‘Acertar as contas com o passado’: brasileiros que viveram golpe no Chile retornam 50 anos depois
Caravana com cerca de 100 ex-exilados prepara diversas atividades em Santiago; Opera Mundi inicia série de relatos dos que estiveram no Chile quando ditadura Pinochet foi instaurada
Durante as próximas semanas, o Chile pretende recordar, em diferentes solenidades, um dos momentos mais violentos e traumáticos da sua história: os 50 anos do golpe de Estado que colocou fim ao governo do socialista Salvador Allende (1970-1973) no dia 11 de setembro de 1973, dando início à ditadura ultraliberal do general Augusto Pinochet (1973-1990), considerada uma das mais cruéis.
Não só os chilenos participarão dos eventos. Um grupo de cerca de 100 brasileiros e brasileiras que viviam no país andino naquele dia fatídico está se organizando para visitar Santiago, entre 9 e 12 de setembro, para reviver o que também foi um dos momentos mais difíceis de suas vidas.
Entre os envolvidos no projeto está o sociólogo Ricardo de Azevedo, que viveu no Chile entre julho de 1972 e outubro de 1973 – ele chegou a ser capturado pelos militares chilenos e passou 27 dias preso no Estádio Nacional de Santiago, que havia se transformado em campo de concentração.
“Não foi uma ideia que surgiu somente de uma pessoa. Acho que todos tínhamos um pouco essa sensação. Um dia você acorda e pensa ‘caramba, vão fazer 50 anos daquele golpe’, e você viveu aquilo, então precisa fazer alguma coisa a respeito. Falei sobre isso com alguns amigos e eles sentiam a mesma coisa. Naturalmente as propostas foram surgindo”, recordou Azevedo a Opera Mundi.
Leia o primeiro relato da série de Opera Mundi: O golpe no Chile pelo olhar brasileiro – capítulo 1: ‘não queremos sua sociologia aqui’
A produtora cultura Monica Rabelo, que outra das envolvidas na organização da viagem ao Chile, também conversou com Opera Mundi. Para ela, essa viagem coletiva envolve "questões afetivas profundas, que eu tinha guardado, para poder continuar adiante. "No meu caso, foram dois exílios na tenra idade, isso deixa marcas”, disse.
A programação da caravana terá como pontos principais uma confraternização após a chegada na capital chinela, na noite de 9 de setembro (sábado), uma visita ao Museu da Memória, no dia 10 de setembro (domingo), e participação, no dia 11 de setembro (segunda-feira), do evento que acontecerá na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de La Moneda – em meio às festividades, o grupo de brasileiros pretende deixar uma coroa de flores junto à estátua de Allende.
O grupo também pretende levar duas placas com o intuito de recordar a presença de brasileiras e brasileiros durante o golpe de 1973 no Chile: uma delas à Prefeitura de Santiago, com o intuito de que seja instalado na Praça Brasil, no Centro da capital chilena, e outra para ser exposto na Embaixada do Brasil – neste segundo caso, como a sede diplomática está em reforma, o item ficaria exposto provisoriamente no Instituto Guimarães Rosa, antigo Centro Cultural Brasil-Chile, a poucos metros do Palácio de La Moneda.
Manifesto e documentário
Antes da ideia da caravana, surgiu publicar um manifesto que recordasse o significado daquela data para os muitos brasileiros que, naquele 11 de setembro, presenciaram o segundo golpe de Estado de suas vidas. A grande maioria dos que ali viviam era de pessoas ligadas à organizações que eram perseguidas no Brasil, país que já era uma ditadura desde 1964.
Surgiu assim o manifesto Viva Chile, assinado por 463 pessoas que estiveram no país durante o golpe e de familiares daquelas que já faleceram, mas que também foram partícipes desse momento histórico.
“Milhares de brasileiros se refugiaram no Chile durante o período de ditadura militar no Brasil, nos anos 60 e principalmente no início dos 70. Por algum tempo desfrutaram de paz, liberdade e puderam tocar suas vidas e seus sonhos. Após o golpe militar fascista de Pinochet, passaram a ser considerados indesejados, perseguidos, presos, expulsos do país e até mesmo assassinados pela ditadura”, diz um dos trechos do manifesto.
A iniciativa de visitar o Chile durante a semana do 11 de setembro também surgiu naturalmente, mas reuniu menos aderentes. Por decisão dos participantes, o grupo decidiu financiar a caravana com recursos próprios, sem o apoio de nenhuma organização.

Arquivo pessoal
A produtora cultura Monica Rabelo foi uma das brasileiras que viveu o golpe de 1973 no Chile e que regressará ao país andino este ano
“Desde que começamos a falar nesse retorno a Santiago, ficou claro para todos nós que era uma coisa pessoal de cada um. Algumas pessoas sentem que é o momento de acertar as contas com o passado, outras querem recordar alguma coisa. Cada um está no seu próprio processo, mas não se trata de uma questão partidária. Nós preferimos defini-la como uma ação entre amigos”, explicou o sociólogo Azevedo.
A caravana terá registro audiovisual feito por outro brasileiro que vivia no Chile na época do Golpe, o cineasta e documentarista Silvio Tendler, autor de obras como Jango (1984), Marighella: Retrato Falado do Guerrilheiro (2001), Glauber, o Filme: Labirinto do Brasil (2003), Utopia e Barbárie (2009), O Veneno Está na Mesa (2011) e entre outras.
“Eu cheguei ao Chile pela primeira vez seis dias após a posse do presidente Allende, em 1970. Me emocionei muito. Saí do país em 1972, em plena euforia pela revolução e liberdade promovidas pela Unidade Popular (como era conhecido o governo de Allende), e voltei em junho de 1973. Infelizmente, ao invés de ver a vitória definitiva daquele projeto de socialismo, eu assisti o nascimento de um dos golpes de Estado mais sanguinários da história da América Latina. Guardo essa lembrança e vou ao Chile rememorar os 50 anos dessa história”, comentou Tendler a Opera Mundi.
O cineasta também contou que pretende aproveitar a viagem para gravar cenas do seu próximo filme, que contará memórias de exilados brasileiros. “Vamos mostrar hist´órias de pessoas que estiveram no Chile e também na França”, comentou o cineasta.
Além da questão financeira, que dificultou a adesão de algumas pessoas, também houve casos de desistência devido recomendações médicas.
“Estamos falando de gente de 70 e poucos anos, alguns já passaram dos 80. Sem contar que é uma situação que pode desencadear sentimentos muito fortes, mesmo entre os que vamos viajar. Temos participantes que estão voltando ao Chile pela primeira vez depois daquela experiência, e também temos pessoas que conviviam muito próximas naquela época e que depois não se viram mais, por diferentes razões, e vão se reencontrar agora”, comentou Azevedo à reportagem.
O financiamento das placas, flores e estandartes que serão levados na viagem foi realizado a partir da venda de camisetas especiais confeccionadas para recordar a iniciativa. Segundo Azevedo, algumas pessoas que não poderão viajar, por diferentes motivos, “também compraram a camiseta como forma de contribuir. A ideia é que todos se sintam representados de alguma forma”.
Ainda em agosto, haverá duas confraternizações que servirão como “despedida” do grupo que viajará ao Chile. Uma delas acontecerá em São Paulo, na próxima sexta-feira (18/08), e a outra no Rio de Janeiro, na sexta-feira seguinte (25/08).
Especial de Opera Mundi
Em sua cobertura dos 50 anos do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 no Chile, Opera Mundi publicará uma série de reportagens especiais contando histórias de brasileiros que viveram o fim do governo Allende e o início da ditadura Pinochet.
O sociólogo Ricardo de Azevedo é o protagonista do primeiro episódio da série: “Não queremos sua sociologia aqui”, que será publicado nesta quarta-feira (16/08).