Desbravar novos caminhos se tornou algo natural na carreira da cineasta paulista Paula Kim. Depois de se formar no curso de audiovisual da USP (Universidade de São Paulo), ela foi a primeira aluna ocidental a entrar na pós-graduação em direção cinematográfica da Korea National University of Arts, em Seul, capital sul-coreana.
Neste ano, Paula obteve feito inédito para diretores brasileiros com a inclusão do projeto de seu primeiro longa-metragem, Diário de Viagem, no programa Atelier do Festival de Cannes, que seleciona trabalhos do mundo todo que estejam com o roteiro finalizado e com alguma verba para a execução. O objetivo é impulsionar a feitura desses filmes através do contato com produtores e distribuidores do mundo todo.
Em Cannes, a paulista será a única brasileira a participar de uma atividade oficial do festival. Sem representantes no evento principal, que começa nesta quarta-feira (13/05), o cinema brasileiro estará representado por dois trabalhos nas mostras paralelas: os curtas-metragens Quintal, de André Novais Oliveira, na Quinzena dos Realizadores; e Command Action, de João Paulo Miranda Maria, na Semana da Crítica.
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A relação da diretora paulista com o evento francês começou em 2010, quando ela inscreveu este mesmo projeto para concorrer a uma vaga na Residência, programa voltado ao desenvolvimento de roteiros de cineastas com até dois longas-metragens. Na ocasião, Paula foi chamada para uma entrevista com os organizadores, mas acabou ficando fora da lista final de aprovados. Esta experiência, contudo, veio a ser importante para a seleção para o Atelier.
“Eu terminei a primeira versão do roteiro em 2011, mas as coisas só começaram a acontecer em termos financeiros em 2014, quando ganhamos um edital [Programa de Fomento ao Cinema Paulista]. É um projeto bem autoral, então eu queria que ele se desenvolvesse naturalmente. O Atelier de Cannes só seleciona projetos por convite, e como eu já tinha o contato da organização por causa da entrevista para a Residência, acabei enviando o roteiro; eles gostaram e nos convidaram”, conta a diretora no escritório da sua produtora, localizado no centro de São Paulo.
Organizado desde 2005 pela Cinéfondation, seção de filmes de escola do Festival de Cannes, o Atelier já selecionou 156 projetos, dos quais 103 foram finalizados e 40 estão em produção. Diretores como o argentino Lisandro Alonso, o tailandês Apichatpong Weerasethakul e o chinês Wang Bing são alguns dos nomes que já participaram do programa.
Sam Ka Pur Filmes & Lacuna Filmes/Crédito: Estúdio MOL
Arte do filme 'Diário de Viagem' (Butterfly Diaries, em inglês) feita para o evento do Festival de Cannes
Tudo muda em um minuto
Hoje tida como um exemplo de desenvolvimento econômico e referência de sistema educacional, a Coreia do Sul era bem diferente quando os pais de Paula Kim deixaram o país asiático para vir ao Brasil — o pai no fim dos anos 60 e a mãe, no início dos anos 80. “O pessoal de lá era pobre e queria melhorar de vida. Minha tia conta que a Coreia não tinha esgoto naquela época. Era um lugar com pouca comida, todo mundo queria sair. Depois disso teve o boom econômico e quem tinha deixado o país ficou para trás”, diz a diretora.
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Nascida em São Paulo, Paula estudou no tradicional Colégio Bandeirantes. A escolha por seguir carreira na área audiovisual teve influência da cinefilia do pai. “Sem me dar conta, eu acabei gostando da área”, afirma. Aos 17 anos, quando cursava o primeiro ano na USP, Paula ganhou o prêmio de audiência do Festival do Minuto com o curta-metragem Sexo Explícito, que utiliza a técnica de stop motion para simular, apenas com roupas, uma relação sexual. O valor de R$ 5.000 recebido pela honraria acabou quase todo investido em uma câmera MiniDV, tecnologia que viria a ser rapidamente ultrapassada.
Com especialização em roteiro e direção, Paula se formou na USP em 2005. Logo em seguida, decidiu procurar uma pós-graduação no exterior. “Pesquisei cursos na Austrália, EUA e Europa, mas esses eram lugares muito procurados. Queria fazer algo que fosse mais diferente, e como na época o cinema coreano estava crescendo, coloquei na cabeça que iria para lá”, conta.
Assista ao curta-metragem 'Sexo Explícito' (2001), de Paula Kim:
Na terra dos pais
Ao contrário dos pais, que se conheceram no Brasil dentro da comunidade sul-coreana, Paula Kim não teve um círculo de amizades ligado ao país asiático durante a infância e a adolescência. Seu contato com a Coreia do Sul antes de chegar à faculdade se resumiu a três ou quatro viagens ao local. “Eu ficava na casa dos meus familiares e não cheguei a conhecer direito Seul nessa época. Era como se alguém viesse para São Paulo, ficasse o tempo todo na casa da avó e não saísse para conhecer a cidade”, brinca.
Paula se mudou para a Coreia do Sul em 2006 para aprimorar o idioma local, que já havia aprendido com os pais, e tentar vaga na pós-graduação em direção cinematográfica da Korea National University of Arts, que, até então, só havia recebido estrangeiros vindos de outros países asiáticos, como Tailândia e Malásia. No ano seguinte, a brasileira se tornou a primeira ocidental a ser aprovada no curso.
Durante a pós-graduação, Paula dirigiu três curtas-metragens: Chumar [Weekend ou 'Fim de Semana']; Gonnyon’s First Drive e 26, Best Korean Girl. Assim como as aulas, todos os filmes são falados no idioma local. “Às vezes eu conseguia escrever o roteiro em coreano; em outros casos, recorria ao inglês e algum colega fazia a tradução. Para não ter problemas com a equipe, eu desenhava storyboards de todas as cenas”, relembra.
Se, por um lado, a universidade coreana oferecia equipamentos de última geração para os alunos utilizarem, por outro havia a necessidade de os estudantes bancarem os custos dos filmes produzidos. Para conseguir financiá-los, Paula trabalhou dando aulas de inglês e português e atuando como tradutora, função que a fez lembrar do Brasil.
“Tinha uma empresa de lá que comprava programas da TV Globo, e eu trabalhava traduzindo os diálogos. Lembro de ter feito a legendagem da novela América e da minissérie Presença de Anita. Com as aulas e com esses trabalhos eu conseguia dinheiro para finalizar os meus filmes”, conta a diretora.
Assista ao curta-metragem 'Fim de Semana', de Paula Kim:
Quando a pós-graduação acabou, Paula não sabia se voltaria ao Brasil para trabalhar. Além de ter uma produção nacional forte, que chega a ter mais da metade do número de ingressos vendidos em um ano — diferentemente do Brasil, que só vendeu cerca de 12% de ingressos para produções nacionais em 2014 —, a Coreia do Sul vem tendo uma inserção importante em festivais internacionais. Colegas de classe de Paula, como Hong-jin Na (de O Caçador), já exibiram suas obras no Festival de Cannes. No entanto, a decisão tomada foi a de voltar ao país natal.
“Tenho o desejo de trabalhar questões ligadas a São Paulo e ao Brasil, por exemplo, e lá eu não teria chance de fazer isso. Se eu ficasse na Coreia, provavelmente as coisas iriam ocorrer de forma bem mais rápida profissionalmente, mas eu não iria conseguir trabalhar as temáticas que eu quero como diretora e roteirista”, explica.
Juventude feminina
Para levar à frente o projeto de Diário de Viagem, Paula Kim terá o auxílio da produtora Diana Almeida, da Lacuna Filmes, a mesma que realizou o longa-metragem Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (dirigido por Daniel Ribeiro), que obteve reconhecimento da crítica especializada em festivais como o de Berlim e alcançou mais de 200 mil espectadores no circuito comercial brasileiro.
“Como produtora e espectadora, eu me interesso por boas histórias de amadurecimento. Embora o Diário de Viagem seja um caso um pouco especial, por falar sobre a adolescência mas não ter essa faixa etária como o principal público-alvo, eu concordo que faltam no Brasil produções sobre e para os nossos jovens. Várias pesquisas mostram isso: o jovem brasileiro é quem mais frequenta salas de cinema no Brasil e raras vezes tem a chance de se ver retratado”, opina Diana Almeida.
Assista ao curta-metragem '26, Best Korean Girl', de Paula Kim:
No caso do projeto de Paula Kim, à temática da juventude foi agregada a vontade de falar especificamente sobre o amadurecimento feminino e as nuances que pode trazer consigo. O filme contará a história de uma adolescente que desenvolve anorexia nervosa, em uma trama que se passa nas cidades de São Paulo e Londres, nos anos 90.
“Há muitos filmes que falam da adolescência masculina, mas eu sinto falta de um trabalho que trate bem de mulheres nesta fase. O filme contextualiza questões de adolescentes dentro de um mundo bem consumista que está se abrindo e fala sobre pressões sociais invisíveis, como o uso da sexualidade para obter vantagens”, diz Paula.
Além de conhecer os novos trabalhos de cineastas renomados de diversos cantos do mundo, Paula espera trazer da viagem a garantia de que o projeto que começou em 2010 irá sair do papel para as telas em breve.
“A ida para o Atelier é importante porque ajuda a planejar a trajetória do filme em festivais e também comercialmente no exterior. Como o filme será rodado em parte na Inglaterra, estamos procurando um coprodutor europeu. Também pretendemos fechar parceria com distribuidores estrangeiros”, conclui.
* Adriano Garrett é editor do site Cine Festivais