O golpe no Chile pelo olhar brasileiro – capítulo 1: ‘não queremos sua sociologia aqui’
Opera Mundi abre série com relatos de brasileiros que viveram o fim do governo Allende e início da ditadura Pinochet, episódio que completa 50 anos em 2023; primeiro episódio conta história do sociólogo Ricardo de Azevedo
Opera Mundi inicia uma série de reportagens com relatos de brasileiros que viveram o fim do governo Salvador Allende e início da ditadura Augusto Pinochet, episódio que completa 50 anos em 11 de setembro de 2023.
A história de Ricardo de Azevedo é a primeira. A seguir, conheça a trajetória do sociólogo que foi preso e passou 27 dias detido no Estádio Nacional, em Santiago.
Em 11 de setembro de 1973, os moradores de Santiago do Chile acordaram ao som dos aviões Hunter Hawk que bombardeavam o Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, naquele típico dia nublado de fim de inverno.
Não houve raiar do sol, mas sim o início de um período de 17 anos de horror que se instalaria no país com a ditadura do general Augusto Pinochet, considerada uma das mais sanguinárias da história: até 1990, os militares chilenos tinham nas mãos mais de 7 mil vítimas fatais (entre mortes oficiais e desaparições forçadas) e mais de 30 mil presos políticos.
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Milhões de pessoas despertaram aquele dia com medo do futuro, e centenas delas viviam um golpe de Estado pela segunda vez em menos de dez anos. O primeiro havia sido em março de 1964, quando o Brasil assistia a queda de João Goulart e a tomada do poder pelos militares.
Um desses brasileiros era Ricardo de Azevedo, que morava a cerca de um quilômetro do Palácio de La Moneda, em um dos edifícios das Torres San Borja, icônico conjunto de prédios do Centro de Santiago. No 21º andar, o voo rasante dos Hunter Hawk era percebido não só pelo barulho ensurdecedor como pelas vibrações que faziam as paredes tremerem, como em um terremoto.
“Eu já havia vivido terremotos antes e sabia que não faziam aquele tipo de barulho. Então, liguei o rádio e comecei a ouvir as notícias. Havia sete rádios de esquerda em Santiago naquela época, apesar da maioria ser de direita. Mas naquele dia só uma delas estava com sua programação própria, a rádio Magallanes, transmitindo a versão dos que estavam sofrendo o golpe. As demais ou estavam fora do ar ou já estavam transmitindo mensagens da junta militar”, conta o brasileiro a Opera Mundi.
Ricardo vivia no Chile desde junho de 1972. Para entender sua chegada ao país andino é preciso voltar alguns anos no passado.
Da AP à UP
Em 1968, quando o Ato Institucional número 5 (AI-5) provocou o “golpe dentro do golpe” da ditadura brasileira, Ricardo era estudante de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP), membro do Movimento Estudantil e da Ação Popular (AP). Ele acabou sendo uma das vítimas do endurecimento do regime: foi preso em junho do ano seguinte e levado para o presídio de Tiradentes, em São Paulo, onde permaneceu até setembro de 1970.
Uma vez livre, Ricardo se casou, passou a dar aulas e voltou a militar na AP. A organização voltou à lista de prioridades dos aparatos de repressão da ditadura a partir de novembro de 1971, e seu nome estava entre os procurados.
O Chile de Salvador Allende parecia o melhor refúgio, não só pelo projeto de “socialismo democrático” promovido pelo governo da Unidade Popular (UP) – a coalizão que sustentava o governo allendista, conformada pelo Partido Socialista e pelo Partido Comunista – mas também porque já viviam em Santiago centenas de outros brasileiros que haviam fugido da ditadura militar no Brasil.
“Saí do Brasil em meio a uma ditadura ferrenha, com muita perseguição política. E no Chile eu encontrei um ambiente com amplas liberdades, mas ao mesmo tempo com uma luta de classes muito intensa, com uma esquerda que se manifestava com quase um milhão de pessoas em cada ato, mas também com uma direita numerosa, não tanto como a esquerda, mas também numerosa”, lembra.
Ricardo recorda o período de grande presença brasileira no Chile de Allende como uma extensão da sua militância política, dele e de boa parte dos compatriotas: "muitos de nós éramos oriundos da AP, como eu, o José Serra, o Betinho e outros”.
Mas não eram os únicos: havia no Chile, na mesma época, militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), da Ação Libertadora Nacional (ALN), da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop).
Segundo o sociólogo, todos esses militantes políticos encontraram organizações similares para seguir defendendo seus ideais. “O pessoal do PCB, obviamente, se vinculou com o Partido Comunista do Chile (PCCh), nós que éramos da AP também tínhamos um similar, o Movimento de Ação Popular Unitária, que era a mesma AP, mas introduzindo duas palavras mais para que a sigla fosse MAPU, fazendo um trocadilho com a palavra ‘mapu’, que significa ‘terra’ em idioma mapuche”, disse.
No caso dos militantes da ALN e da VAR-Palmares, a maioria se aproximou do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR, sigla em espanhol), que manteve uma postura crítica com relação à UP e ao projeto de Allende, enquanto outros formaram parte da ala mais à esquerda do Partido Socialista (PS), também crítico, mas fiel às decisões do governo.
“Nós fazíamos muitas reuniões no Chile, às vezes entre brasileiros de diferentes movimentos, para decidir como lidaríamos com as mudanças que o país vinha sofrendo. Como já tínhamos a experiência do que aconteceu no Brasil, alguns de nós intuímos o que estava por vir”, contou à reportagem.
Semanas antes do golpe, Ricardo participou de um encontro com diversos conterrâneos, no qual se discutiu entre duas opções: fugir para a Argentina ou ficar no Chile e se preparar para o que consideravam que seria uma guerra civil. “Alguns de nós víamos os chilenos se preparando e considerávamos que havia uma resistência suficientemente preparada para encarar o que estava por vir. Por isso a decisão majoritária foi de ficar. No final, não houve a guerra civil que nós esperávamos, foi um massacre. Houve certa resistência popular, mas a maioria de nós foi aniquilada”, declarou ele.
O sociólogo passou 27 dias preso no Estádio Nacional após golpe no Chile / Arquivo pessoal
Estrangeiros
Uma vez consumado o golpe, Ricardo mudou de figura e comportamento: cortou a barba e o cabelo comprido para evitar ser reconhecido, mas sua condição de estrangeiro era um dos problemas que precisava ocultar.
“Logo nos primeiros dias da ditadura, se difundiu o discurso de que a confrontação social que levou ao golpe era culpa dos estrangeiros. A narrativa era de que a população chilena era ordeira, mas que ‘esses estrangeiros, quase todos comunistas, chegaram aqui e corromperam os nossos valores’. Os meios de comunicação ajudaram a difundir a ideia de ‘denunciar qualquer estrangeiro que esteja cometendo atos suspeitos ou subversivos’”, relembrou Ricardo.
O clima de perseguição aos estrangeiros já vinha sendo sentido dias antes do golpe de Estado, o que levou Ricardo reunir um grupo de amigos brasileiros em seu apartamento. A ideia era estarem mais próximos para haver um grupo maior colaborando entre si em situações complexas.
Dias antes do golpe, os seis amigos brasileiros decidiram fazer uma pequena celebração para permitir um momento de descontração em meio a uma conjuntura cada vez mais tensa, mas que não ficou isenta de conflito, já que tiveram que lidar com uma briga, quando o vizinho do andar de baixo reclamou da música alta. O incidente não gerou maiores problemas, ao menos naquele dia.

Biblioteca Nacional do Chile
Sociólogo Ricardo de Azevedo era um dos 105 brasileiros que estavam presos no Estádio Nacional em outubro de 1973
Outra medida importante e difícil de ser tomada era se desfazer de qualquer item que pudesse ser considerado “subversivo”. Livros, discos, panfletos, roupas, qualquer coisa que evidenciasse suas preferências políticas de esquerda era comprometedora.
Enquanto os militares chilenos avançavam em sua “guerra cultural”, com enormes fogueiras nas ruas, queimando os livros das pessoas que acabavam de ser capturadas pelo regime, os amigos brasileiros se desfaziam dos seus em uma pequena fogueira dentro do apartamento, por uma questão de sobrevivência.
Na manhã de 13 de setembro, Ricardo saiu com um grande saco plástico cheio das cinzas produzidas na noite anterior. O edifício tinha um duto onde se depositava o lixo, que ficava na escada, na metade do caminho entre um andar e outro. Ele desceu cada degrau calma e silenciosamente, abriu o compartimento onde deveria colocar o saco e escutou um barulho. Desceu mais dois degraus e viu uma porta entreaberta, uma pequena fresta, dessas que se abrem ligeiramente quando se quer espiar algo. Era o vizinho do 20º andar, aquele com quem haviam brigado poucos dias antes do golpe, e que fechou a porta ligeiramente quando percebeu que foi descoberto. Horas depois, a polícia chegou ao apartamento e prendeu Ricardo e seus amigos. Haviam sido denunciados pelo vizinho do andar de baixo, pelo simples fato de serem estrangeiros.
Os dois estádios
Ricardo e seus amigos foram levados a uma delegacia no Centro de Santiago. Cada um tinha um problema legal diferente, que foi explorado pelos militares para justificar a detenção. No caso do sociólogo, era o seu visto de permanência, que precisava ser renovado. “Ainda assim, todos os casos eram problemas burocráticos. Não havia crimes contra nós, mas nosso perfil nos colocava como alvos preferenciais da nova doutrina que se instalou no país", disse a Opera Mundi.
Os brasileiros passaram sua primeira noite em uma sala da delegacia improvisada como cela, já que as convencionais estavam cheias de presos políticos capturados no primeiro dia do golpe.
No dia seguinte, diversos ônibus estacionaram nos arredores da delegacia. Os presos políticos, tanto os das celas convencionais quanto das improvisadas, foram separados em grupos de homens e mulheres e levados aos recintos esportivos transformados em campos de concentração.
Ricardo foi enviado ao que era o maior ginásio poliesportivo da capital Santiago, conhecido na época como Estádio Chile – atualmente, se chama Estádio Víctor Jara, porque foi nesse local que o famoso cantor e compositor chileno foi assassinado pelos militares, em 16 de setembro.
Sua estadia no ginásio durou apenas três dias. No mesmo dia em que Jara foi assassinado, Ricardo foi levado ao Estádio Nacional, o maior campo de futebol do país: "acho que havia mais de 15 mil presos políticos lá. Era muita gente, e todos os dias entravam e saíam pessoas”.
O sociólogo passou 27 dias preso no Estádio Nacional. “Considerando as circunstâncias, posso dizer que sofri menos que outros camaradas. Alguns perderam a vida, outros estiveram perto da morte. Claro que eu também era agredido durante os interrogatórios. Eles perguntavam umas coisas ridículas, não buscavam uma informação, só uma desculpa para continuar batendo. Lembro que um dos milicos me batia com um porrete enquanto dizia ‘não queremos essa sua sociologia aqui’", contou.
Ricardo lembra que havia 105 brasileiros presos no Estádio Nacional entre setembro e outubro de 1973. “Cada dia havia a visita de uma delegação diplomática diferente buscando compatriotas que estavam presos, um dia foi a do Paraguai, outro da Argentina, e assim por diante”, relatou ele.
A delegação brasileira seria a última. Naquele então, o país era governado pelo general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Os representantes de Brasília tinham como prioridade repatriar foragidos do seu regime, e o nome de Ricardo possivelmente estava na lista.
Mas o sociólogo conseguiu escapar da comitiva de Médici dois dias antes. “Eu consegui sair com a ajuda de um funcionário das Nações Unidas. Um suíço foi fazer uma vistoria sobre as condições dos presos. Ele se aproximou de mim e disse que conheceu o meu pai, que ele estava em um hotel de Santiago e que escreveu uma carta para mim. Eu reconheci a letra”.
Ricardo deixou o Estádio Nacional após ser condenado a “abandonar o país”. Seu primeiro destino foi a Argentina, mas o país já vivia a tensão que desembocaria na ditadura de Jorge Rafael Videla (que se iniciaria em 1976). Para não viver um terceiro golpe de Estado, o brasileiro migrou para a França, pouco tempo depois.
Segundo retorno ao Chile
Era 1990 quando o sociólogo voltou ao Chile pela primeira vez. O país já tinha decidido, após um plesbicito, pelo retorno da democracia, em 1988, e já havia eleito um novo presidente, Patricio Alwyn, do Partido Democrata Cristão, mas Pinochet ainda não tinha entregue o cargo. Além disso, pelo acordo feito durante a transição, o genocida deixaria apenas a Presidência, mas continuaria sendo comandante-chefe das Forças Armadas.
Foi nesse contesto que ele entrou novamente no Chile, mas não para visitar Santiago. Estava em Bariloche, no Sul da Argentina, e cruzou de carro a fronteira que o levaria à cidade chilena de Puerto Montt.
“Quando passamos pelo controle alfandegário, os agentes me pararam ao saberem que eu era brasileiro. Um deles tirou da gaveta um livro enorme, que parecia aquelas antigas listas telefônicas, e passaram a buscar o meu nome. Aquele documento tinha o registro das pessoas que estavam proibidas de entrar no Chile por terem sido condenadas durante a ditadura”, recordou.
Apesar do contratempo, Ricardo conseguiu entrar no país naquela ocasião. Ele supôs que os agentes decidiram não fazer vistas grossas para o seu caso, já que se tratava de uma decisão de um regime que estava por terminar. A anistia aos condenados pela ditadura de Pinochet só seria efetivada durante o primeiro governo democrático.
O sociólogo pretende fazer, em setembro deste ano, sua segunda visita ao Chile desde 1973. Desta vez, ele voltará a Santiago para acertar as contas com o passado.
“O golpe do Chile foi mais violento que o brasileiro, antes e depois. Havia uma luta de classes muito mais forte no país nos últimos meses em que Allende esteve no poder. Essas coisas deixam traumas, mas agora sinto que é o momento de revisitar lugares onde eu estive preso, onde estive com amigos, voltar às Torres de San Borja, ao Estádio Nacional”, contou a Opera Mundi.
Ricardo é uma das 463 pessoas que assinaram o manifesto escrito por brasileiros que viveram o início da ditadura no Chile. Entre elas, cerca de 100 pessoas decidiram visitar o país novamente para participar dos eventos que recordarão os 50 anos do golpe de Estado que colocou fim ao governo de Salvador Allende.