Na tarde desta segunda-feira (7), os chilenos tiveram a sensação de voltar ao passado: na capa do jornal vespertino La Segunda estava, em preto e branco, a foto do ex-presidente Eduardo Frei Montalva.
“No começo, quando li o sobrenome, achei que era outro título sobre as eleições de domingo”, conta ao Opera Mundi o jornaleiro Ricardo González, dono de uma banca no centro de Santiago, em referência a Eduardo Frei Ruiz-Tagle, filho do ex-presidente e candidato da Concertação, a coligação de centro-esquerda. “Depois, entendi que era o pai dele”, diz, emocionado.
Na verdade, o jornal anuncia que o juiz Alejandro Madrid ordenou a prisão de quatro pessoas acusadas de assassinar o ex-presidente, que morreu depois de uma cirurgia simples em 1982, durante a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973 e 1990). Naquela época, as autoridades atribuíram a morte a uma infecção bacteriana.
Mas, segundo o juiz, “o falecimento do ex-presidente foi causado pela introdução paulatina de substâncias tóxicas não-convencionais em seu organismo, pelo uso de produtos farmacológicos não autorizados e pela ocorrência de situações anômalas que foram dissimuladas e que deterioraram seu sistema imunológico”.
Para a família e a classe política, a declaração do juiz não é uma surpresa. O ex-presidente, que governou o Chile de 1964 a 1970, estava se projetando como um dos principais opositores de Pinochet quando foi submetido a uma operação de hérnia de hiato na Clínica Santa María de Santiago. Sua morte por septicemia, semanas depois, levantou suspeitas na família, que não teve direito a ordenar uma autópsia por meios próprios.
Medo da morte
A investigação, porém, começou há 10 anos, quando foi anunciado o assassinato de Eugenio Berríos, o químico da Dina (Direção de Inteligência Nacional, a polícia secreta da ditadura). Ele tinha desenvolvido diversas técnicas de envenenamento para matar opositores do regime. Exilado no Uruguai desde 1991, Berríos tinha confessado a parentes o medo de ser assassinado por conhecer segredos da ditadura. Quatro anos mais tarde, seu corpo foi encontrado com tiros, numa praia de Montevidéu.
A resolução do juiz Madrid ordena que o médico Patricio Silva, ex-membro do Comando de Saúde do Exército e chefe da equipe que operou Frei Montalva, seja julgado como autor intelectual do assassinato, assim como Raúl Lillo e Luis Becerra, ex-motorista e homem de confiança de Frei. Três outras pessoas são acusadas de cumplicidade, por encobrirem fatos quando realizaram a primeira autópsia.
A notícia surgiu a apenas seis dias do primeiro turno da eleição presidencial. Eduardo Frei Ruiz-Tagle, que também já foi presidente (1994-2000), está em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás do conservador Sebastián Piñera, cuja base eleitoral inclui antigos partidários de Pinochet. Algumas vozes da direita desconfiaram de que a decisão do juiz de escolher esta data para o anúncio seja uma manipulação política.
“É totalmente impossível”, afirmou ao Opera Mundi um funcionário do Ministério do Interior, pedindo anonimato. “O poder judiciário é imune a pressões políticas”, frisou.
Castigo
A analista política Marta Lagos, que dirige a empresa de pesquisas Latinobarómetro, explica que a confirmação do assassinato do ex-presidente “pode ajudar um pouco seu filho na eleição de domingo”. Segundo ela, “uma parte das pessoas que iam votar no Piñera pode desistir, para castigar as pessoas em volta dele, que fizeram parte do regime ditatorial”.
Piñera fez uma rápida declaração na qual afirma se “solidarizar humanamente com os filhos e a família” da vítima. “A morte ainda não esclarecida do ex-presidente Frei Montalva é uma ferida aberta na alma nacional”, disse. É uma maneira de lembrar ao eleitorado que Piñera se distanciou da herança de Pinochet. No plebiscito organizado em 1988 para decidir sobre a continuidade do ditador no poder, ele foi um dos raros políticos da direita a votar “não”.
Marta Lagos considera que este tipo de declaração pode provocar a perda de pontos. “A direita dura, que reivindica ainda os valores do governo militar, não gosta deste tipo de distanciamento”, argumenta. A analista política descarta, porém, uma transformação do quadro eleitoral após o anúncio. “É impressionante a apatia da população. Achava que algumas pessoas iam sair para protestar e lembrar as mortes da ditadura, mas nada. Acho que muitos eleitores já sabem que Piñera vai liderar a eleição, e talvez ganhá-la”, declara.
Mais de 3 mil pessoas foram mortas ou desapareceram sob o governo Pinochet, e cerca de 30 mil foram torturadas.
Ominami
Outro candidato, o deputado Marco Enríquez-Ominami, relembrou a morte do próprio pai, Miguel Enríquez, ex-dirigente do MIR (sigla em espanhol para Movimento de Esquerda Revolucionária), assassinado por agentes da Dina. “Sei o que é perder um pai. Conheço essa dor, com a qual convivo há 35 anos. Espero que a Justiça esclareça. Hoje segue um processo judicial que espero que termine rapidamente”, disse o candidato, que saiu do Partido Socialista para concorrer como independente.
“Não acreditávamos que havia tanta crueldade e maldade no Chile, mas os fatos demonstraram que era assim”, comentou Eduardo Frei Ruiz-Tagle ao saber que pessoas muito próximas ao seu pai foram provavelmente envolvidas. Ele declarou que gostaria de dizer ao pai que “a verdade tem a sua hora, como ele escreveu, e que, por fim, sua hora e sua verdade haviam chegado”.
O candidato de centro-esquerda aproveitou o episódio para lembrar que é a favor da revisão da lei de anistia, “para que todas as pessoas que têm familiares em situação similar possam saber exatamente o que aconteceu com eles”. A proposta de Frei foi duramente criticada por Piñera, que considera que o assunto “divide opiniões no momento em que o objetivo é unir forças a favor de uma questão democrática”.
Marco Enríquez-Ominami também declarou que a proposta de revisão de anistia, feita às vésperas das eleições, era uma hipocrisia. Nestes últimos dias, o deputado tem concentrado seus ataques contra Eduardo Frei para tentar passar ao segundo turno.
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