Andreas Vesalius, o maior dos anatomistas da Renascença, um dos primeiros a praticar a dissecação do corpo humano, cujas observações permitiram corrigir as noções errôneas de Galeno, considerado o “pai da anatomia moderna” e autor do atlas de anatomia “De Humani Corporis Fabrica”, morre em Zakinthos, na Grécia, em 15 de outubro de 1564.
Vesalius, Andries van Wesel em holandês, nasceu em 31 de dezembro de 1514, perto de Bruxelas, então sob o domínio do Sacro Império Romano-Germânico. Era filho de uma família reno-flamenga de sábios ligados à medicina, originários de Wesel, antigo ducado de Clèves, na Renânia Inferior.
O olhar frio, despido de toda a sensibilidade, levou o pequeno Andreas a fazer suas primeiras observações sobre a pele, os músculos, as vísceras e os ossos de cadáveres de animais e de esqueletos que os pássaros haviam limpado.
Em 1533, aos 18 anos, sob o reinado de Francisco I, passa três anos em Paris para estudar medicina. É aluno de Joannes Guinter e de Jacques Dubois, pseudônimo Sylvius, emérito professor de anatomia. O ensino que recebe foi livresco, fundado na medicina galênica e árabe. A anatomia era totalmente negligenciada e as dissecações raras.
Os cursos consistiam na leitura dos textos de Galeno, enquanto um “cirurgião” explicava como realizar uma autopsia. À época, a faculdade podia organizar duas vezes ao ano a dissecação de um cadáver. Numa delas, em um anfiteatro cheio de estudantes e curiosos, o “barbeiro”, encarregado da autópsia, sofrendo, ouve a plateia sussurrar o nome de Vesalius. Empurrado pelos colegas, ele assume a dissecação. O professor Sylvius mostra-se espantado com a destreza e inteligência do aluno. Aos 20 anos, Vesalius adquiria notoriedade como anatomista.
Polêmica sobre a dissecação de cadáveres
No século IV, a medicina era herdeira apenas de dois grandes mestres: Hipócrates (século V a.C.) e Galeno (século II). As polêmicas morais e religiosas suscitadas pelas questões da alma, da gestação, regimes alimentares ou do tratamento refletiam a influência do cristianismo sobre a medicina.
No século XV, Galeno era ainda a principal referência dos médicos. Apesar da Igreja não ter proibido a dissecação dos corpos, o mal-entendido derivou de uma bula do papa Bonifácio VIII (1235-1303) que pretendia simplesmente limitar a prática do desmembramento dos corpos.
Malgrado o acordo dos papas Sisto IV e Clemente VII, a Inquisição continuou a impor sua reprovação. Grotius, no século XVII, cognominado o “Pai dos Direitos das Pessoas” falava ainda da ‘‘profanações sacrílegas e crueldades inúteis praticadas pelos vivos sobre os mortos”.
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Maior dos anatomistas da Renascença, Vesalius quebrou os tabus impostos pela Igreja e avançou como nunca os estudos sobre o corpo humano
No século XVI, havia duas visões opostas quanto a anatomia: a da Igreja, hostil à dissecação, o que retardava o progresso da medicina. O principal argumento era que é impossível retalhar um corpo sem deteriorar sua alma; e a daqueles que buscavam ampliar o conhecimento sobre o corpo humano, portanto favoráveis à dissecação.
A dissecação dos cadáveres humanos foi reabilitada pela Universidade de Bolonha que somente a codificou na segunda metade do século XVIII. Eram dissecadas pela ordem, em função da rapidez de sua putrefação: o baixo ventre; depois o tórax, ou seja, principalmente coração e pulmões; a cabeça, ou seja, o cérebro e os órgãos dos sentidos; por fim, no quarto dia, os membros. Porém, nunca o esqueleto.
A medicina galênica era ensinada como um dogma nas universidades da Europa até a Renascença. Os erros de Galeno, mesmo os mais grosseiros, eram repetidos sem contestação.
Vesalius, a propósito, declarava: “Como os médicos julgavam que somente as afecções internas deviam estar em suas preocupações, e pensavam que o simples conhecimento das vísceras era suficiente, negligenciavam, com isso, a estrutura dos ossos, dos músculos, dos nervos, das veias e artérias. Abandonando aos “barbeiros da anatomia” a dissecação, os médicos deixavam de ter conhecimento real das vísceras. (…) Os médicos falam de coisas que jamais viram de perto e sim, aboletados em suas poltronas, conheceram pelos livros, sem jamais observar os órgãos descritos. Os outros, os “barbeiros” são tão ignorantes que não conseguem sequer fornecer aos espectadores explicações sobre as peças dissecadas. Ocorre também de dilacerar os órgãos que o médico lhe ordena mostrar. O médico que jamais pôs a mão numa dissecação, se contenta com breves e disparatados comentários”.
Em 1538, não tendo cadáveres à disposição para as suas aulas, acabou por produzir seis pranchas de anatomia que denominou “Tabulae anatomicae sex” representando o esqueleto e os órgãos internos.
Para Vesalius, a dissecação era um ato autenticamente científico. Ele próprio levava a cabo as dissecações, diante de um anfiteatro lotado. Sobre a mesa de dissecação, ao lado do cadáver aberto, eram colocadas uma pena, tinteiro e papel para que tomasse notas. Ao assim agir, passou a ser considerado o verdadeiro fundador da anatomia humana moderna.
Em 1539, a celebridade de Vesalius era tal que passa a receber um aprovisionamento regular de corpos. O juiz Marcantonio põe a sua disposição os cadáveres de criminosos executados, chegando a retardar as execuções de condenados à morte em função das “necessidades cadavéricas” de seu amigo.
(*) A série Hoje na História foi concebida e escrita pelo advogado e jornalista Max Altman, falecido em 2016.
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