Um gambito. Talvez a inesperada troca dos chefes da Defesa da Federação Russa por Vladimir Putin, ao tomar posse como presidente de seu país pela quinta vez, seja o equivalente às aberturas sacrificiais do xadrez, cujo objetivo é confundir o adversário ao lhe conceder uma falsa vantagem. De certa forma, Putin sacrificou o próprio Ministério da Defesa como uma instância militar ao trocar o general Shoigu pelo doutor Andrey Belousov.
Figura singular, o doutor é economista e cientista; nos anos 1980, se dedicou à cibernética, fazendo um zigue-zague entre a alta tecnologia e a economia. Conhecido por estudos céticos sobre os problemas econômicos russos, sempre foi um homem forte da previsão econômica – e também um xamã dos avanços tecnológicos. Ele substitui Serguei Shoigu, um engenheiro civil que subiu nas patentes militares enquanto ministro.
Belousov é filho do renomado economista – e veterano da Segunda Guerra – Rem Belousov, que esteve ligado às reformas Kosygin-Liberman na União Soviética, cujo legado é tão polêmico quanto ambíguo. Seu pai continuou como figura de respeito e faleceu já no século 21, deixando cinco tomos sobre a história da economia russa, embora tenha sido um especialista na teoria dos preços.
A escolha de Belousov, segundo o porta-voz do governo russo, Dmitri Peskov, se deve ao fato de que “o Ministério da Defesa deve estar absolutamente aberto à inovação, à introdução de todas as ideias avançadas, para criar condições para a competitividade econômica” – e isso não parece forçado, nem dissimulado. O currículo acadêmico do escolhido fala por si, mas as implicações disso são vastas.
Shoigu, o ex-todo poderoso
Serguei Shoigu chegou a ser lido até como potencial sucessor de Vladimir Putin. Antes, ele gozava da reputação de ser um conciliador hábil, cuja vitória na Síria constava como seu grande feito. Shoigu serviu como uma luva para Putin. No início do terceiro mandato do presidente, em 2012, um escândalo terrível desmoralizou Anatoly Serdyukov, seu homem de confiança na Defesa, que passou cinco anos comandando uma reforma ousada.
De início, Shoigu surgiu como um homem providencial, pois se posicionava no ponto médio entre os velhos generais e a obsessão modernizadora de tecnocratas como Serdyukov – que, no fundo, era reflexo dos desejos inconfessáveis de Putin. Shoigu assume com sua contraparte na chefia do Estado-Maior, Valery Gerasimov; passaram os últimos 12 anos enfrentando desafios tremendos e um projeto de conciliação.
Shoigu já estava em Moscou há décadas. Filho de um líder político de Tuva, república russa de maioria turca, e uma mulher ucraniana, ele era um caso raro de minoria étnica no topo do poder da Federação Russa, sendo o popular ministro de Situações de Emergência – onde ele, um engenheiro de formação, foi militarizado, tomando gosto pela farda e as patentes, a ponto de atingir o posto de general.
Há quem aponte Shoigu como uma das lideranças militares que, junto de elites de diplomatas e agentes de inteligência, arremessou pela janela os neoliberais ao estilo de Boris Yeltsin, evitando, no entanto, que os comunistas voltassem ao poder. Esse movimento, como sabemos, tornou Putin presidente russo pela primeira vez, mas também tornou Shoigu um ministro aparentemente intocável.
A sorte de Shoigu terminou com o início do conflito na Ucrânia. Depois de anos protelando o conflito, talvez ele acreditasse que a OTAN jamais ousaria avançar sobre a Ucrânia – ou que uma marcha ou um desfile militar implodiria qualquer governo mais ousado de Kiev. Como vimos, o desenrolar dos fatos não foi bem assim: o Ocidente desafiou abertamente a Rússia no mar Negro e já tinha uma nova “armadilha de urso” pronta.
A situação chegou ao extremo com um levante militar dos mercenários do Grupo Wagner, alegadamente mirando a liderança débil de Shoigu e Gerasimov. Sob o comando de Yevgeny Prigozhin, a iniciativa foi neutralizada: Putin estancou a hemorragia da “marcha para Moscou” rápido e Prigozhin terminou morrendo “misteriosamente” dois meses depois, em um “acidente” de avião, passando de amigo do presidente para “traidor”.
Isso não apagou os erros de logística e falta de fornecimento de armas e munição no front ucraniano, alegados por Prigozhin. A imagem dos homens fortes da Defesa parecia irremediavelmente chamuscada, por mais que Prigozhin tenha sido derrotado e encontrado um fim trágico. Logo, velhos escândalos de corrupção imputados a Shoigu e seu grupo vieram à tona, em abril deste ano, mas não havia sinais de que Putin tomaria uma atitude.
Ainda ecoavam os ventos da grande contra-ofensiva ucraniana de 2023, cujo destino foi um fracasso retumbante, se chocando com a intransponível “linha Surovikin”, o moedor de carne montado pelo general russo de mesmo nome, que chefiou por meses a ofensiva russa, mudando a estratégia de uma ofensiva para uma defensiva estratégica das áreas dominadas – jogando a desmoralização para o lado ucraniano.
Hoje, o moral da tropa ucraniana é que está em baixa. Depois de ter repelido o avanço russo, protegido Kiev e liberado a região de Kharkov, o seu moral elevado se desmanchou no ar: quando, por pressão da OTAN e seus investimentos de centenas de bilhões de dólares, a Ucrânia teve de se lançar numa contra-ofensiva a qualquer custo, a sorte se inverteu, sobretudo com a Rússia tendo superado a blitz das sanções econômicas ocidentais.
O doutor
Andrey Belousov ostenta honoráveis cabelos brancos, uma doce ironia, já que seu sobrenome deriva do termo “bigode branco”. Mas a única coisa de militar que o doutor tem é a ausência de barba ou bigode, embora nem assim ele se pareça com um oficial – talvez com um senador romano. Nas últimas décadas, ele viu colegas de geração ascender, como a presidenta do Banco Central, Elvira Nabiullina, enquanto ele esquentou o banco do primeiro escalão russo.
Antes, Belousov chegou a ser ministro do Desenvolvimento Econômico por um mísero ano (2012-13), depois virou assessor econômico de Putin e chegou a vice-premiê em 2020, mas seu estrelato se deu apenas agora: e é um fato notável a escolha de um cientista, e tecnocrata civil, para o posto de chefe Defesa, ainda mais em tempos de guerra – que ninguém sabe quando e onde vai parar – em um país de reconhecida tradição bélica.
O momento da posse do quinto mandato foi oportuno para Putin: um novo ciclo começava, em uma eleição que referendou suas ousadas decisões, para a tristeza dos analistas pró-ocidentais, que em 2022 falavam em “desastre” e coisas afins sobre o presidente russo. À mesa, em 2024, Putin tinha a figura do leal e eficiente Belousov, envolvido na produção de drones, e que foi seu leal consultor econômico-tecnológico na década de 2010.
A caudalosa obra de Belousov, em russo, dificulta, literalmente, a leitura de suas ideias ao mundo. Mas é uma escrita pesada, mesmo quando pública, uma vez que é, desde muito, destinada a tomadores de decisão, como anota Dmitry Prokofiev em artigo no Novaya Gazeta, no qual condensa as ideias do novo ministro – que é uma espécie de Yanis Varoufakis ao inverso, um homem de Estado com teoria, não um teórico na cúpula do poder.
Embora crítico da economia planificada da União Soviética, Belousov também se manteve distante do neoliberalismo hegemônico nos anos 1990 – como lembrado pelo economista francês especializado em Rússia Jacques Sapir, que o conheceu no período. Essa meia-distância, coerente há mais de trinta anos, esquentou o coração gélido de Vladimir Putin, cuja trajetória é um obstinado afastamento do legado dos anos 1990.
No artigo de Prokofiev, temos um Belousov que enverniza seus escritos mais próximo a um homem de Estado do que de um teórico, ainda que engajado. A análise belousoviana da União Soviética é quase o espírito do tempo dos anos 1960, no qual não poucos quadros nutriam aspirações paradoxais de amor pelo socialismo real, que os colocou no topo, com ódio contra o mesmíssimo socialismo por este limitar suas pretensões burguesas.
É essa tensão que os reformistas de 1965, como Belousov pai, buscavam equacionar. Em que pese, é claro, falarmos aqui de uma geração que cumpria os ritos e as praxes de tecer loas a um marxismo no qual, talvez, não acreditassem mais – o que talvez nos ajude a entender porque o velho Brezhnev tenha, em parte, bloqueado o núcleo das reformas de Kosygin, que foram postas em marcha plenamente na Perestroika.
O grande impasse daquelas décadas gerou o período da estagnação, no qual o socialismo real resistiu sem, no entanto, resolver se mover. A polaridade entre os burocratas e a classe trabalhadora, que até ali tinham caminhado juntos, mas que agora precisavam de um novo pacto – que o velho Brezhnev não tinha como oferecer de outra forma, a não ser adiar o choque final, apenas mediando e conciliando.
A questão é que, premeditadamente ou não, o revisionismo soviético, ao destruir o que buscava conservar, tendia em direção a uma forma particular de via prussiana, cuja meta era um capitalismo administrado e ordo-liberal – e é nessa tradição que Belousov filho se insere, sem precisar fazer maiores genuflexões ou jurar mentindo o amor que estava sorrindo pela foice e o martelo.
No final, Belousov terminou mais putinista do que Putin. Enquanto este alternou um discurso nacionalista como uma pragmática acomodação em relação a certa herança econômica e geopolítica do neoliberalismo, a força normativa dos fatos mudou a realidade, colocando itens como indústria, integração eurasiática e desenvolvimento do mercado interno como necessidades para a liderança russa, que é o que Belousov dizia desde sempre.
O problemas econômicos na Federação Russa
A Rússia, como devemos sempre lembrar, saiu do buraco dos anos 1990 organizando – e estatizando – seus negócios de exportação de gás, os quais garantiam dinheiro rápido, fácil e em moeda forte. Com Putin usando a estatal Gazprom para irrigar os potentes bancos públicos, absorvendo a dívida externa, ele estabeleceu as bases da reconstrução do país, depois de décadas de estagnação e até declínio real.
Mas o país também se viciou no remédio que o curou. E receitas econômicas como a de Belousov pareciam distantes, embora ele tivesse virado vice-premiê em 2020, posição que ocupou discretamente, quando o assunto ainda era a pandemia global e as relações com a União Europeia iam bem na medida do possível. Tudo mudou, contudo, após a disrupção entre Rússia e Ocidente na Ucrânia, o que obrigou Moscou a sair da zona de conforto.
O que nunca ficou na berlinda, no entanto, foram o conhecimento tecnológico e os dotes pedagógicos de Belousov, que foi consultor de Putin sobre uma infinidade de assuntos como moeda digital, inteligência artificial, etc. Em meio a uma guerra, com a necessidade de reorganizar a indústria – sobretudo a militar – com urgência, poucos quadros teriam a capacidade de prover soluções como o doutor Belousov.
O argumento belousoviano que encantou a liderança russa mostra que se as necessidades impõem um orçamento militar maior, isso também impõe o dever de transformar esse setor em um produtor de inovação para o mercado interno. Não é uma ideia nova; aliás, é muito do que os Estados Unidos fazem talvez desde a Segunda Guerra Mundial. Mas também alude ao espírito do seu artigo profético de 2003, onde ele vê a necessidade de mudar o paradigma.
Com um orçamento militar russo em cerca de 9% do PIB, falamos de uma máquina complexa e gigantesca, ainda mais em tempos em que a logística e a gestão de recursos é, literalmente, vital. Há, portanto, dois desafios básicos: primeiro, fazer a produção e distribuição de armamento fluírem na linha de frente e, por último, gerenciar um setor que precisa produzir com eficiência máxima – o que foi enfatizado por Putin na posse de Belousov.
Mais do que isso, a vida na Rússia dependerá de uma grande reconversão industrial, supondo que uma época de paz se avizinhe – ou terá de expandir mais ainda seu complexo militar-industrial, caso a OTAN cumpra suas promessas ameaçadoras. Nas duas hipóteses, Putin precisa, de fato, menos de um general e mais de um cientista no comando, o que é algo inédito na história da Federação Russa como continuidade da União Soviética.
Isso também se deve ao passado recente. O planejamento econômico russo para uma situação como a atual superou, de longe, suas previsões militares. Portanto, o cenário bélico na Ucrânia favoreceu a entrada de economistas na Defesa, em vez de militares na equipe econômica. De todo modo, os estudos de Belousov dão pistas de que sua chegada não só antevê mudanças na Defesa, mas também na economia russa, com um novo industrialismo.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária