Marianne Faithfull entoa uma simples canção de amor: “O amor é a porta de entrada/ o amor é a razão pela qual viemos para cá/ ninguém poderia oferecer mais a você/ você sabe o que quero dizer?/ seus olhos realmente já viram?”. A voz desgastada e cavernosa da intérprete de 64 anos dá aos versos quase banais um significado particular, quente, ardido.
Marianne foi moça de vocais folk, macios, menos conhecida por ser a intérprete original de “As Tears Go by” (1964), de Mick Jagger e Keith Richards, do que por namorar aqueles dois Rolling Stones. Em 1969, começando a se desvencilhar da imagem folk-loira, ela compôs com Jagger e Richards a “drug song”: “Sister Morphine”. Iniciava-se ali longa e lenta travessia rumo à artista altiva de voz cult, nicotínica, que só fez se avolumar de 1979 para cá.
Leia mais:
Nina Hagen agora é gospel: o que muda na sua música?
Orgia ou romantismo, o que Kylie Minogue está propondo?
Novo CD do LCD Soundsystem ataca fãs e heróis do espaço pop
Desde a volta por cima que foi o autoral Broken English (1979), a cantora e compositora inglesa tem usado o desgaste em favor de um repertório elegante e elaborado, em que cabem Bertolt Brecht e Bob Dylan, Noel Coward e Nick Cave, Brian Eno e Beck, Leonard Cohen e Billy Corgan, Kurt Weill e Damon Albarn, PJ Harvey e Marianne Faithfull.
De uns álbuns para o atual Horses and High Heels, ela tem igualmente voltado, aqui e ali, ao repertório romântico que preferia na juventude, e que preconceitos musicais correriam para tachar de fáceis ou menores. Nessa clave, cabem, lado a lado com Brecht & Weill, canções prosaicas de Elton John, Carole King, Smokey Robinson, Dolly Parton… E cabe a “Love Song” do primeiro parágrafo, possivelmente a faixa mais corpulenta de Horses and High Wheels, ao lado da também candidamente pop “Goin’ Back”, de Carole King e Gerry Goffin.
Divulgação
“Love Song” é criação de uma artista algo obscura, chamada Lesley Duncan, que no início dos anos 1970 ensaiou uma carreira de estrela pop na linha de Karen Carpenter, dos Carpenters. Na maior parte do tempo, no entanto, Lesley era uma cantora de estúdio que fazia backing vocals em discos de nomes como Pink Floyd, The Alan Parsons Project e Elton John.
Lançada em 1969 em formato single, “Love Song” foi percebida por um Elton John também em início de carreira, que a transformou numa das canções de força de seu terceiro álbum, Tumbleeweed Connection (1970). Nessa versão, Lesley fazia a voz feminina que duplicava com a do dono do disco. O sucesso da nova versão rendeu à autora um contrato solo com a gravadora Columbia e Lesley prolongou os 15 minutos de fama proporcionados pela “Love Song”. Logo o tema amoroso foi regravado por cantoras como Dionne Warwick, Peggy Lee, Vikki Carr e Olivia Newton-John.
A seguir perdeu-se no tempo-espaço, mas volta a ser lapidado agora, 40 anos depois, não só na versão de Marianne, mas também noutra do veterano cantor country-pop Neil Diamond, em Dreams, álbum de covers de Beatles, Bill Withers, Harry Nilsson, Leonard Cohen e outros. A redescoberta não se deve só à beleza simples, otimista e tristonha de “Love Song”: Lesley morreu no ano passado, aos 66 anos – e morreu ouvindo a canção que a quase celebrizou, segundo seu marido.
Leia também:
Bruce Springsteen já não canta que nasceu nos EUA
Bob Dylan e o grande segredo da indústria da música
De Menudo a pai: a jornada pessoal de Ricky Martin
Havia um Oceano Atlântico de distância entre eles dois
Evocando o passado, Bryan Ferry apresenta novas composições no estilo Roxy
Marianne sai ganhando na reverência, pois a interpretação rouca atinge regiões sombrias que a voz de Lesley parecia cobiçar, mas não alcançava – e que Elton John nunca pretendeu beliscar. Além da melodia tensa, revelam-se retesados versos aparentemente bobos como “o amor é a chave que devemos abrir/ a verdade é a flama que devemos incendiar/ a liberdade é a lição que precisamos aprender/ você sabe o que eu quero dizer?/ seus olhos realmente já viram?”. Havia uma aspereza naquelas palavras, que talvez só a “irmã morfina” Marianne Faithfull pudesse desmascarar.
Siga o Opera Mundi no Twitter
Conheça nossa página no Facebook
NULL
NULL
NULL