Em princípio, todos querem a paz. Por isso, desde 1945, a guerra é considerada um recurso ilegal nas relações entre os países. “Os membros da Organização das Nações Unidas deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”, é o que diz o Artigo 2º da Carta da ONU.
Mas como o mundo deve reagir a governos que atacam sua própria população? Como é possível impedir que milhares de pessoas inocentes sejam esmagadas em bombardeios aéreos lançados por aeronaves de seu próprio país? E como frear estupros, torturas, detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, recrutamento de menores e outros flagelos provocados por guerras civis, sem recorrer à força? Teria sido possível deter o genocídio em Ruanda, a matança entre gangues no Haiti e o absoluto desgoverno na Somália sem o envio de tropas internacionais? Infelizmente, não.
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Há momentos em que o mundo é confrontado com o dilema da guerra, com o dilema entre matar ou deixar morrer, entre fazer o que é mal ou apenas menos mal. Mas quem diz quando é legal, legítimo e moral matar alguém? E quem decide quando esse momento chegou?
Na última quinta-feira (17/03), o Conselho de Segurança da ONU cruzou uma fronteira “histórica” nas palavras de seu secretário-geral, Ban Ki-moon, e aprovou a adoção “de todas as medidas necessárias” para impedir que o líder líbio Muammar Al-Qadhafi cumpra a ameaça de atacar os rebeldes na cidade de Benghazi “sem perdão e sem compaixão”.
Aparentemente, a Resolução 1973/2011 contradiz o Artigo 2º da Carta da ONU. “A resolução da ONU viola a Carta das Nações Unidas”, foi exatamente o que disse o chanceler líbio, Mussa Kussa. Mas, na prática, a medida aprovada com dez votos favoráveis, cinco abstenções e nenhum veto – é legal, embora possa ser questionada quanto à sua legitimidade.
O chanceler Kussa sabe que, como em toda regra, esta também tem exceções. A Carta diz que a guerra é admitida em duas situações: em caso de reação a uma agressão estrangeira e sob aprovação do Conselho de Segurança da ONU.
Como se vê, nas relações entre os Estados, a garantia da harmonia repousa na possibilidade do uso da força. A paz é mantida pela permanente ameaça da guerra. E ontem, mais uma vez, a organização que nasceu das cinzas da Segunda Guerra Mundial, sob a promessa de erigir um mundo pacífico, deu luz verde para que a máquina de matar dos países mais poderosos do mundo despeje sua força sobre a Líbia.
Juridicamente, o argumento dos dez países que aprovaram a medida – o Brasil foi um dos cinco que se abstiveram, juntamente com China, Rússia, Índia e Alemanha – é o de impedir um massacre da população civil. A julgar pelas informações das agências da ONU, mais de 300 mil pessoas já fugiram dos combates na Líbia, cruzando as fronteiras com Egito, Tunísia, Níger e Argélia. É uma urgência humanitária. E a ameaça de bombardear os rebeldes em Benghazi agravaria ainda mais a situação de milhares de mulheres, crianças e idosos presos sob o fogo cruzado.
Moralmente, a resolução da ONU é, portanto, louvável, mas, na prática, ninguém é capaz de calcular se mais civis morrerão antes ou depois que o Ocidente entre nessa guerra. Foi precisamente este dilema que fez com que o Brasil se abstivesse na votação. Afinal, a ONU quer impedir um massacre enviando caças e mais bombas à Líbia? Qual o sentido disso tudo?
Certamente, há uma agenda política e econômica que move muitos dos países que aprovaram a resolução. E é isso – somado à ordem arcaica do próprio Conselho de Segurança, onde 16 países decidem por 192 – que torna questionável a legitimidade da resolução. Mas, ao mesmo tempo, as ameaças do governo líbio foram inacreditavelmente irresponsáveis, provocativas e flagrantemente violadoras para serem ignoradas.
“Qualquer tráfego civil ou militar será alvo de uma contra ofensiva líbia no Mediterrâneo”, foi o que disse o governo da Líbia, de acordo com os grandes jornais ocidentais. Note que a ameaça menciona especificamente “tráfego civil”, além de militar. Não é pouca coisa que um Estado se manifeste assim publicamente, lançando uma ameaça expressa contra “civis”, o que viola todas as normas da guerra, sejam as regras expressas textualmente, sejam os costumes seguidos ao longo da história dos conflitos armados.
Não é realista pensar que o Conselho de Segurança pudesse ignorar uma ameaça direta de ataque a civis e uma promessa de esmagar “sem compaixão” os inimigos do governo líbio. Mas não foi só. A resposta de Qadhafi também foi assustadora. “Isso (a decisão do Conselho de Segurança) é loucura, insanidade, arrogância. Se o mundo enlouquecer, enlouqueceremos junto. Vamos responder. Faremos de sua vida um inferno, porque estão fazendo isso da nossa. Eles nunca terão paz.” Novamente, ela, a paz.
O debate sobre o uso da força na Líbia mostra o quanto o desejo de paz expresso pelo direito internacional ainda está distante de sua aplicação efetiva. Mais do que isso, prova que a legalidade e a legitimidade do uso da força nas relações internacionais é algo sujeito a uma complexa agenda econômica e política, não apenas a imperativos humanitários. Afinal, Israel talvez seja o país do mundo mais condenado por resoluções da ONU, mas nem por isso o Conselho de Segurança aprova o uso de “todas as medidas necessárias” para fazer com que a ocupação israelense recue aos limites da Linha Verde.
João Paulo Charleaux é correspondente do Opera Mundi no Chile.
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