A partir do golpe que tirou María Estela Martínez de Perón do poder em março de 1976, os militares tomaram o controle do país com um plano denominado “Processo de Reorganização Nacional”. Não demorou para que implementassem novas normas de conduta e de restrições de acesso à música e à literatura, principalmente as que garantiam não se identificar ou exaltar os “valores argentinos”.
A história se repetiu em diferentes países da América Latina. Na Argentina, o período de repressão resultou em um saldo estimado de 30 mil mortos e desaparecidos. Ainda assim, muitos músicos, mesmo estando nas “listas negras” da censura, conseguiram fazer que seus versos de resistência fossem escutados. Burlas nas restrições, versos camuflados e exílio foram alguns dos artifícios utilizados para impedir o fim do registro musical da época.
Leia mais:
Trinta e cinco anos após golpe, Argentina condenou 196 repressores da ditadura
Prisões clandestinas recuperadas em Córdoba ajudam a entender o terror promovido pela ditadura argentina
Com a retomada da democracia e a volta de muitos deles, as obras que não puderam resistir à imposição do silêncio nos anos de chumbo vieram à tona. Nos últimos anos, muitos deles continuaram compondo músicas que fazem alusão ao período, colaborando com o resgate da memória daqueles anos.
Em 2009, o Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer), divulgou um documento com uma lista borrada, embora legível, das músicas censuradas entre os anos de 1978 e 1983. Os nomes que integram a “lista negra” vão desde artistas populares argentinos a sucessos internacionais, como John Lennon, Eric Clapton (Cocaine), Queen e Pink Floyd (The Wall).
Roberto Carlos
Até mesmo canções do brasileiro Roberto Carlos figuravam na lista de proibições, sob o título de “não aptas para serem difundidas pelo serviço de rádiodifusão”. Canções como O seu corpo e Imoral, ilegal ou engorda e Os seus botões, compostas com Erasmo Carlos, viraram alvo dos censores e não podiam ser tocadas.
Café da manhã, ou Desayuno, provavelmente não agradava os militares pelos versos “pensando bem/ amanhã eu nem vou trabalhar/ e além do mais/ temos tantas razões pra ficar”, que em espanhol terminaram traduzidos para: “pensando bem/ amanhã eu não vou trabalhar/ e além do mais/ não há razão que me vá obrigar”.
Leia mais:
Jorge Videla é condenado à prisão perpétua
Especial: Parentes desaparecidos nunca mais
Argentina julga repressores que agiram em centros clandestinos
Argentina julga ex-ditador Jorge Rafael Videla por crimes cometidos na ditadura
Em apenas um ano, Argentina condenou 89 repressores da ditadura militar
Roubada por militares na ditadura, deputada argentina luta pelos direitos humanos
Decreto do governo vai facilitar pesquisa de informações sobre os anos de chumbo na Argentina
Artistas de prosa mais revolucionária foram perseguidos, situação vivida pelos compositores argentinos Armando Tejada Gómez e César Isella, que em Triunfo Agrário conclamavam que “é preciso virar a mesa/ quem não muda tudo/ não muda nada”. No listado da censura, as autoridades proíbem músicas de emblemáticos artistas argentinos, como León Gieco, Charly García, Mercedes Sosa e Luis Alberto Spinetta.
Wikimedia Commons
Gieco em 2005, em uma apresentação na Casa Rosada
O rock, gênero jovem, expressão de conotação sexual mais liberada, que fomenta rebeldia às normas, ao sistema e, em alguns casos, com menções a drogas e ao hippismo, teve que se camuflar para coexistir com o regime. Os militares viam no gênero um perigo ao ideal familiar tradicional católico.
Charly García
A dupla Sui Géneris, formada por Charly García e Nito Mestre em 1967, se separou em 1974, quando ambos decidiram “viver mais, e não tentar sobreviver”. Pequeñas anécdotas sobre las instituciones, com referências contra o regime, foi duramente proibido. Charly declarou em entrevistas que o LP “foi destroçado pela censura”. “Mesmo hoje, em democracia, tente fazer uma canção contra a igreja. As pessoas podem ficar muito nervosas”, garantiu.
O cantor, no entanto, não se calou. Com uma nova banda La Máquina de Hacer Pájaros, denunciou a “paranóia na cidade” gerada com as notícias de desaparecidos e torturas, “você cobre o seu cabelo e sua cara tão bem/ como se tivesse frio/ mas na verdade você quer escapar/ de alguma confusão”.
Suas canções com críticas mais explícitas à ditadura, como No bombardeen Buenos Aires e Nos siguen pegando abajo foram censuradas. Uma canção com sua nova banda, Serú Girán, um dos maiores destaques argentinos do rock dos anos 1980, utiliza o conto Alice através do espelho, de Lewis Carroll, como “desabafo”: “Não conte o que tem atrás daquele espelho/ você não terá advogados nem testemunhas/ acenda os candis que os bruxos/ pensam em voltar/ para nublar nosso caminho”. Censurada.
Até mesmo conteúdos mais inocentes, como composições de Palito Ortega, entraram na mira da censura. No final dos anos 1970, a maioria dos artistas resistentes ao regime havia saído do país. Os shows não chegaram a ser proibidos, mas era normal que o público se deparasse com um policiamento violento ao sair dos estádios.
No livro Música y Dictadura – Por qué cantábamos, os autores Laura Santos, Alejandro Petrucelli e Pablo Morgade revelam que os cantores populares se sentiam mais perseguidos que os roqueiros. No lançamento da obra, em 2008, os autores contaram que o presidente da Comfer na ditadura, o ex-general Rodolfo Feroglio, continuava mantendo a versão de que não houve censura, mesmo diante de resoluções de veto assinadas por ele.
Perseguição
Um exemplo da violência nos métodos de censura foi o sequestro e posterior assassinato do pianista Miguel Ángel Estrella em Motevidéu, no ano de 1977, a mando de militares argentinos. O crime? Realizar apresentações gratuitas de música clássica para camponeses de Tucumán. O artista passou por uma sessão de tortura, em que, com uma serra elétrica, lhe ameaçavam cortar as mãos.
Outra vítima das perseguições foi o cantor e compositor portenho Victor Heredia, que em seu disco Aquellos soldaditos de plomo, de 1983, incluiu uma canção que virou um dos hinos da resistência. “Ainda cantamos, ainda pedimos/ ainda sonhamos, ainda esperamos/ apesar dos golpes/ que desferiu em nossas vidas/ o engenho do ódio/ desterrando ao esquecimento/ nossos seres queridos”. Em uma busca constante de sua irmã e seu cunhado desaparecidos, que engrossam a lista dos 30 mil desaparecidos, ele foi um dos artistas que permaneceram no país durante o regime militar.
Em 1978, León Gieco compôs sua música mais famosa Sólo le pido a Dios, interpretada em 1986 pela cantora Beth Carvalho. Mensagem de versos pacifistas contra a guerra (“é um monstro grande e pisa forte/ em toda a pobre inocência das pessoas”), a música é a escolhida por Gieco para o desfecho de todos os seus shows.
Retorno
Em 1983, a volta dos exilados foi incentivada pelo enfraquecimento do regime. O abrandamento da repressão permitiu que novas manifestações acerca de tudo o que tinha se desenrolado começassem a emergir. Uma delas, composta pelo grupo Twist, Pensé que se trataban de cieguitos, explicita a dinâmica dos desaparecimentos, muitas vezes injustificados. A música narra em primeira pessoa a história de um jovem que, em um sábado à noite de calor, decide ir ao cinema e termina preso.
Já a banda Fabulosos Cadillacs incorporou no repertório do disco El León, de 1992, a música Desapariciones, de 1984, composta pelo panamenho Rubén Blades, ferrenho crítico dos regimes repressores instaurados na América Latina no último século.
Já em 1998, o grupo de rock Bersuit Vergarabat compôs a música Vuelos (já meus olhos são barro/ na inundação/ que cresce, decresce/ aparece e se vai), em homenagem ao jornalista Horacio Verbistky, autor do livro El Vuelo, uma investigação sobre os chamados “vôos da morte” (em que prisioneiros eram atirados ao mar de um avião) e sobre a cumplicidade da igreja católica com a ditadura.
O documento publicado pelo Comfer contém quase 200 músicas, listadas em sete páginas. Muitas delas, hoje são grandes sucessos no país, o que prova a alta capacidade de resistência de sua cultura, inspirada, basicamente, na necessidade de liberdade.
Siga o Opera Mundi no Twitter
Conheça nossa página no Facebook
NULL
NULL
NULL