Há uma expressão em inglês que resume a “naturalidade” da dinâmica mercantil: business as usual, ou seja, um negócio comum, como outro qualquer. Pois é assim que o Museu Internacional da Escravidão retrata o comércio transatlântico de escravos, que vigorou dos séculos XVI ao XIX.
Inaugurado na famosa cidade dos Beatles em 23 de agosto de 2007 – por ocasião dos 200 anos do Ato pela Abolição do Comércio de Escravos -, o museu inglês expõe os fundamentos econômicos da escravidão. Cumpre, dessa maneira, os três principais objetivos a que se propõe: mostrar como milhões de africanos foram escravizados, evidenciar a participação crucial de Liverpool (e da Inglaterra como um todo) no processo, e enfatizar as consequências dessa exploração para as diferentes partes envolvidas.
Os conteúdos dos painéis que fazem parte do museu, localizado na revitalizada Albert Dock, servem de complemento ao (pouco) que se aprende sobre a escravidão nos bancos escolares do Brasil, uma ex-colônia de Portugal – nação que aliás sucumbiu justamente diante da ascensão inglesa.
São três seções montadas para os visitantes. A primeira busca mostrar um pouco da vida e da cultura da África Ocidental: com a reconstituição de parte de uma vila do povo Igbo e a exibição do artesanato, das manifestações culturais e dos conhecimentos tradicionais desta região da África. Nesse segmento inicial, os organizadores do museu priorizam a valorização da diversidade cultural do continente africano, definido como “berço das civilizações”, do qual “todos nós somos descendentes”.
Os alicerces econômicos do comércio transatlântico de escravos aparecem na segunda parte do museu, chamada de “passagem do meio”. Depois de recuperar (e condenar) o pensamento racista adotado como justificativa para as intervenções coloniais (“superiores” em comparação com os nativos “bárbaros”) por parte dos “conquistadores” europeus (primeiro portugueses e espanhóis, depois principalmente ingleses, franceses e holandeses), as placas e objetos históricos do acervo compõem uma desconstrução reveladora das transações triangulares entre Europa, África e América.
Alma do negócio
Nunca foi segredo que o comércio transatlântico de escravos atendia uma demanda por mão-de-obra, pois as nações europeias estavam interessadas em aumentar a produção de gêneros como açúcar, café, algodão e tabaco em território colonial para abastecer o crescente consumo europeu. Não havia braços suficientes nas próprias colônias, já que muitos nativos foram dizimados, fugiram ou ficaram doentes com as invasões dos “conquistadores”.
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A forma como essas operações de tráfico negreiro eram organizadas, no entanto, nunca mereceu explicação mais detida nos estudos da história brasileira. Os visitantes saem do museu com a noção concreta de que a comercialização de escravos se assemelhava a um investimento de alto risco, mas com possibilidades de retornos exponenciais – típico da ciranda financeira.
Era custosa e complexa a preparação de uma embarcação para esse fim. Mercadores convocavam parceiros (outros mercadores, banqueiros, políticos, fazendeiros e até pequenos “investidores”) para formar um pool, uma espécie de consórcio para a repartição dos custos e riscos e, por conseguinte, para a viabilização do negócio. Registros dão conta de que a estruturação de apenas uma viagem em 1790 custou, por exemplo, £ 10 mil (libras esterlinas). Corrigido para valores atuais, esse “investimento” seria equivalente a £ 550 mil, ou melhor, cerca de R$ 1,8 milhão.
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A participação de diversos interessados também facilitava outra providência essencial para o tráfico: a arrecadação de mercadorias necessárias para a “troca” por escravos africanos. Com mais pessoas envolvidas, ficava mais simples reunir produtos que interessavam aos “dominadores” da África que capturavam à força e vendiam escravos. Encontrar gente disposta a fazer parte desse tipo de empreitada não era tarefa muito complicada: segundo relato de um observador que vivia em Liverpool na época, praticamente todo homem da cidade era um mercador.
Além disso, existia uma estreita coincidência entre o poder político e a exploração do comércio de escravos. A própria Royal African Company inglesa, fundada em 1672 e ativa até 1750, deteve o monopólio do comércio de ouro e de escravos com os africanos até 1698. O principal comandante e maior acionista da empresa era James, irmão do rei e Duque de York.
Capital do tráfico negreiro
Mercadores de escravos como Thomas Golightly, que foi prefeito de Liverpool nos idos de 1720, reiteravam a conexão direta entre o pólo econômico e a classe política. As docas da cidade foram inauguradas em 1715 e a Casa da Alfândega (Custom House) foi construída em 1722. Algumas das construções daquela época, como a estação da Great Western Railway (veja foto acima), encravada na região portuária, continuam até hoje em pé.
No final do século XVIII, Liverpool se transformara na capital do comércio transatlântico de escravos. O escritor William Mathews, testemunha dos acontecimentos, assinalou uma adesão em bloco do povo da cidade ao tráfico escravagista, que satisfazia o “desejo indiscriminado de participar de negociações comerciais e ganhar dinheiro em todas as oportunidades”.
As estimativas dão conta de que pelo menos 1,5 milhão de africanos tenham sido transportados da África para a América por embarcações que partiram de Liverpool. Esse contingente consiste em mais de 10% do total de escravos vendidos de que se tem conhecimento.
Um conjunto de fatores explica a dianteira assumida por Liverpool nesse quesito em comparação com outras cidades inglesas como Londres e Bristol. Cidade portuária, Liverpool é também um ponto de convergência de rios e canais. Roupas, armas de fogo, munições e ferro chegavam com preços relativamente baixos no burburinho do comércio local. Em suma, os mercadores de Liverpool baixaram custos, eram mais rápidos e mais flexíveis. Com o tempo, estreitaram relações com os vendedores de escravos do Oeste da África. Aproveitaram-se dessa proximidade para providenciar todos os produtos almejados por seus parceiros comerciais.
Base da Revolução Industrial
Ainda na seção intermediária da “passagem do meio”, o Museu Internacional da Escravidão também dá nome aos bois quando trata dos beneficiados do tráfico negreiro. Algumas personalidades como Richard Watt, que fez fortuna explorando escravos na Jamaica e depois comprou uma mansão em Liverpool, são citadas nominalmente no acervo. Famílias milionárias tradicionais como os Gladstone também aparecem diretamente vinculadas à escravidão, assim como bancos importantes – Thomas Leyland, Heywoods (absorvido posteriormente pelo Barclays) e até o Banco da Inglaterra.
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O tráfico impulsionou ainda investimentos em outros setores, como na mineração, ligação que fica evidente no caso do empresário Richard Pennant, que redirecionou os lucros advindos do comércio escravagista pra construir um império com base na extração da ardósia (utilizada para diversos outros fins). Defensor incondicional da escravidão, ele foi o primeiro Barão de Penrhyn.
Os dados coletados não deixam dúvidas, portanto, que a escravidão esteve na base da Revolução Industrial. Com os benefícios econômicos decorrentes da exploração do modelo colonial, os ingleses puderam injetar recursos em setores estratégicos como a siderurgia, a extração de carvão mineral e a formação dos bancos. Concomitantemente, a mão-de-obra escrava propiciou o aumento de produção de gêneros como açúcar e algodão, atendendo à demanda do mercado interno europeu.
Essa conjunção de fatores contribuiu para o desenvolvimento da indústria têxtil e das bases da infraestrutura produtiva (estradas, canais, etc.) na Inglaterra, nação soberana no comércio de escravos durante o século XVIII. Era o jogo de “ganha-ganha-ganha”, em que os ingleses lucravam com a venda de escravos, com o comércio dos produtos por eles cultivados e ainda investiam em indústrias próprias e na estrutura necessária para garantir ainda mais acúmulo de riqueza no futuro.
O tráfico negreiro se estendeu por quatro séculos. Pelo menos 12 milhões de pessoas foram escravizadas. Dois terços dessa estimativa eram formados por homens com idade de 15 a 25 anos. Ou seja, as nações europeias capturaram a mão-de-obra dos africanos em seu favor, fator que evidentemente se tornou um obstáculo para o desenvolvimento dos povos locais.
De quebra, armas de fogo e munições estavam entre os principais produtos que os europeus transportaram para os comerciantes da África em troca de escravos. A posse de armas de fogo era fundamental para a manutenção das atividades dos “mercadores” de escravos. Essa troca certamente ajudou a perpetuar os conflitos internos na África e está no pano de fundo da instabilidade política que marca o continente.
Sem força de trabalho e “inundada” por um arsenal bélico, os povos africanos viram as possibilidades de desenvolvimento tolhidas. Uma declaração pinçada do acervo faz uma pertinente dupla constatação: a África ajudou a desenvolver a Europa e a Europa ajudou a não desenvolver a África. Esse tipo de relação extremamente desigual pode ser estendido, com as devidas adaptações, às colônias da América e da Ásia.
Rotina dos escravos
Elementos de sobra no museu relembram as condições enfrentadas pelos escravos. Desde a compilação de dados sobre três viagens realizadas pelos barcos Brooks, Bud e Rose – com a catalogação das respectivas durações dos trechos, da quantidade de alimentos consumidos e de quantos chegaram vivos às ilhas do Caribe – até a exibição de material audioviovisual replicando a viagem nos navios negreiros em telões. Em média, as viagens da África para o continente americano duravam cinco semanas. As pessoas eram obrigadas a ficar em espaços apertados, sem ar, nos “porões” das embarcações. Água para beber e comida eram limitadas.
Os homens eram separados das mulheres e das crianças. Alguns eram forçados a dançar para entreter a tripulação. Era freqüente o abuso sexual de mulheres. Traumas abatiam muitos dos escravizados. Alguns ficavam sem comer e revoltas explodiam em pelo menos uma de cada dez viagens da África para a América. Todas eram reprimidas com ferocidade. De acordo com um levantamento do British Privy Council de 1789, uma média de 12,5% dos escravos morria antes de chegar ao destino.
A troca de “donos” era comum. Escravos eram forçados a caminhar por longos trechos da costa africana até os locais de embarque para atravessar o Oceano Atlântico. Esqueletos empalados expostos nos fortes demonstravam o que aconteceria se alguém tentasse fugir. Mesmo com todas essas dificuldades, líderes se rebelaram: como Tomba, líder do povo Baga no Guiné (1720), e Agaja Trudo, rei de Dahomey (1724-1726).
Uma das passagens mais trágicas do tráfico se deu com o navio Zong. A embarcação deixou a costa africana no dia 5 de março de 1781 com 440 escravos a bordo. Durante a viagem, 132 foram jogados ao mar e apenas 208 chegaram à ilha que hoje é a Jamaica. O grupo de “investidores” entrou na Corte Inglesa para cobrar £ 30 (libras esterlinas) por cada corpo jogado ao mar. A ação não resultou em ressarcimentos e o capitão Colingwood (acusado de assassinato) não foi condenado, mas a repercussão do caso foi péssima para os defensores do comércio de escravos.
Uma réplica de uma fazenda no sistema plantation foi montada no Museu Internacional da Escravidão. No modelo “Casa Grande e Senzala”, os escravos enfrentavam vários tipos de violência. De todos os lados, vinham pressões para que os africanos se desvinculassem de suas identidades. Eram marcados com ferro quente e tratados como animais. Ainda assim, não faltaram casos de resistência. O caso de Zumbi dos Palmares, liderança popular que desafiou escravocratas no Nordeste brasileiro, está registrado em Liverpool.
Mudança de postura
A partir do século XIX e na esteira da Revolução Industrial, a posição da Inglaterra mudou. Em 1807, o tráfico negreiro se tornou ilegal no país. Os ingleses passaram a pressionar pelo fim desse comércio, em resposta ao fortalecimento das mobilizações abolicionistas e especialmente de olho na conversão de escravos em potenciais consumidores de seus produtos industrializados. Liverpool passara de capital do comércio transatlântico de escravos para capital do algodão.
Essa é a participação inglesa no tocante à história da escravidão mais frisada aos brasileiros. Em 1810, Portugal – que tinha transferido a Coroa para o Brasil em 1808 – e Inglaterra assinam o Tratado de Aliança e Amizade, no qual os ingleses já exigem restrições ao tráfico negreiro. Também por pressão da Inglaterra, Portugal concorda, durante o Congresso de Viena de 1815, em vetar o tráfico acima da Linha do Equador. Depois de desempenhar papel importante na independência do Brasil, os ingleses continuaram pressionando pela abolição. O Brasil acabou assinando um tratado com mais restrições nesse sentido em 1826 e, em 1831, promulgou lei que proíbe o comércio de escravos com outras nações da África.
Em 1833, o Parlamento aprovou a abolição da escravatura também na parte das Antilhas pertencente à Inglaterra, no Canadá e no Cabo da Boa Esperança (sul da África do Sul). Em 1845, o Parlamento inglês aprovou o Bill Aberdeen, que determinou o aprisionamento de embarcações utilizadas no tráfico de escravos. Entre 1808 e 1869, a Esquadra do Oeste africano da Real Marinha Inglesa desbaratou cerca de 1,6 mil navios negreiros e libertou cerca de 150 mil africanos. Mesmo assim, mais de um milhão de pessoas ainda foram escravizadas e transportadas durante o século XIX.
Entre os legados da escravidão (que estão na terceira e última seção do museu que já recebeu a visita de 302 mil pessoas), foram destacados nomes famosos de ruas de Liverpool que têm alguma relação com o comércio de escravos. A herança musical e a presença de uma comunidade negra em Liverpool ganharam espaço reservado nessa parte. Personalidades negras foram resgatadas e a influência do tráfico negreiro para o racismo existente até hoje está exposta com destaque.
Um memorial, construído pelo Babalaô Yoruba Orlale Kan Babaloa, presta homenagem aos ancestrais negros. E uma escultura feita a partir de sucata e objetos reciclados por jovens de Porto Príncipe, no Haiti, simboliza o déficit de liberdade, que não acabou com o fim da escravidão antiga. “As pessoas hoje não têm mais correntes em seus braços e suas pernas, mas ainda têm correntes em suas mentes. Quando não se tem comida ou moradia, não se vive livremente”, disse um dos autores da peça.
Logo na entrada do Museu Internacional da Escravidão, há uma declaração do ex-escravo William Prescott, captada em 1937. “Eles vão lembrar que nós éramos vendidos, mas não que éramos fortes. Eles vão lembrar que éramos comprados, mas não que éramos corajosos”. Em seguida, os organizadores do museu prometem: “Nós lembraremos. Essa história foi negligenciada por muita gente durante muito tempo”.