Em maio de 2021, o presidente autoritário de El Salvador, Nayib Bukele, anunciou a adoção oficial dos bitcoins como moeda do país para uma plateia gringa e falando em inglês. Semanas depois, em 9 de junho de 2021, num parlamento controlado pelo seu partido (Nuevas Ideas), Bukele impôs a Lei dos Bitcoins em tempo recorde, sem debate com a oposição, e muito menos com a sociedade salvadorenha. A sociedade protestou, mas se viu forçada a engolir a novidade, incompreensível para a maioria. Parte dessa história foi narrada em minha última coluna no Opera Mundi.
A Lei Bitcoin foi elaborada com a consultoria de Jack Mallers, um jovem de Chicago, guru das criptomoedas, que ficou milionário com aplicativos de pagamentos em bitcoin. Ainda é preciso investigar quanto Mallers recebeu do Estado salvadorenho por essa consultoria, bem como o potencial conflito de interesses entre a Lei Bitcoin e os negócios de Mallers, dono de empresas como a Strike e a Zap, aplicativos de pagamentos em bitcoins e conversores de moedas.
Passados quase três anos do anúncio de Bukele, os bitcoins permaneceram com uso residual e quase inexistente no cotidiano da maioria dos salvadorenhos. A Lei Bitcoin permite inclusive pagamentos de salários na criptomoeda. Contudo, em fins de 2023, segundo o National Bureau of Economic Research, somente 20% das empresas de El Salvador aceitam bitcoin como meio de pagamento.
Por trás desse aparente fiasco, porém, existe uma inovação neoliberal bem sucedida, que abre uma nova fronteira do extrativismo financeiro na América Central. Mesmo não adotada pela população, a permissividade especulativa dos bitcoins acelera a espoliação de territórios de comunidades litorâneas, que estão sendo expulsas por resorts de turismo predatório baseado em cripto-investimentos e gigantescas obras para infraestrutura de mineração… de bitcoins.
O projeto de Bukele de transformar El Salvador em um paraíso fiscal, uma “pequena Suiça” de investidores cripto, gera particular interesse para um mercado de capitais de risco, lavagem de dinheiro e grandes multinacionais da construção civil. Dois exemplos da megalomania dos bitcoins de Bukele são a Bitcoin City (Departamento de La Unión) e a Bitcoin Beach (Departamento La Libertad), os mais novos enclaves financeiros da inovação neoliberal de Bukele: paraísos fiscais com alto potencial destrutivo para as comunidades salvadorenhas.
Bitcoin Beach: extrativismo financeiro na meca dos bitcoiners
A Bitcoin Beach é o novo nome imposto à praia de El Zonte, uma pequena cidade litorânea de 3 mil habitantes há 42 quilômetros da capital San Salvador, que está sofrendo com o impacto do enclave de bitcoins criado por Bukele. Em junho de 2021, a agência Reuters a descreveu como um lugar miserável prestes a ser “salvo” pelo bitcoin: “pobre, com ruas fétidas e um sistema hídrico defeituoso. Mas em um sentido, está à frente do resto do país: lá tem bitcoin”.
El Zonte agora é nomeada como a “meca dos bitcoiners” por Roman Martínez, empresário entusiasta da criptomoeda que se auto-descreve como “líder comunitário em Bitcoin Beach”. Ele ganha a vida realizando workshops e eventos publicitários em defesa dos bitcoins de Bukele e do empreendimento Bitcoin Beach. Antes conhecida como cidade do surfe, agora El Zonte vive uma operação de rebranding. As paisagens paradisíacas são associadas à ideia de “paraíso cripto” supostamente alternativo.
A conta Bitcoin Beach no X (ex-Twitter), com 81 mil seguidores, diz: “o pequeno projeto que derrubou o sistema financeiro mundial”. Os bitcoiners de El Salvador se proclamam “anti-sistema”, de mãos dadas com a nova extrema direita mundial e o neoautoritarismo. Enquanto isso, entregam uma versão ainda mais violenta do próprio sistema.
A criação de um polo financeiro para cripto-investidores com requintes de paraíso caribenho abriu um processo violento de especulação imobiliária em El Zonte. Centenas de famílias da comunidade já foram prejudicadas. A construção de resorts baseados nas projeção de um turismo predatório do mercado bitcoin está desalojando famílias que vivem na região há décadas. Estas, por sua vez, recebem indenizações simbólicas, que já não compram terrenos no mesmo lugar devido à intensa gentrificação.
A terra em El Zonte virou um ativo inflacionado pela atração dos cripto-investidores. Os valores são cada vez mais impeditivos. Em 2022, terrenos vendidos por 8 mil dólares para mega-empreendimentos turísticos já valiam mais de 5 vezes esse valor em poucos meses. Segundo o líder comunitário de El Zonte, Wilfredo Urrías, a avalanche de bitcoins “traz mais oportunidades para investidores enquanto dá menos oportunidades para população local”[1]. Entrevistado pela jornalista Silvia Viñas, Urrías atua em uma associação cooperativa popular que maneja a distribuição de água na comunidade. Ele teme que a autogestão da água seja destruída pela demanda hídrica desproporcional dos novos resorts, e acabe prejudicando o acesso à água da população local.
Enquanto a tragédia anunciada do extrativismo financeiro se desdobra em Bitcoin Beach, a 230 quilômetros dali, no extremo leste do país, está sendo projetado o mais megalomaníaco projeto cripto da era Bukele: a Bitcoin City.
Bitcoin City: um vulcão de capital especulativo
A Bitcoin City é a ponta de lança de um complexo financeiro-tecnológico-turístico em torno da economia do bitcoin, planejado pelo regime Bukele em associação com o capital estrangeiro. É o empreendimento cripto mais futurista criado até hoje.
A cidade Bitcoin será construída do zero no pequeno Departamento de La Unión (34 mil habitantes), estrategicamente próxima do vulcão Conchagua. A energia do vulcão será o motor geotérmico da mineração de bitcoins, que requer ultraprocessadores intensivos em consumo energético. Segundo um estudo da Universidade de Cambridge, a “mineração” de bitcoins em todo planeta consome hoje mais energia do que toda a economia da Argentina (mais de 121 terawatts/hora).
Por causa do vulcão, Bukele faz uso de uma retórica pseudo-ecológica de uso de “energia limpa” misturada à atratividade do mercado de capital cripto, que terá à sua disposição uma reserva energética para fins especulativos sem precedentes no mundo. Assim, faz confusão intencional e calculada sobre o caráter supostamente ecológico da sua política de extrativismo financeiro. É um mestre da publicidade, ninguém pode negar.
Bukele anunciou que a construção da Bitcoin City será financiada com a abertura do capital da empresa estatal mista LaGeo, que emitiria títulos chamados “Volcano bonds” para captar 1 bilhão de bitcoins (quase 70 trilhões de dólares, três vezes o PIB dos EUA). O PIB de El Salvador corresponde a irrisórios 4,5% desse valor. É óbvio que a LaGeo não tem a menor capacidade de sustentar essa dívida, mas tudo gira em torno de um megalomaníaco mercado de capitais futuros e, sem metáforas, uma especulação vulcânica.
O Bitcoin Office, a estrutura criada pelo governo de El Salvador para administrar a Lei Bitcoin e seus megaempreendimentos, anunciou em dezembro de 2023 a aprovação de um marco regulatório para os Volcano Bonds, que começaram a ser emitidos em 2024. “Esse é só o começo para o novo mercado de capitais em Bitcoin em El Salvador”, dizia o post do Bitcoin Office no X.
Pela lei de El Salvador, nenhum imposto incide sobre os bitcoins, que assim encontram um ambiente financeiro mais desregulamentado do que Milton Friedman e Friedrich Hayek jamais poderiam imaginar no tempo das finanças analógicas. O impulsionamento de um processo especulativo desse tamanho ajuda a compreender a escala da ambição autoritária de Bukele, bem como os poderes financeiros aos quais ele se associa. A megalomania do presidente é óbvia: ele pretende transformar El Salvador em uma “Suíça dos bitcoins”, um verdadeiro refúgio de capitais com origem desconhecida e suspeita.
Dessa forma, a Bitcoin City já é um paraíso fiscal mesmo antes de existir. Sua construção vai se capitalizar com base em títulos potencialmente sem lastro, que se pagam pelo ineditismo e ousadia da promessa do “vulcão bitcoiner”.
Um novo tipo de extrativismo financeiro está em curso, orientado pela ideologia libertária. Os libertários, aliás, dão a linha ideológica da seita de defensores das criptomoedas, que se disfarçam com uma retórica utópica, anti-sistêmica e pseudoalternativa para inaugurar procedimentos inéditos de apropriação da natureza pelo mercado.
Ganhos e perdas
Além de financiar uma estrutura institucional polêmica dentro do Estado de El Salvador, que gasta quantias não divulgadas com o Bitcoin Office e a gestão da economia bitcoin no país, o dinheiro dos contribuintes salvadorenhos tem sido usado para investir em capital cripto. Esse foi um dos flancos mais atacados pela oposição salvadorenha, que critica a opacidade dos gastos de dinheiro público em capital especulativo.
Até 15 de março, ninguém sabia quantos bitcoins tinham sido adquiridos pelo Estado de El Salvador, nem tampouco quantos bitcoins o próprio Bukele administra em seu patrimônio particular. Essa especulação deu origem ao site Nayib Tracker, um rastreador de negócios bitcoin que estima quanto capital teria sido investido pelo Estado salvadorenho e pelo próprio Bukele a partir de suas postagens em redes sociais.
Em fevereiro de 2024, Bukele anunciou no X que a alta de 40% do bitcoin havia gerado rendimentos milionários para o Estado de El Salvador. Provocou a imprensa internacional crítica, alegando que sua política estava gerando rendimentos públicos sem precedentes. Em março, publicou no X um print da carteira de investimentos do Estado de El Salvador com 5.689 bitcoins (390 milhões de dólares). Mais uma vez, sua estratégia de publicitário foi bem sucedida. Será mesmo que El Salvador lucra com esse investimento? Quem mais ganha com isso?
Uma das empresas que têm ganhado dinheiro com pagamentos cripto em El Salvador é a Lightning Labs, fundada pela CEO Elizabeth Stark. A empresa detinha um capital de 140 milhões de dólares em 2023. Considerada a “rainha das criptomoedas” em um mercado dominado por homens, Stark tem doutorado em Direito e Tecnologia pela Universidade de Harvard e, além de administrar sua startup milionária, leciona em Stanford e Yale. A rede de aplicativo de pagamentos Lightning Network tem sido amplamente utilizada pelos bitcoiners em El Salvador.
Outra empresa com grandes potenciais de lucro nos bitcoins de Bukele é a Tether, que declarou participar com uma quantia desconhecida dos 250 milhões de dólares de capital inicial da Bitcoin City. A Tether pertence à iFinex, fundada em 2012 em Hong Kong, que também detém a Bitfinex, esta sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. As empresas operam pagamentos e conversões de criptomoedas e estão cercadas de suspeitas sobre fraudes relacionadas com a ausência de lastro de suas operações. Esse “conglomerado de startups” soma ativos de mais de 8 bilhões de dólares.
Muitas outras empresas estão se dando bem com os bitcoins de Bukele e expandindo sua zona de atuação. Enquanto isso, o tal investimento estrangeiro prometido pelo presidente gera pouquíssimos empregos, é altamente especulativo, cria fluxos protegidos de lavagem de dinheiro e dá origem a processos de espoliação territorial, despejando comunidades de seus territórios para abrir espaço a grandes empreendimentos da economia cripto, como a Bitcoin City e a Bitcoin Beach. A escala de valores dos bitcoins (1 bitcoin equivale a 69 mil dólares) é incompatível com a escala da economia popular. Fica cada vez mais óbvio que a população salvadorenha carrega o ônus dessa aventura.
Muitas suspeitas ainda pairam sobre os bitcoins de El Salvador. Comandado por um presidente que já prendeu mais de 75 mil pessoas sem processos judiciais adequados, o país precisa ser observado de perto como um experimento novo de choque, que funde autoritarismo com neoliberalismo. Ali se abre, com violência, uma nova fronteira extrativista financeira para capitais de risco e eventual lavagem de dinheiro, o que faz do país um possível foco de crimes financeiros – dessa vez, disfarçados de alternativismo cripto.
(*) Joana Salém é Historiadora da América Latina contemporânea, Doutora em História Econômica pela USP e professora da UFABC.