O recém-lançado livro Injustiçados – execuções de militantes nos tribunais revolucionários durante a ditadura, do jornalista Lucas Ferraz (Companhia das Letras, R$ 69,90) reconta a história de quatro militantes de esquerda que foram executados na década de 1970 durante a luta armada contra os militares que tomaram o poder no Brasil em 1964: Márcio Leite Toledo, Carlos Alberto Maciel Cardoso, Francisco Jacques de Alvarenga e Salatiel Teixeira Rolim. Ferraz procura reproduzir os fatos que levaram os quatro à morte, assunto polêmico, um tabu no país.
Jornalisticamente, o livro-reportagem reaviva a história de vários episódios envolvendo os quatro e seus executores. Expõe a visão de algumas pessoas ligadas à luta armada. Contudo, deixa escapar a oportunidade para revelar outra face árdua da ditadura e dos militares, que é a criação de agentes infiltrados dentro das organizações de oposição com o objetivo de exterminar seus integrantes – prática utilizada na perseguição aos militantes políticos oficialmente até o fim do período da ditadura, em 1985.
O fio condutor da narrativa no livro são os casos desses quatro militantes, considerados traidores dos movimentos revolucionários. Há também relatos de inúmeros outros casos de pessoas que estiveram ligadas à oposição à ditadura, e como os quatro personagens-chave perderam a vida de forma violenta. Todas essas histórias servem de pano de fundo aos relatos centrais sobre Márcio, Carlos Alberto, Francisco e Salatiel. Contudo, são elas que revelam a ampla atuação dos infiltrados nas organizações de esquerda e o papel determinante desses agentes nessas mortes.
As histórias dos infiltrados descrevem como agiam os militares e mostram como os serviços secretos do Exército, da Marinha, da Aeronáutica operavam criando agentes, que ficaram conhecidos como “cachorros”, para atuar junto aos movimentos de oposição, delatar seus integrantes e as ações que estavam sendo planejadas.
A importância das histórias dos “cachorros” é tão grande que, se estivessem contidas na espinha dorsal do livro-reportagem, obrigaria a alteração do nome da obra para Infiltrados. Elas comprovam a disparidade de poder entre a repressão e a guerrilha. E, de forma muito clara, que tais infiltrações foram a mola mestra para criação de cizânia dentro do movimento de oposição ao regime e, consequentemente, para as execuções daqueles que seriam considerados traidores, os injustiçados.
Em outras palavras, seria importante apurar como as execuções sumárias relatadas no livro estão atreladas à ação dos “cachorros” infiltrados nas organizações contrárias ao regime militar. A obra dá um pequeno passo nessa direção, mas se ateve ao que chamou de arbitrariedade dos atos de justiçamento.
Os casos dos chamados injustiçados se tornaram peças de propaganda a favor da ditadura, durante o regime e depois. Os militares exploraram muito bem os casos de justiçamento de militantes para colocar a população contra o movimento de guerrilha.
“As infiltrações começaram a causar grandes perdas, [o que foi] fundamental para se criar a síndrome da traição, que afeta diretamente no radicalismo dos anos finais da ditadura; e alimentaram ainda mais as desconfianças e paranoias. Elas ajudaram a turvar mais o cenário a partir de 1970. A repressão se infiltrou em todos os grupos, mesmo naqueles que não apoiavam a luta armada (caso do PCB). Não diria que elas provocaram a situação, mas as infiltrações (e seu sucesso na baixa de militantes presos ou assassinados) foram cruciais para se entender o contexto dos justiçamentos”, explica Ferraz em entrevista a Opera Mundi.
Importante destacar que, dos quatro personagens executados relatados por Ferraz, três pertenciam à Ação Libertadora Nacional (ALN) – Márcio, Carlos Alberto e Francisco –, e Salatiel era do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Tanto ALN como PCBR tiveram a mesma matriz em suas formações. Nasceram de dissidências do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Com a leitura do texto de Ferraz, é possível observar que em três casos – Márcio, Carlos Alberto e Salatiel – houve envolvimento direto do Cenimar (Centro de Informações da Marinha), o serviço secreto da Marinha que agia na repressão contra a oposição e infiltrados ligados a este órgão. Já o caso de Francisco esteve relacionado ao Exército e à intriga entre um major e o irmão da vítima.
A Opera Mundi, Lucas Ferraz alega que a “participação dos infiltrados de fato é importante nessa parte final da luta armada, ainda mais no contexto dos justiçamentos”. O objetivo dos militares era criar clima de desconfiança entre todos os guerrilheiros, o que Ferraz chama de “síndrome da traição”, e assim facilitar o desmantelamento das organizações de esquerda.
Segundo o autor, os justiçamentos de guerrilheiros entraram na ordem do dia da esquerda a partir de 1971, quando se inicia o período que historiadores consideram a fase terminal da guerrilha brasileira. Foi um momento crítico, marcado pelo isolamento popular, com indivíduos e organizações vivendo em situações extremas e caçados pelos órgãos da repressão.
Nessa fase, os guerrilheiros iniciaram ações de vingança para punir os inimigos, que poderiam ser policiais, militares e civis que colaboravam com a repressão e quem quer que fosse considerado traidor – caso dos militantes que passaram a colaborar com a ditadura ou cujo comportamento errático, julgamento feito sempre pelos próprios guerrilheiros, tornava-se um risco à própria causa.
Márcio Leite de Toledo
As delações dos dedos-duros, segundo Ferraz, tiveram início já em 1968, no fim de junho, quando foram realizadas 22 prisões de estudantes ligados a organizações de esquerda. Entre os detidos e indiciados pela Lei de Segurança Nacional estava Márcio Leite de Toledo.
No mesmo ano de 1968, a ALN enviou Márcio e outros militantes a Cuba, para realizar treinamentos militares. Eram 26 integrantes da organização escolhidos por Carlos Marighella que ficaram na ilha por quase dois anos.
Mas, nessa convivência em Cuba, observa Ferraz, Márcio teve um entrevero com um conhecido informante dentro da ALN, José da Silva Tavares, o Severino. Também manteve amplo contato com outra pessoa que mudou de lado e passou a colaborar com a repressão quando retornou ao Brasil. Trata-se de Hans Rudolf Jacob Manz, responsável pela delação de vários esquemas, aparelhos e integrantes da esquerda em São Paulo, especialmente de integrantes da ALN.
A infiltração de Tavares na ALN levou à delação do líder da organização, sucessor de Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, o Comandante Toledo, preso em 23 de outubro de 1970. Câmara Ferreira morreu sob tortura.
Tavares havia feito um acordo com o delegado Sérgio Paranhos Fleury e o Cenimar durante sua prisão em Belém do Pará – em setembro de 1970 – e passou a atuar como delator.
A prisão e morte do líder Toledo levou os integrantes da ALN ao pânico e colocou as organizações de esquerda que promoviam a resistência através da luta armada em situação delicada diante de possíveis traidores. Teria sido nesse momento que surgiram os tribunais revolucionários para julgar aqueles que mudaram de lado.
A atuação de Márcio foi questionada por dirigentes da ALN e resultou na sua própria morte, executado por Carlos Eugênio Paz, o Clemente, em 1971, numa ação conjunta do comando da organização e do grupo tático armado.
A execução do militante, segundo o jornalista Ivan Seixas, ex-preso político e um dos fundadores do Núcleo de Preservação da Memória Política, deve ser creditada à ditadura e aos órgãos de repressão.
Apesar de o caso ser bastante espinhoso dentro das organizações de esquerda, em junho de 2013 foi promovido ato público para resgatar a memória de Márcio, o que obteve apoio de parte dos militantes e foi criticado por outros.
“Como eu não aceito que tenha sido justiçamento, também não aceito que tenha sido um assassinato racional de alguém. Eu culpo a ditadura porque a morte dele acontece logo depois da morte do Joaquim Câmara Ferreira. E como eu disse no ato em memória dele [no Núcleo de Memória Política em junho de 2013], estava reconduzindo Márcio a algum lugar. Porque ele não estava na galeria dos traidores, nem na galeria dos heróis. Estava em lugar nenhum. Então tinha que fazer uma reabilitação da sua memória, do papel histórico dele. Isso causou problemas. Parte da esquerda não queria que eu fizesse”, afirma Seixas um dos organizadores do ato em homenagem a Márcio Toledo.
“Fiz a reabilitação de Márcio porque a organização que participava à época estava muito assustada. Havia perdido dois líderes seguidamente – o Marighella e o Toledo. Uma pessoa assustada atira na própria sombra. E a sombra da ALN naquele momento era o Márcio Toledo, que não era um traidor. Teve um comportamento duvidoso. Mataram ele. Foi um erro, obviamente que foi. Isso é uma verdade. Das pessoas que participaram (do assassinato) só o Carlos Eugênio [Paz] assumiu. Os outros já estavam mortos, e foram santificados, enquanto o Carlos Eugênio estava vivo e era criminalizado por uma parte da esquerda”, afirma ele. “Conversei com o Carlos Eugênio depois e ficou bem evidente que a gente não pode ter esse comportamento dúbio. É um assunto espinhoso, mas tem de encarar com tranquilidade, com serenidade, com grandeza histórica para fazer justiça, inclusive com o Márcio Toledo”, completou Seixas.
A ditadura se aproveitou do caso Márcio para fazer propaganda contrária aos grupos de resistência. Em 1971, os militares divulgaram texto chamado “Os justiçamentos no terrorismo”, assinado por Manoel Henrique Ferreira, preso pelo Exército e obrigado a assinar denúncia contra o que chamavam de “radicalismo dos grupos armados”. “Os integrantes (…) já não podem divergir das orientações de seu comando, sob pena de serem julgados como diversionistas, traidores ou de estarem com ‘desvio ideológico’”, dizia a carta-denúncia, cujo trecho está reproduzido no livro de Ferraz. Esse texto, por sugestão do SNI, foi publicado à época em vários jornais, como a Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil.
“Fica evidente que a ação dos chamados ‘cachorros’ na delação e perseguição aos militantes de esquerda foi muito forte e levou a muitos erros dos grupos armados. Fazia parte daquela guerra e a ditadura soube se aproveitar muito bem dessa situação criada por ela mesma”, argumenta Maria Claudia Badan Ribeiro, historiadora, companheira de Carlos Eugênio, codinome Clemente, que faleceu em junho de 2019, e autora do livro As mulheres na luta armada – Protagonismo Feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional) (Ed. Alameda).
“O justiçamento foi colocado em prática pelas organizações armadas, em situações dramáticas e muito especificas. Inaugurava-se a época dos chamados ‘cachorros’, os seduzidos pelas promessas apresentadas pela repressão, de não serem presos, não responderem a processos, de não irem parar na vala comum dos chamados ‘terroristas’. Colaboração deliberada e às vezes sem nenhum um grito de dor nas salas de tortura. Há uma grande diferença entre um corpo que trai e aquele que se entrega à ignominiosa tarefa de ajudar a matar”, explica Ribeiro, ao apontar que Carlos Eugênio não se arrependeu do que viveu e do que fez. “Ao dizer isso, ele não defendeu a morte, nem fez apologia à violência. Teve a lucidez de enfrentar seu passado e de assumir responsabilidades, rompendo o pacto de silêncio. Não queria que a sua história sucumbisse à mentira, à desonestidade ou até à autocomplacência. Sabia que, ao contar o que revelou, seria crucificado”.
De acordo com a historiadora, Carlos Eugênio “sabia que sua experiência serviria de algo, para evitar que os mesmos atos de que tomou parte voltassem a ocorrer: como marcar a morte de alguém. A luta não era incompatível com a vida, embora um revolucionário tivesse que enfrentar os dilemas de morte. Clemente viveu suas verdades e não deixou de ser Clemente por toda a sua vida. E é isso o que importa”.
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Livro reconta história de militantes de esquerda executados na década de 1970, mas falha na questão dos infiltrados
O caso de Carlos Alberto Maciel Cardoso
O Cenimar está envolvido também no caso da execução de Carlos Alberto Maciel Cardoso. O ex-militar da Marinha paraense foi condenado por insubordinação e subversão nos expurgos promovidos pelas Forças Armados logo após o golpe de 1964. Foi preso novamente em 1971 por participar da ALN. Ferraz conta no seu livro que Carlos Alberto, depois de escutar proposta dos agentes do Cenimar, decidiu colaborar com a repressão.
Um documento mais recente, da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), mostra que Carlos Alberto ficou preso no Cenimar do Rio de Janeiro, onde fez acordo com os militares para repassar informações sobre a ALN e, em troca, ganharia a liberdade. O mesmo documento da Abin revela que o ex-militante, assassinado em 13 de novembro de 1971, não teria cumprido o acordo. Tais informações não constam do livro de Lucas Ferraz.
“Preso no dia 9 de novembro de 1971, Carlos Alberto foi transferido para o Cenimar. No dia seguinte, prestou declarações sobre suas atividades e concordou em passar a trabalhar para os órgãos de segurança. Para isso, foi solto para cobrir um ponto na Tijuca. Na ocasião, ficou estabelecido que, depois do ponto com a ALN, faria um contato por telefone, com um integrante do Cenimar, o que não aconteceu”, registra a Abin, no documento encaminhado à Comissão sobre Mortos e Desaparecidos.
Um dia antes da sua execução, o irmão de Carlos Alberto, Paulo Sérgio, e a namorada, Maria da Conceição, foram presos. Paulo foi torturado na sede do Comando do 1º Distrito Naval, no centro do Rio de Janeiro. Foi retirado da prisão dois dias depois para reconhecer o cadáver do irmão no IML. “Paulo Sérgio notou que o corpo estava oco, sem as vísceras do peito e de regiões da cabeça. No lugar, colocaram palha, mistério que nunca decifrou, pois essa não era uma prática comum nas vítimas da ditadura”, escreve Ferraz.
Execução de Salatiel Teixeira Rolim
A execução de Salatiel Teixeira Rolim também contou com a participação de agentes do Cenimar. Teve como protagonista uma amiga, Maria Tereza Ribeiro da Silva, uma infiltrada.
Em uma carta escrita por Maria Tereza em agosto de 1969, mostra o livro, é revelado que ela teria comprado dois veículos com dinheiro fornecido por Salatiel. Por causa do conteúdo dessa carta, Maria Tereza foi presa por agentes do Cenimar e convencida a atuar como espiã dentro do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), organização à qual Salatiel pertencia.
Para trabalhar como infiltrada, ela recebia salário mensal. Fornecia informações sobre os integrantes do PCBR e concordou em colaborar na captura de Salatiel, que também teve o filho Sérgio sequestrado pelos militares. Atuou até mesmo na perseguição de presos políticos brasileiros no Chile na década de 1970.
Para conseguir libertar o filho Sérgio, também preso pelos militares em setembro de 1969, Salatiel procurou o líder da ALN, Carlos Marighella, para tentar incluir Sérgio na lista dos guerrilheiros que seriam trocados pelo embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick, que havia sido sequestrado. Mas não conseguiu. Então iniciou um processo de afastamento gradual da organização de esquerda.
Um relatório escrito por Maria Tereza ao comando do serviço de inteligência da Marinha mostra que ela manteve contato com Salatiel no primeiro semestre de 1973, momentos antes do processo de execução do ex-integrante do PCBR, observa Ferraz.
Em julho de 1973, pouco mais de um ano depois de deixar a prisão, Salatiel foi morto numa lanchonete no Leblon, onde trabalhava. Participaram da execução quatro jovens que ainda não haviam sido presos, integrantes do “comissariado nacional provisório” do já quase extinto PCBR: Ramires Maranhão do Vale, Almir Custodio de Lima, Vitorino Alves Moitinho e Ranúsia Alves Rodrigues.
Meses depois, no dia 27 de outubro, os quatro acabaram executados por integrantes do Exército na praça Sentinela, em Jacarepaguá, no Rio. Um comunicado do I Exército da época informava que eles morreram em troca de tiros ao resistir à prisão. Mas laudos do IML apontaram que os três homens foram carbonizados dentro de um carro e que Ranúsia, que estava fora do carro, tinha marcas de tiros no rosto e no peito.
Ranúsia havia sido presa na manhã de 27 de outubro e teria sido levada para a praça para atrair os outros três integrantes do PCBR. Ela e os quatro rapazes foram os últimos integrantes do partido assassinados pela repressão.
A ex-companheira de Ramires, Maria Socorro Diógenes, contou a Opera Mundi que ficou sabendo algum tempo depois do ocorrido com Salatiel e Ramires. “O partido se resumia ao grupinho em que Ramires estava no Rio de Janeiro. Eram só os quatro. Quem não estava preso havia sido assassinado pela ditadura”, relata.
Sobre Salatiel, Maria Socorro conta que ele levava uma vida normal depois que deixou a prisão e passou a trabalhar na lanchonete no Leblon. “Ele só trabalhava lá, não era o dono do comércio. Sua execução foi uma ação muito besta, sem fundamento”, observa.
Ela acredita que as mortes dos integrantes do PCBR foram todas organizadas pelos militares, “até as execuções do Ramires, Almir, Vitorino e Ranúsia”. “Creio que os três homens haviam sido mortos nos porões dos quartéis e levados para a praça em Jacarepaguá para atrair a Ranúsia. Desconfio que já estavam mortos. O carro que explodiu e pegou fogo foi só uma cena. Moradores disseram que o veículo com os três já estava lá havia muito tempo até que chegou a Ranúsia. Metralharam ela porque ela estava viva. Os três estavam carbonizados, só ela apresentava marcas de tiros”, conta.
A morte de Francisco Jacques Alvarenga
Já a execução de Francisco Jacques Alvarenga possui ligações com o Exército. Ele foi morto no dia 28 de junho de 1973 numa escola no Rio de Janeiro, com quatro tiros. Um mês antes, deixara a prisão, onde havia sofrido torturas aterrorizantes na mão do major Euclides da Silva Chignall. Foi obrigado a assinar documento que declarava estar arrependido de participar da luta armada.
Três pessoas mataram Alvarenga. A ligação com a ALN se deu porque os executores picharam numa das paredes da escola a sigla da organização e deixaram um comunicado justificando o ato em represália ao fato de Alvarenga ter envolvimento na prisão e morte de outro guerrilheiro, Merival Araújo.
Alvarenga já havia sido preso anteriormente no Rio. Fora torturado porque os militares queriam informações sobre Merival, acusado de ter participado da execução do delegado de polícia Otávio Gonçalves Moreira Júnior, o Otavinho. Além disso, a bronca aumentava porque o militar responsável pela captura de Alvarenga era o major Chignall.
Chignall formou-se em 1954 na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em turma integrada também pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável pelo Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo e pela tortura, morte e desaparecimento de dezenas de presos políticos, crimes que lhe renderam acusações e até mesmo uma condenação na Justiça civil.
Além da amizade com Ustra, na Academia, Chignall também fora amigo de Cláudio Heitor Moreira de Alvarenga, irmão mais velho de Francisco. Cláudio Heitor e Chignall mantinham desavenças políticas desde 1954, por posições ideológicas diferentes.
Foi Chignall que invadiu a casa do professor em 1973 e passou a torturá-lo na frente da família. “Filho da puta, irmão de filho da puta, seu irmão é que deveria estar aqui”, teria dito na ocasião, segundo o livro.
Em 1999, Cláudio Heitor, ao ler livro do jornalista Luiz Maklouf Carvalho Mulheres que foram à luta armada, descobriu que a ativista dos direitos humanos Maria do Amparo Almeida Araújo admitira ter integrado o grupo que matou o professor Alvarenga. Para Cláudio Heitor, seu irmão foi vítima “dos loucos da direita e dos loucos da esquerda”.
Outros casos
Nos casos satélites de execuções citados no livro, há histórias baseadas em fontes militares que necessitam de investigação mais profunda. Ou uma rechecagem de informações e dados, pois são fatos que apontam para a participação de militares nessas execuções e seu uso para intrigar os guerrilheiros com a população local.
Por exemplo: no que foi chamado de justiçamento de um lavrador pelos guerrilheiros do PCdoB na região do Araguaia em 1972, não há consenso. O autor narra a história do camponês João Pereira da Silva, dado como primeira vítima entre os moradores locais após a chegada dos militares para conter o levante na região.
O livro diz que João foi executado em junho de 1972, e o crime, usado pelos militares para desconstruir a boa imagem dos revolucionários entre os camponeses. Isso é verdade. A execução teria sido provocada porque – na versão divulgada – o pai José havia colaborado com os militares.
Entretanto, uma ação movida pelo Ministério Público Federal em janeiro de 2002 mostra que João Pereira da Silva foi “supostamente morto” por ter levado militares à casa dos guerrilheiros Maria (Maria Lúcia Petit) e Lena (Regilena de Carvalho). Nesta ação, a Procuradoria da República destaca tal crime como “dano à população civil” e “violação à integridade dos moradores”. Já a Comissão Nacional da Verdade, em relatório final, aponta que João foi morto por justiçamento. Estas informações não estão em Injustiçados.
Também ficaram de fora do livro a versão dada por um militar que atuou na perseguição e morte dos guerrilheiros no Araguaia, José Vargas Jimenez, codinome de Chico Dólar. Jiménez diz em seu livro Bacaba: memórias de um guerrilheiro de selva da guerrilha do Araguaia que o lavrador foi executado por ser suspeito de guiar na busca do corpo do Cabo Rosa, que perdera a vida num confronto direto com os guerrilheiros na selva.
A história sobre o camponês ter servido como guia do Exército também está expressa no Orvil (anagrama da palavra livro), organizado pelo próprio Exército como resposta ao livro Brasil Nunca Mais, para mostrar sua versão sobre a ditadura, mas que não chegou a ser veiculado oficialmente.
A Comissão Camponesa da Verdade denomina o caso de João como “polêmico”. O relatório final de 2014 aponta que o fato, à época, foi “usado pelos militares para fazer propaganda contra a guerrilha”.
Além de divulgar o fato de que João havia sido assassinado pelos guerrilheiros comunistas como exemplo para a população local, os militares espalharam na região a história de que o adolescente teria sito esquartejado vivo pelos “terroristas”, o que não ocorreu. A família, contudo, informa que ele morreu com um tiro perto do coração.
Essas histórias estão registradas nos termos de declaração dada por Maria Creuza Rodrigues dos Santos, viúva do lavrador, à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em 2008 e no depoimento conjunto dos irmãos de João, Jota Orlando Pereira da Silva, Jacy Santiago Pereira da Silva, e de Maria Bonfim Pereira de Oliveira (filha de João) ao Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) em 2012. No entanto, também não constam em Injustiçados.
(*) Eduardo Reina é jornalista e autor do livro Cativeiro sem fim: As histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil.