas, suas barbas e rifles muito bonitos. Não era a guerra que estava por trás disso, mas a sala de maquiagem (…). O Talibã não colocou em jogo nenhuma “cultura ancestral” (…), mas um conjunto de técnicas e discursos que vem se formando desde o fim da Guerra Fria (…) O talibanismo é uma maquinaria necropolítica feita a imagem e semelhança do antigo imperialismo estadunidense.
Na certidão de nascimento do Talibã está escrito, pai: ESTADOS UNIDOS.
WikiCommons
O véu usado por mulheres afegãs faz parte da tradição pashtun
Em uma entrevista, o porta-voz dos milicianos, Mawlawi Abdulhaq Hemad, afirmou que não iria proibir as mulheres de estudarem ou trabalharem. Esta fala repercutiu ineditamente aqui no Brasil entre aqueles/as que tentam construir narrativas alternativas às da mídia hegemônica e que poderiam interromper a circulação da “mulher-moeda”. Mas não foi isso que aconteceu. “Ainda é cedo para qualquer análise”; “precisamos esperar para ver como vai ser o governo do Talibã”; “o Talibã de hoje não é o mesmo de 20 anos atrás” foram algumas pérolas que escutei de analistas brasileiras.
Quando se diz “ainda é cedo” está se propondo um tipo de perdão, algo como: vamos esquecer o que eles fizeram no passado, afinal, eles já disseram que mudaram. Se com Miriam Leitão vemos a emergência da figura “Idade das Trevas”, nessas análises, o perdão antecipado parece sugerir que virão tempos alvissareiros. E o que as mulheres afegãs dizem? A situação do povo afegão deteriorou-se e as mulheres seguem sendo perseguidas pelo Talibã. Não há oposição entre Talibã e as forças ocupantes.
A deputada Malala Joya diz que
mais uma vez, as mulheres do Afeganistão serão mais vítimas, já que os homens e mulheres do meu país não têm libertação alguma. [O Talibã] declarou que, quando chegar ao poder, as meninas de 15 anos e as viúvas com menos de 45 anos serão forçadas ao casamento com seus comandantes. E é apenas um exemplo, embora tenhamos muitos outros exemplos de seus atos misóginos contra as mulheres que indicam que sua natureza nunca mudou. Por exemplo, duas meninas de 14 e 16 anos da província de Samangan foram, recentemente, na frente de sua mãe, brutalmente estupradas por dois comandantes do Talibã. E duas crianças de 9 anos em Cabul, alguns meses atrás, também foram estupradas. E essa lista pode ser prolongada. Infelizmente, a situação das mulheres é um desastre.
Essa entrevista de Malala aconteceu em 15 de julho 2021, ainda sob a ocupação. Um mês depois, no dia 17 de agosto, eles cinicamente dizem que iriam respeitar as mulheres.
O jornalista Ahmed Rashid (em 16 de agosto) junta-se à deputada Malala nas denúncias:
O Talibã precisa reconstruir sua credibilidade, porque, lembre-se, pouco antes dessa tomada de controle, houve meses de assassinatos em Cabul de altos funcionários, funcionários do governo, jornalistas, mulheres, ativistas. O Talibã estava tentando eliminar a classe educada. E isso criou um verdadeiro medo e pânico em todo o país, não apenas em Cabul. Esse é o legado de brutalidade, bastante recente, que o Talibã tem que mitigar de uma forma ou de outra.
A jovem jornalista afegã Nasrin Nawa, agora sem emprego, soma-se às vozes que denunciam a violência dos milicianos: “Eles estão atacando pessoas. Eles estão atacando mulheres. Mas eles não são vistos pelo mundo, porque não há cobertura suficiente. Não há coragem suficiente para isso. Elas estão com medo”.
Estamos diante de dois tipos de ocupação em linha de continuidade: a ocupação do Afeganistão e a ocupação dos corpos das mulheres que, por sua vez, pode ser separada em dois tipos de ocupação: pela retórica da “mulher-moeda” implementada pelos ocupantes e pelo controle microfísico do Talibã.
A burca
Na circulação da “mulher-moeda”, as roupas parecem que se tornaram um indicador de desenvolvimento humano. De um lado, uma enxurrada de fotos requentadas e alteradas (geralmente fotos de iranianas) que mostravam mulheres antes e depois da chegada do Talibã. As pernas de fora e a minissaia parecem que se tornaram um indicador de desenvolvimento humano elevado e corpos de mulheres cobertos, ao contrário, apontaria para o atraso civilizacional.
As vestimentas ou uso de determinada peça indicaria liberdade ou opressão? Como separar (e denunciar) a instrumentalização dos Estados das mulheres? Não tenho a menor dúvida de que a forma como os corpos são apresentados, principalmente, na esfera pública, é fundamental para a realização de atos de reconhecimento ou de negação de reconhecimento. Os Estados tentam sistematicamente controlar os corpos. E o corpo, aqui, não é compreendido como uma entidade metafísica. É algo materializado em modas e modos que o qualificam (ou o desqualificam) para a vida. Vocês lembram qual foi a primeira observação que o colonizador Pedro Álvares Cabral fez sobre os corpos do povo originário do Brasil? “Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”.
A vergonha foi produzida e materializada em trapos que serviriam para cobrir “suas vergonhas”. Tudo em nome de Deus. As roupas não têm importância? Afinal, não é exatamente pelo direito de expressarem seus gêneros que as pessoas trans têm lutado e por isso sofrem uma violência radical? Se não existe uma essência de gênero, mas práticas de gênero, não há dúvida de que as roupas também fazem o gênero. O que isso tem a ver com as mulheres afegãs? Sigamos.
As noções de honradez/desonradez estão vinculadas às performances de gênero. Daí a importância da Marcha das Vadias e de outras iniciativas feministas que instauram, no espaço público, o corpo como local explícito de disputa e radicalizam a máxima feminista de que “meu corpo me pertence”. Se “meu corpo me pertence” e se eu quero usar o lenço muçulmano ou a burca, ou a minissaia, esse é um direito que deve ser respeitado.
Mas como eu poderei ser livre no meu desejo, se o Estado diz: “se você usar o lenço, não poderá estudar, tampouco trabalhar”, como faz o Estado francês com as mulheres muçulmanas? E se eu for obrigada a usar determinado símbolo religioso imposto pelo Estado sob pena de ser chicoteada ou apedrejada? A “mulher-moeda” tornou-se um valor que os Estados privatizaram e põem em circulação no mercado moral global. Como eu posso dizer que as mulheres são livres quando há leis estatais que dizem o que eu posso e o que não posso usar? O desejo plural da sociedade civil nunca coincide inteiramente com o do Estado. Eles não se fundem em uma simbiose indefinível.
Faço esse pequeno aparte na discussão sobre a situação das mulheres afegãs porque esta foi uma discussão cansativamente reiterada. As disputas narrativas, como um mar agitado, têm nos jogado para o rochedo das normas (heteronomia) ou da escolha (autonomia). De um lado, comentários sobre “o drama das mulheres afegãs que terão que se submeter à burca”; do outro, “que bobagem essa discussão sobre as roupas”. Mais uma vez a aparente oposição das posições desaparece porque ambas produzem uma falsa oposição entre forma/conteúdo e esquecem de um ator fundamental nesse cenário: O Estado e suas fantasias de homogeneidade.
Logo após a chegada performática do Talibã, uma jornalista afegã entrevistou um miliciano do grupo. Ela perguntou, em tom desafiador: “Você acha que minha vestimenta está apropriada?” Ele, todo vestido de armas, respondeu: “Não. Você está muito descoberta”. Ela usava o lenço muçulmano (hijab) e um vestido comprido.
No artigo “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros”, Lila Abu-Lugob nos lembra de que a burca não foi inventada pelo Talibã. É a forma de cobertura que as mulheres pashtun (uma etnia afegã da qual a maioria dos milicianos do Talibã faz parte) usavam quando saíam.
A burca seria, antes de tudo, um símbolo de modéstia e da “separação simbólica entre as esferas masculina e feminina”. Para o desespero dos feminismos liberais, durante a ocupação, algumas mulheres seguiam usando suas burcas. E as que não querem cobrir seus cobertos com símbolos religiosos e/ou culturais? Não querem o véu, não querem a burca? Serão chicoteadas? Talvez apedrejadas? Isso não é importante?
Certamente, para muitas mulheres e crianças, além da luta para irem às escolas (muitas destruídas por ataques terroristas do Talibã), pela sobrevivência e pela reconstrução de seu país, terão que lutar pelo direito de não cobrirem suas cabeças ou/e corpos de acordo com as normas dos novos donos do poder. Chegarão Al-Quaeda, Estado Islâmico, a milícia do Talibã poderá dividir-se, talvez uma guerra civil se instaure e os vampiros ocidentais seguirão fazendo pronunciamentos humanitários. A certeza: a “mulher-moeda” afegã continuará a circular.
A ACNUR fará vídeos pedindo seu dinheiro para salvar as mulheres e crianças afegãs. Abaixo-assinados on-line com títulos “Salve a mulher afegã”, “Vamos ajudar as mulheres afegãs”, vão ser compartilhados em grupos de WhatsApp e nos e-mails. A verdade, contudo, é translúcida: Eles não se importam com o povo afegão, reverberando, por fim, a voz da viúva.
Referências:
BUTLER, Judith. Detenção indefinida. In: Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
JOYA, Malala. Woman among warlords: the extraordinary story of na Afghan woman. Scribner, 2009.
JOYA, Malala. Afghan Activist: George W. Bush’s Claim U.S. War in Afghanistan Protected Women Is a “Shameless Lie”. Democracy Now, 15 jul. 2021. Disponível em: https://www.democracynow.org/2021/7/15/afghanistan_taliban_us_withdrawal?fbclid=IwAR2nf5cyTD1fk24T8Dc6FGUxAR2eRX4tHc3iDZ21cqY1Ed6MiJLIr9_IbTo.
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*Berenice Bento é Professora Associada do Departamento de Sociologia/UnB