“Bitcoin é uma das primeiras políticas que Bukele realizou com a democracia já desmantelada. Não poderia ter feito isso em uma democracia”. A afirmação é do jornalista salvadorenho Nelson Rauda, repórter de El Faro, para o podcast “Bukele: El señor de los sueños”, produzido pela Radio Ambulante. Ele completa: “Bitcoin é muito bom em El Salvador, quando você não é salvadorenho”.
A economia salvadorenha é dolarizada desde 2001. El Salvador foi o primeiro país do mundo a adotar bitcoins como moeda oficial, reconhecida pelo Estado para toda e qualquer troca comercial. O anúncio sobre a criptomoeda foi realizado pelo presidente autoritário Nayib Bukele em maio de 2021: ele falava em inglês para uma plateia de estrangeiros – o que muito revela sobre os verdadeiros beneficiários da medida. Tratava-se de um modelo de negócios disfarçado de política pública.
Os próprios salvadorenhos souberam da adoção oficial dos bitcoins por seu Estado, digamos, em “segunda mão”. No dia do anúncio, ao lado de Bukele estava Jack Mallers, um jovem CEO de Chicago, vanguardista no mercado de bitcoins que ficou milionário com criptomoedas. Mallers falou antes de Bukele e se emocionou ao imaginar que a Lei Bitcoin faria de El Salvador um paraíso cripto-libertário. O pioneirismo do país, disse Mallers, deveria inspirar o mundo. Não sabemos quanto recebeu pela consultoria, e muito menos quanto suas empresas lucraram desenhando sistemas de pagamentos em bitcoin para esse novo “paraíso”, afinal a transparência não é o forte do regime de Bukele.
A notícia rapidamente viralizou pelo mundo em chave ambígua – Bukele era um “ousado”, “inovador”, “vanguardista”, mas também “ditador”, “oportunista” e “autoritário”. Eleito presidente em junho de 2019, aos 38 anos e com 53% dos votos no primeiro turno (dispensando, portanto, o segundo), tornou-se o mais jovem chefe de Estado da história do país.
Publicitário-político
Antes da presidência, Bukele tinha sido prefeito de Nuevo Cuscatlán (um povoado de 6,9 mil habitantes) entre 2012 a 2015, e depois prefeito da capital San Salvador (2015 a 2019). Quando governou essas prefeituras, o salvadorenho-palestino ainda era um membro atípico da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) – a esquerda histórica do país – que o incorporou como solução publicitária para contornar uma profunda crise de representatividade. Literalmente: a empresa publicitária do pai de Nayib Bukele, onde ele (o filho) trabalhou por 12 anos antes de entrar na política, prestava serviços eleitorais para FMLN desde os anos 1980.
Para realizar essa ascensão meteórica, Bukele aplicou sua expertise de publicitário à sua própria imagem, conseguindo mesclar realizações faraônicas em infraestrutura urbana com uma eficiente demagogia sobre a queda do número de homicídios nestes municípios e o enfrentamento às pandillas (gangues). Funcionou.
Em 2018, Bukele rompeu com a FMLN, que rechaçou sua candidatura à presidência e o expulsou do partido por um acúmulo de conflitos. Ele venceu as eleições presidenciais de 2019 junto a um partido pequeno de extrema-direita, a Gran Alianza, que foi colonizado rapidamente pelo seu poder pessoal. Uma vez eleito presidente de El Salvador, Bukele criou seu próprio partido, o Nuevas Ideas, integralmente sob seu controle. Ao mesmo tempo, centralizou o poder em suas mãos, mobilizou militares contra o parlamento, eliminou adversários da Fiscalía (Ministério Público) e do Judiciário (nomeou novos ministros da Suprema Corte), acabou com a independência entre poderes e destruiu as leis que bloqueavam seu caminho rumo à uma reeleição inconstitucional em fevereiro de 2024. Tudo numa velocidade e dramaticidade típica de “série gringa”, dizem os salvadorenhos.
Inovação neoliberal: Bukele, Mallers e a Lei Bitcoin
A política de bitcoins foi uma das mais fortes campanhas publicitárias do regime de exceção de Bukele, cheia de falsas promessas e consequências desastrosas para população salvadorenha. Ainda assim, a popularidade de Bukele persiste. Analistas dizem que sua popularidade não se deve à Lei Bitcoin, muito pelo contrário. Essa Lei teria sido um dos pontos críticos de seu governo, cuja popularidade cresceu com a política linha dura que encarcerou 75 mil cidadãos a pretexto de sua participação (duvidosa) em pandillas, e assassinou mais de 70 pessoas no cárcere.
Afinal, quais eram as promessas de Bukele com a Lei Bitcoin? Por que o próprio Bukele evitou falar do assunto nos anos que sucederam sua implementação? Quais os mitos do bitcoin infiltrados em El Salvador e como a população se decepcionou? Quais as verdadeiras consequências dessa adoção?
A Lei Bitcoin foi aprovada em El Salvador em 9 de julho de 2021. A comissão da Assembleia Legislativa responsável por debater a matéria o fez em 85 minutos, como conta Nelson Rauda, com a métrica do jogo da seleção salvadorenha de futebol que ocorria simultaneamente (em 90 minutos): foi um atropelo mais rápido que a partida. A Lei tinha sido elaborada com consultoria de Jack Mallers, o estadunidense que acompanhava Bukele no dia do anúncio para os gringos.
Mallers tinha 27 anos quando assessorou Bukele com a Lei Bitcoin. CEO de startups, ele fundou o Strike e o Zap, aplicativos de investimentos e pagamentos em bitcoin, quando tinha vinte e poucos anos. Hoje seu patrimônio é avaliado em quase 100 milhões de dólares. Para os bitcoiners, se Mallers é um herói que universalizou a criptomoeda como meio de pagamento no mundo, Bukele fez de El Salvador uma fronteira do experimento cripto. São idolatrados por uma rede de seguidores, que consideram as criptomoedas como pilar de um novo paradigma de sociedade.
Uma das promessas da Lei Bitcoin era driblar o pagamento de taxas e impostos das remessas de dólares enviados por familiares salvadorenhos dos Estados Unidos a El Salvador. Era um forte apelo, pois atualmente as remessas dos EUA representam impressionantes 25% do PIB de El Salvador. Ao mesmo tempo, parecia contraditório que uma medida feita supostamente para “beneficiar” os salvadorenhos tinha como contrapartida a queda de arrecadação tributária do próprio Estado de El Salvador. Um paradoxo que só pode ser explicado pela aliança ideológica entre a ideologia libertária dos bitcoiners e o autoritarismo de Bukele.
Na realidade, não há nada de contraditório. O bitcoin, como se sabe, é irrastreável, não taxável, e se fundamenta na “autonomia em rede” dos emissores e verificadores de códigos que certificam a existência daquele valor. Trata-se de uma moeda sem Estado, ou ainda, uma moeda contra qualquer regulamentação do Estado. A Lei Bitcoin de El Salvador não teria sido aprovada sem um regime autoritário, como assegura Rauda, e ao mesmo tempo dilapida as receitas do Estado que a aprovou. Existem isenções automáticas de impostos a todas as transações realizadas com a moeda. Ou seja, um regime autoritário que se vale da ideologia libertária para destruir a receita do Estado, dilapidar mecanismos de controle financeiro, desregulamentar de maneira radical e sem precedentes a circulação de riqueza no país. O nome disso, podemos dizer, é inovação neoliberal, como sempre de mãos dadas com ditaduras.
A Lei de Bukele / Mallers foi aprovada por uma Assembleia Legislativa esmagadoramente controlada pelo partido de Bukele, o Nuevas Ideas. Os salvadorenhos, porém, protestaram e foram tomados pela incerteza. Para lidar com a impopularidade da lei, Bukele resolveu “presentear” (ou seria chantagear?) a cidadania com 30 dólares por cidadão por meio de um aplicativo chamado Chivo Wallet.
O fracasso da Chivo Wallet
O artigo 7 da lei Bitcoin gerou revolta imediata da população salvadorenha, pois obrigava que todos aceitassem bitcoin como meio de pagamento de qualquer mercadoria. Ninguém sabia o que era bitcoin e qual seria o valor de uso real dessa moeda em sua vida cotidiana. Para apaziguar a insatisfação, Bukele foi às redes sociais explicar que os salvadorenhos seriam obrigados a “aceitar” o bitcoin, mas não a “receber” em bitcoin. Ninguém entendeu.
Essa “mágica” (aceitar bitcoin, receber em dólar) seria feita pelo aplicativo Chivo Wallet – eventualmente desenhado pela equipe de Mallers, em um óbvio conflito de interesses. Chivo, por curiosidade, é uma gíria salvadorenha que significa “descolado”, “cool” – a própria autoimagem de Bukele. Todos os salvadorenhos que baixassem a Chivo ganhariam automaticamente 30 dólares em bitcoin, valor que também poderiam sacar em dólares se desejassem.
Foi um festival de fraudes: salvadorenhos inscreveram seus números de identidade no app e perceberam que seus 30 dólares já tinham sido sacados por outra pessoa, outros conseguiram sacar mais de uma vez os “mesmos” 30 dólares, alguns que perderam dinheiro, outros que ganharam.
Passados quase três anos da Lei Bitcoin, é possível afirmar que a adoção de bitcoins não funcionou em termos massivos. Até porque atualmente 1 bitcoin equivale a 71 mil dólares e os pagamentos da economia popular iriam requerer 4 ou 5 casas decimais em bitcoins. Por exemplo, um refrigerante de 5 dólares vale 0,00007 bitcoins.
Em fins de 2023, a repórter Silvia Viñas, da Radio Ambulante, percorreu as ruas de San Salvador pedindo para pagar pequenas compras em bitcoins. Encontrou pouquíssimos estabelecimentos que aceitavam a criptomoeda de fato. Em um deles, a comerciante disse que somente estrangeiros e turistas usavam a moeda.
Apesar disso, em El Salvador existe uma terra livre para bitcoiners, um enclave de “investimento” – ou talvez melhor chamar de “extrativismo financeiro”. É um território que está sendo fortemente afetado pela economia cripto, que combina a megalomania da construção civil característica de Bukele, a gentrificação, o turismo predatório, e a possibilidade fácil de lavagem de dinheiro que só o bitcoin oferece. É a Bitcoin City, um complexo de praias turísticas – inclusive a Bitcoin Beach – que se tornaram um território particularmente impactado pela Lei Bitcoin.
É sobre isso que falaremos na parte 2 deste texto, que será publicado nessa mesma coluna em breve.
(*) Joana Salém é Historiadora da América Latina contemporânea, Doutora em História Econômica pela USP e professora da UFABC.