Travestis e transsexuais na Argentina, que estavam entre as populações minoritárias mais marginalizadas, viram o respeito por seus direitos crescer nos últimos anos, especialmente desde que o casamento entre pessoas do mesmo sexo se tornou legal no país há um ano e meio atrás.
“O casamento igualitário nos tornou mais visíveis, e as portas começaram a abrir”, disse a travesti Valeria Ramírez, líder da seção transgênero em Buenos Aires da AIDS Foundation (FBAS), à IPS.
Telam
Um livro publicado em 2005, La gesta del nombre proprio (que grosseiramente pode se traduzir como “a épica luta por um nome próprio”), descreveu a intolerância, a humilhação, a marginalização e até ataques sofridos por travestis no país sul-americano. Ele também reporta que a principal causa de mortes entre este grupo populacional é a AIDS, e a segunda causa de morte é o assassinato.
A lei sobre o casamento homossexual foi aprovada pelo Congresso e entrou em vigor em julho de 2010, após uma intensa campanha por direitos iguais pela Federação Argentina de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros.
A norma foi a primeira deste tipo a ser aprovada na América Latina. Desde então, 2.700 casais homossexuais se casaram, ganhando os mesmos direitos e obrigações dos casais heterossexuais.
Mas travestis e transsexuais também estão lutando por uma lei de identidade de gênero que poderá permitir que sua carteira de identidade corresponda à aparência e exiba o nome fantasia mais que aquele dado no nascimento.
A discrepância entre a apresentação de gênero e a documentação é um enorme obstáculo para pessoas transgênero na educação formal, no emprego, na habitação ou na saúde, a não ser que eles escondam sua identidade transgênero.
Embora cerca de 50 transsexuais na Argentina que tiveram cirurgia de redesignação de sexo nas últimas décadas tenham obtido documentos refletindo suas novas identidades após duradouras batalhas legais, nenhuma lei ainda foi aprovada para garantir aquele direito sem o requerimento de medicação extensiva e testes psicológicos.
Neste mês, a câmara baixa do Congresso aprovou um projeto de lei para identidade de gênero, que agora irá ao Senado. “Para nós, ter o nosso nome em nossos documentos será um grande avanço, porque de outro modo nós sofremos experiências humilhantes,” disse Ramírez.
Como um exemplo, a ativista lembrou um incidente na sala de dentista. Na sala de espera, quando ela respondeu após ser chamada pelo nome de sua carteira de identidade, o dentista disse que chamou Oscar Ramírez, e não ela.
“Quando nós temos que viajar, nós somos vistos como criminosos. Eles olham para nosso documento de identidade ou passaporte e nos fazem esperar. Finalmente nos deixou ir, mas todos nos olharam como se fôssemos terroristas,” disse ela.
Avanço social
Contudo, enquanto eles esperam o projeto de lei ser aprovado, pessoas transgênero já estão aproveitando um clima de aceitação melhor e menos marginalização na Argentina, fomentado pelo Estado, e visto em diferentes esferas.
No mundo do espetáculo, a travesti mais famosa do país, atriz popular e personagem televisiva Florencia de la V, casou-se com seu parceiro de longo tempo. E ela e seu marido contrataram uma barriga de aluguel nos Estados Unidos, que deu à luz a seus gêmeos.
Além disso, em uma decisão legal histórica proferida em 2010, ela obteve sua nova carteira de identidade, na qual ela é identificada como Florencia Trinidad, ao invés de seu nome de nascimento, Roberto Carlos Trinidad.
Neste mês um grupo de artistas realizaram a terceira edição do Encontro de Arte Trans – Festival DesTravArte – um festival transgênero de filmes, teatros, dança, poesia e literatura.
O objetivo desta edição foi apoiar o projeto de lei de identidade de gênero. Os organizadores apontaram que, embora as minorias tenham desfrutado maior aceitação desde que o casamento entre pessoas do mesmo sexo se tornou legal, muitos travestis no país continuam marginalizados pela sociedade.
E no programa “Salida de Emergencia”, transmitido pela TV Encuentro, do Ministério da Educação, representantes de minorias sexuais de todo o país falaram sobre suas frequentemente traumáticas experiências de integração ou rejeição social.
A Universidade de Buenos Aires, entretanto, aprovou um estatuto neste mês reivindicando documentos de identidade universitários para estudantes transgêneros, professores e outros quadros de funcionários para refletir seu gênero e o nome que usam.
A mesma medida foi também adotada pela Universidade Nacional de Córdoba.
E os movimentos das cooperativas apoiados pelo Ministério de Desenvolvimento Social apoiaram um grupo de pessoas transgênero que organizaram e receberam treinamento e empregos nas indústrias têxteis, de alimentação e de design.
O Ministério de Segurança, chefiado por Nilda Garré, emitiu uma resolução neste mês permitindo pessoas transgênero que trabalham na polícia federal a se vestirem de acordo com sua identidade de gênero.
A resolução foi o resultado de uma batalha encampada por um travesti, Angie Beatriz Álvarez, uma oficial da polícia federal que lutou por uma década por seu direito de se vestir com uniforme feminino.
E sob a decisão ministerial, prisioneiros podem agora ser colocados em celas de acordo com sua identidade de gênero.
Também neste mês, o Arquivo de Memória da Diversidade Sexual foi inaugurado, contendo relatos de três dúzias de vítimas da ditadura militar de 1976-1983 que as brutalizou simplesmente por serem lésbicas, gays ou transgêneros.
O Arquivo está na Esma (Escola de Mecânica da Marinha) – um dos maiores centros de aprisionamento e tortura da ditadura, que agora foi convertido em um “espaço para a memória e a promoção e defesa dos direitos humanos”.
Ramírez é uma das pessoas cujo o caso faz parte do Arquivo. Ela disse que em 1976 e 1977, ela foi sequestrada na rua enquanto trabalhava como prostituta vestida de drag, e foi levada ao Poço de Banfield, outro centro de aprisionamento, onde ela foi estuprada e torturada.
“Testemunhei à Secretaria de Direitos Humanos, e no ano que vem farei queixa em uma ação penal. Eu revivi tudo, e toda vez que estou no escuro, vejo aqueles rostos e não posso me esquecer,” disse.
Ramírez disse que o Estado irá pagá-la reparações, e isto foi feito com outras vítimas da ditadura e as famílias das vítimas. Mas ela disse que quando ela receber a compensação, ela quer receber já usando sua nova carteira, mostrando a identidade feminina que ela vive.
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