Kjeld Jakobsen foi, para mim, uma mistura de chefe, mestre e amigo. Trabalhei para/com ele nos tempos do DESEP/CUT, entre 1998 e 2000, quando ele era Secretário de Relações Internacionais (SRI) da CUT, depois por um breve momento quando ele assumiu a SRI da Prefeitura de São Paulo e mais adiante no Observatório Social da CUT, do qual ele foi presidente.
Costumo dizer que a minha formação como assessor do movimento sindical e social brasileiro foi tão importante quando a minha formação acadêmica. Kjeld foi decisivo para esta minha primeira formação.
O “chefe” Kjeld – até acho engraçado dizer assim – não era um chefe no sentido tradicional. Chegava à minha mesa de trabalho, me chamava para uma conversa ou então no corredor já ia dizendo “fomos chamados pra fazer isso, que tal?”, “o que você acha de propormos uma pesquisa/projeto assim e assado?”, “tem esse evento etcétera e tal em tal parte do mundo, você pode ir”? Em 95% dos casos, eu topava porque era meu trabalho e um imenso prazer trabalhar com ele. Preparamos juntos a Cartilha da CUT no final dos anos 1990 sobre “A OMC e os Trabalhadores” e produzimos juntos três textos sobre a OMC e os impactos sobre os trabalhadores no Brasil e/ou na América Latina, dois deles sobre as negociações de bens industriais (NAMA-non-agriculture market access) e de serviços. Era sempre uma parceria fecunda: eu, o assessor técnico, e ele o dirigente sindical. Eu fazia uma primeira versão, depois de definirmos juntos as linhas gerais e o objetivo do texto, que ele editava com seu olho clínico.
Kjeld foi um mestre da negociação internacional. Tinha uma percepção rigorosa e atenta das “relações internacionais” a partir do seu ponto de vista de sindicalista-intelectual. Sempre buscando brechas para a atuação das centrais do “Sul”. Já nos anos 1990, destacou-se como uma espécie de “Celso Amorim do movimento sindical”. Portanto, antes do governo Lula e do Celso Amorim ministro. Construiu uma política de relações internacionais da CUT, em que as parcerias com as centrais do “Norte” saíam reforçadas pelas alianças com os parceiros do Sul. Conseguiu estruturar uma cooperação entre a CUT brasileira, a COSATU sul-africana e a KCTU sul-coreana que era uma obra-prima de clarividência e costura política.
Depois de sua passagem pela SRI/CUT, esta abdicou de uma política internacional, apesar de ele ter se mantido fiel, atuando sempre quando acionado como consultor. Era um dirigente sindical que não competia com o assessor, pois sabia que podia aprender com o assessor, que por sua vez saía ganhando, pois aprendia muito mais com ele. O mestre Kjeld me ensinou a pensar o mundo de maneira estratégica a partir do seu espaço de atuação. A compreensão era condição para operar mudanças. Quando a maioria das centrais dos sul se posicionou contra a “cláusula social” defendida pelo governo Clinton e pelas centrais do Norte, ele realizou o seguinte movimento estratégico: cláusula social, sim, desde que precedida por uma cláusula do desenvolvimento. E me mandou a Genebra para falar em evento da CIOLS (a antiga central sindical internacional) em evento na sede da OIT, quando os sindicalistas do Norte me receberam com luvas de pelica. Sua sacada: a cláusula social não vai avançar, mas podemos colocar a nossa agenda na mesa.
O mestre e o chefe me enviaram em missões para vários cantos do mundo: Genebra (muitas vezes), Paris (na OCDE, que tem estrutura tripartite), Oslo, Accra, Lima, Seul, Shanghai e tantos outros lugares. Ele mapeava o cenário, a “nossa” posição e me ajudava a construir a intervenção. Depois eu lhe passava o relatório da missão. Se ele não mandava, tampouco agradecia. Apenas abaixava a sua cabeça como quem diz: cumpriste a missão, camarada. Assim foi a minha parceria com a Kjeld, assim me tornei seu amigo.
Ontem, insone, quando recebi a notícia, me lembrei dos vários eventos que participamos juntos em São Paulo, Florianópolis, Porto Alegre, Salvador, Belém, Seul, Johanesburgo, Mumbai, Lima e Caracas, e por aí vai. E das cervejas que tomávamos juntos. Especialmente, de um evento em Mumbai, em que bebemos para além da conta muitas Kingfishers. Aliás, eu passei da conta. Pois beber para o Kjeld era um estado de alma, enquanto ele estava apenas começando os trabalhos, eu já estava trançando as pernas.
Roberto Parizotti/PT
Kjeld Jakobsen morreu neste sábado (06/12), aos 65 anos
Nos últimos tempos, eu passei a conviver com ele na Fundação Perseu Abramo. Convívio sempre muito fraterno. Às vezes almoçávamos, ou então combinávamos uma birita para colocar a conversa em dia. Nas reuniões com os militantes, ele sempre escutava muito. Eu passei a perceber quando ele não gostava das falas dos companheiros. Não gostava de radicalismos. Estava sempre pensando em como atuar em face dos cenários existentes, o que não impedia que por vezes defendesse pautas fortes e contundentes, mas sempre com um olhar adiante. Tinha um jeito de alçar as sobrancelhas e de levantar o indicador quando percebia que determinado tema ou posicionamento não só era relevante, mas que sua intervenção podia dar uma contribuição para precisar os termos do debate e da ação política a ser tomada.
Não posso deixar de mencionar a trajetória do Kjeld na universidade. Um sindicalista, dos eletricitários de Campinas, que trabalhou na CPFL como “aferidor de padrão” (Arthur Henrique, seu colega de sindicato nos anos 1980 e ex-presidente da CUT, me forneceu essa informação no velório), chegou à executiva da CUT e, depois, decidiu ingressar na vida acadêmica. Fez mestrado e doutorado no IRI da USP, tendo escrito bela tese em vias de publicação sobre a política externa do Governo Lula. Ele não estava em busca de chancela acadêmica. Mas de realizar uma reflexão teórica a partir da sua trajetória. E o fez com maestria. Imagino ele em sala de aula com todas aquelas teorias de relações internacionais, ele que as trazia na veia. Além disso, Kjeld foi estratégico para levar o braço brasileiro da Global Labour University – bela iniciativa da OIT, DGB, e outras entidades, para a formação de sindicalistas e de quadros técnicos a partir de uma perspectiva crítica dos trabalhadores – para o Instituto de Economia da UNICAMP. Demos aulas juntos durante uns dois anos, logo quando da sua criação.
Kjeld foi também um eterno consultor do movimento sindical internacional. Nascido na Dinamarca, estabeleceu relações muito próximas com as LO (centrais sindicais) dos países nórdicos, especialmente da Noruega. Realizou projetos de formação e organização do movimento sindical em vários países africanos. Conhecia muito bem o movimento sindical latino-americano, europeu, estadunidense e podia dar aula sobre as várias centrais sindicais indianas e sul-coreanas. Uma vez lhe perguntei em quantos países já havia estado: se bem me recordo, eram mais de 90.
Eu poderia falar muito mais sobre o Kjeld que eu conheci. O que aqui vai é apenas o filme que girou na minha cabeça entre ontem e hoje. Um último depoimento: todas as vezes em que participei com ele de eventos internacionais, no Brasil e em várias partes do mundo, eu pude observar a seguinte cena: armava-se uma espécie de fila dos companheiros de movimentos de todos os tipos e linhas ideológicas dos países os mais variados. Para saludar o Kjeld e dar-lhe um forte abraço.
Compraz-me imaginar a cena de Kjeld chegando ao céu. Depois de cumprimentar São Pedro – este pouco se importando de ver chegar mais um ateu por ali –, posso ver a imensa fila dos companheiros já idos que lá estão a esperá-lo. Para dar-lhe um forte abraço e depois conversarem sobre novos projetos e caminhos para construir a revolução que tarda, mas não falha para aqueles que são de luta. Vá em paz, guerreiro.