No começo de novembro, a Promotoria Nacional chilena (o Ministério Público do país) denunciou a existência de um cartel das empresas de papel higiênico e de guardanapos, que estariam há mais de dez anos combinando seus preços e forçando aumentos constantes no valor dos produtos – o preço médio de um pacote de quatro rolos de papel higiênico no comércio chileno varia entre 1,5 e 3 mil pesos (entre R$ 8 e 16).
Cerca de duas semanas depois, após trâmite recorde, o Congresso chileno aprovou um projeto de lei proposto pela frente de esquerda, liderada pelo Partido Comunista, que propõe penas de prisão para os empresários envolvidos em crime de formação de cartel e colusão de preços. O projeto foi aprovado no Senado no dia 17 de novembro e falta somente a sanção por parte da presidente chilena, Michelle Bachelet, para se tornar lei.
Senado de la República de Chile / Divulgação
Sessão no Senado chileno no dia 17 de novembro, quando foi aprovada a lei que prevê prisão para envolvidos em formação de cartel
A investigação do “escândalo do papel higiênico” nasceu de depoimentos entregues através do mecanismo da delação premiada, com alguns executivos das empresas CMPC (dona de cinco das 11 marcas que participam do mercado) e SCA (dona de outras três) que reconheceram haver colaborado com o esquema de colusão e entregaram documentos que comprovaram a acusação, em troca de diminuição das possíveis penas por sua participação. O escândalo envolve, entre outros, o empresário Eliodoro Matte, um dos mais ricos do país – ele é um dos três chilenos que aparece no ranking da revista Forbes entre as mil maiores fortunas do mundo.
O caso ganhou rapidamente grande repercussão no país, ainda mais considerando que, desde 2012, este já é o quinto cartel descoberto no Chile. Antes disso, foram conhecidos casos de colusão de preços envolvendo farmácias, viações intermunicipais, empresas de carne de frango e administradoras de fundos de pensão.
Trâmite recorde
Diante dessa polêmica, ganhou força no país uma proposta de reinstaurar a lei que pune com pena de prisão os empresários envolvidos em casos de colusão empresarial. Até o ano de 2002, o Chile contava com uma lei de responsabilidade empresarial, que punia casos de colusão com penas de prisão. Tal mecanismo deixou de existir em 2003, a partir de uma lei lançada e promulgada pelo ex-presidente Ricardo Lagos (2000-2006), que fez com que o Tribunal da Livre Concorrência só pudesse decretar sentenças econômicas. “A falta de casos de impacto talvez tenha sido o que permitiu que a sociedade não reagisse a essa medida, naquela época. Hoje, os chilenos entendem como esses cartéis prejudicam suas vidas e favorecem a perversidade do mercado, e é o momento de corrigir esse erro histórico”, comentou a deputada comunista Camila Vallejo.
O projeto de lei apresentado pelo PC e por outras três pequenas forças de esquerda (Revolução Democrática, Movimento Socialista e Esquerda Cidadã) não altera a lei de Lagos, mas entrega maior capacidade de atuação da Justiça comum para casos de crimes empresariais – alguns dos quais são totalmente restritos ao Tribunal da Livre Concorrência –, permitindo estabelecer penas de entre três a dez anos de prisão aos envolvidos, dependendo do grau de participação.
O mais curioso da controvérsia política gerada a partir do novo projeto aconteceu dentro da aliança governista chilena, já que um grupo de parlamentares do Partido Democrata Cristão – que também forma parte da Nova Maioria, a coligação que apoia o governo de Michelle Bachelet – se manteve reticente em apoiar a iniciativa. “Todos são contra a formação de cartéis, mas não se pode generalizar e criminalizar a atividade empresarial, e atentar contra a produtividade do país. Precisamos de uma nova legislação que pense em como separar melhor os bons empresários dos maus”, comentou o senador Andrés Zaldívar, um dos que não concorda com o projeto comunista.
Ainda assim, e graças à prioridade dada ao tema pelo governo chileno, o projeto teve um rápido trâmite. Foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça no dia 10 de novembro, e pela Câmara no dia 12. A aprovação no Senado no dia 17 teve 32 dos 38 votos possíveis – uma maioria garantida pelas alterações sugeridas pelo Partido Democrata Cristão ao projeto, que precisam ser ratificadas pela Câmara antes da assinatura presidencial.
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Reprodução Twitter Municipio Ricoleta
Farmácia Popular na comuna de Ricoleta, em Santiago
Farmácia Popular
Com a divisão dentro da coalizão governista, a oposição vem tentando se omitir com relação ao debate sobre o cartel do papel higiênico. A única declaração sobre o tema foi dada pelo senador Víctor Pérez da ultraconservadora UDI (União Democrata Independente), alegando que “foi a esquerda, através de um presidente socialista (Lagos), que acabou com a pena de prisão, reduzindo a multas, que são incapazes de reprimir essas condutas”. Pérez acredita que “a colusão é um câncer que afeta a liberdade, e por isso a legislação tem que resguardar essa liberdade, e nós que acreditamos neste modelo temos que ser inflexíveis em defender o princípio de livre mercado, que é o que permite o crescimento da economia”.
Porém, o tema que levou a direita a atuar energicamente foi a criação da Farmácia Popular, outra iniciativa comunista. Criada por Daniel Jadue, prefeito da comuna de Recoleta, em Santiago, o estabelecimento vende medicamentos a preço de custo.
A farmácia de Recoleta criou rapidamente um conflito com as farmácias convencionais, principalmente porque, ao ser inaugurada simultaneamente à denúncia de um caso de colusão por parte da Promotoria Nacional, trouxe de volta ao debate o caso do cartel das farmácias – que envolveu as redes farmacêuticas SalcoBrand, Cruz Verde e Ahumada –, o primeiro a ser descoberto.
Alguns dos medicamentos vendidos pela Farmácia Popular de Recoleta chegam a ser 1.600% mais baratos do que em uma farmácia convencional. O Eutirox, medicamento contra o hipotiroidismo, por exemplo, custa cerca de 10 mil pesos chilenos (equivalente a R$ 55) nas farmácias convencionais e está disponível na farmácia de Recoleta por 630 pesos (R$ 3,50). Já o antidepressivo Ipran custa 2,3 mil pesos (R$ 12,50) no novo estabelecimento, enquanto as redes tradicionais cobram mais de 40 mil pesos (R$ 216) por ele.
Jadue, o prefeito de Recoleta e responsável pela iniciativa, afirma que “a diferença dos preços revela algo duro: que as farmácias, depois do cartel ser descoberto, depois da aplicação das multas, mantiveram o cartel vigente, e os preços continuaram sendo inflados”.
Desde a inauguração da Farmácia Popular, os partidos da oposição vêm tentando barrar seu funcionamento. Primeiro, com uma liminar na Justiça para questionar sua legitimidade, alegando que a prefeitura não pode exercer atividade com fim de lucro e que o estabelecimento vende remédios que deveriam ser distribuídos gratuitamente nos postos de saúde. Para poder derrubar a liminar, o prefeito teve que comprovar que o estabelecimento repassa os remédios pelo mesmo valor por que foram adquiridos dos laboratórios, e que não trabalha com medicamentos distribuídos gratuitamente.
A oposição também impediu a convocação de Jadue para uma palestra no Congresso Nacional, na qual apresentaria uma proposta, que o governo de Bachelet pretende patrocinar, para criar farmácias similares em outras regiões do Chile. O porta-voz do governo, Marcelo Díaz, argumentou que “o projeto é muito bom e não somente pelos preços que favorecem o consumidor, mas também pelo fato de que o Chile tem pelo menos 30 comunas que não possuem nenhuma farmácia, e algumas estão em regiões do extremo norte ou do extremo sul, obrigando as pessoas a viajarem quilômetros para conseguir um remédio”.
Díaz garantiu que o governo deverá apresentar um projeto nacional de farmácias populares à Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados até o fim de 2015.