O médico canadense David Nickerson compreendeu a utilidade prática da cetamina como anestésico não convencional quando trabalhava no interior de Gana, em 2007. Certo dia, ele recebeu uma paciente com cerca de oito meses de gestação, que entrou sangrando no hospital em busca de atendimento. A necessidade de uma cesariana era evidente, conta Nickerson a Opera Mundi, e a clínica estava sem oxigênio e sem água, tornando impraticável a esterilização dos equipamentos. Diante da impossibilidade de executar a cirurgia sob aquelas condições, a paciente foi transferida para um hospital próximo, em estado ainda mais precário. “A situação era séria, mas em vinte minutos pudemos anestesiá-la com cetamina e fazer a cirurgia”, conta Nickerson, especialista canadense em terapia respiratória e pesquisador clínico do Bruyère Research Institute, em Ottawa
História semelhante sobre a aplicação da cetamina tem a anestesista norueguesa Jannicke Mellin-Olsen, vice-secretária da Federação Mundial das Sociedades de Médicos Anestesistas, que possui ampla experiência em missões humanitárias em zonas de conflito. “Um dia, resgatávamos um homem que estava em um prédio prestes a desabar. As pernas dele estavam presas entre os escombros e ali mesmo pudemos administrar a cetamina para que ele aguentasse a dor ao ser socorrido”, conta a médica.
Anna Surinyach/MSF
Hospital no Sudão foi palco de conflito; cetamina é essencial para ser usada como anestesia em crises humanitárias
Nas duas ocasiões, o emprego da cetamina foi decisivo. A substância é um dos anestésicos — para uso humano e veterinário — mais comuns nos países em desenvolvimento. Isto, graças à facilidade de conseguir encontrá-lo e utilizá-lo com segurança. Produzido nos EUA e na Índia, não tem patentes e, portanto, é muito mais barato do que outros anestésicos.
“A cetamina não afeta o funcionamento dos pulmões e do coração como outros anestésicos, por isso pode ser usada mesmo sem a necessidade de oxigênio ou equipamentos mais sofisticados, além de poder ser administrada por um profissional com conhecimentos apenas básicos de anestesia”, explica a norueguesa Mellin-Olsen.
Além do emprego medicinal, especialmente importante em zonas de conflito armado, a cetamina também é conhecida pelo uso recreativo (e ilícito) em muitos países do mundo, em especial na China. A partir disso, o governo chinês iniciou um movimento internacional para frear a circulação da droga. Pequim chegou a pedir à ONU (Organização das Nações Unidas) que reclassificasse o medicamente: junto com LSD e mescalina, a cetamina passaria a fazer parte do rol de drogas que trazem sério risco à saúde pública. Como a classificação vale para praticamente o mundo todo, a mudança tornaria muito difícil seu acesso.
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A investida chinesa colocou as instituições de ajuda humanitária em polvorosa. “O controle rígido da cetamina impediria ou atrasaria a disponibilidade da substância para uso médico, o que é uma questão de vida ou morte nos locais onde oferecemos assistência humanitária em emergências médicas”, explica Joelle Tangui, vice-secretária-geral de Assuntos Humanitários e Diplomacia da Federação Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.
Segundo Tangui, em situações de conflito armado nos quais há um grande número de traumas e difícil acesso aos serviços de saúde em função de falta de segurança ou infraestrutura danificada, a cetamina é o único medicamento que permite a realização de cirurgias de maior porte. O mesmo ocorre em situações nas quais há emergências em massa, como em caso de terremotos.
UNHCR/Brian Sokol
Agentes de saúde atendem mulher ferida por ataque armado na República Centro-Africana, sob risco de ter a perna amputada
A própria OMS (Organização Mundial da Saúde), agência ligada às Nações Unidas, considera a cetamina medicamento essencial, que deve estar disponível a todos os serviços de saúde onde a anestesia é necessária.
China recua
Diante da pressão de série de países europeus e africanos, além de organismos internacionais, entidades humanitárias e grupos da sociedade civil ligados à saúde pública, a China voltou atrás. Na semana passada, já dando sinais de flexibilidade, modificou o pedido e passou a exigir apenas a inclusão em um outro de lista, com restrições mais brandas.
A demanda chinesa estava prevista para entrar em votação na 58ª Comissão de Narcóticos do Escritório da ONU sobre Drogas e Crime, em Viena, na última sexta-feira (13/03). Durante a sessão plenária, a China recuou ainda mais e propôs o adiamento da votação, prolongando por mais um ano o debate. Recebida como uma vitória pelas entidades que encamparam a pauta, a manobra chinesa tirou do sufoco países — como o Brasil — que teriam de escolher entre apoiar os chineses ou apoiar as organizações humanitária.
Unis Vienna
Reunião do Escritório da ONU sobre Drogas e Crime, em Viena, fórum para o qual a China apresentou a demanda de restrição à cetamina
Medicamente sem substituto
A classificação da cetamina como substância controlada internacionalmente significaria o surgimento de trâmites específicos para a compra, distribuição e estoque da substância, difíceis de ser cumpridos por sistemas de saúde frágeis como os de países em situação de conflito ou pós-conflito.
Para o canadense Nickerson, que também é pesquisador de sistemas de saúde em emergências humanitárias, qualquer tipo de classificação é prejudicial. “Não é possível fazer um sistema de saúde funcionar sem acesso a medicamentos essenciais ”, diz. “Não há alternativa para substituir este medicamento”, completa.
Até agora, segundo as recomendações da OMS, o abuso da substância não representa risco suficiente à saúde pública para incluí-la em uma lista de controle mais rígido. “Entendemos que há uma preocupação com o abuso da substância na China, mas acreditamos que as autoridades nacionais tomem medidas proporcionais para lidar com o problema localmente”, acrescenta Tangui.