Desde que Barack Obama suspendeu as restrições de viagens para Cuba, surgiu mais um motivo de discussão conjugal no ambiente familiar cubano-americano. Mandar ou não as crianças passarem férias em Cuba?
Há meia dúzia de anos, era inconcebível em Miami pensar nisso. Mas hoje já é motivo de debate na televisão local. Recentemente, Elisa e Pedro foram a um programa discutir se a filha, Helena, devia ou não ir passar o verão com os avós na parte oriental da ilha. A mãe dizia que sim e o pai pensava o contrário, por achar que a ilha é insegura para uma jovem de 17 anos. “Quer um lugar com mais falta de segurança que Miami?”, respondeu Elisa.
“É que lá violam as jovenzinhas. Você sabe que aquilo não tem segurança nenhuma. E se não a deixam voltar para Miami?”, argumentou Pedro. Quando a mediadora lhe perguntou em que fundamentava seu medo, ele respondeu que é o que lhe contam os amigos. “Tá vendo? Ele apenas repete o que lhe dizem. Há 18 anos não vai a Cuba, não sabe como são as coisas lá”, afirmou Helena.
A discussão seguiu durante mais uma hora sem que os dois tenham chegado a um acordo. Pelo menos diante das câmeras. Entre outras razões porque, apesar dos novos ventos que correm, muitos exilados ainda têm medo de exprimir seus pontos de vista em público, se pensam que podem ir contra a corrente anticastrista que ainda predomina na cidade.
Leia a primeira parte da reportagem:
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Passageiros esperam embarque para Havana no aeroporto de Miami; foto: Roberto Koltun
Há casos raros, como Juan Carlos, jovem músico de 25 anos que foi o convidado seguinte no mesmo programa de televisão, e debateu com a mãe se sua filha vai ou não a Havana neste verão conhecer os avós maternos. “Ela não tem nenhuma autoridade legal sobre a neta, mesmo assim não quer que ela vá a Cuba. E eu digo que sim. Sabe o que está acontecendo? Ela tem medo do que suas amigas ressentidas vão dizer. Mas isso tem de acabar, assim não se pode viver”, disse Juan Carlos à apresentadora do programa.
Este debate é cada dia mais frequente nas famílias cubanas, desde que a Casa Branca suspendeu todas as restrições para que os cubano-americanos viagem para Cuba, em abril, impostas pelo antecessor republicano George W. Bush.
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Agora, todos podem viajar livremente para a ilha e enviar à família todo o dinheiro e mercadorias que puderem. Ao mesmo tempo, Obama autorizou as empresas de telecomunicações, linhas aéreas e agências de turismo a fazer negócios na ilha. No entanto, para o resto dos norte-americanos, continua a ser formalmente proibido viajar para a ilha. Se bem que desde que Obama assumiu a presidência, ninguém tem sido perseguido por isso no regresso aos Estados Unidos.
Voos lotados
Estas decisões criaram uma nova dinâmica dentro da sociedade cubana exilada e imigrante nos Estados Unidos. Segundo contaram ao Opera Mundi vários cubano-americanos, os nove voos semanais para a ilha estão cheios até outubro, aumentou consideravelmente a quantidade de “mulas”, aquelas pessoas que viajam apenas para levar mercadorias privadas, e ninguém parece estar sendo incomodado por isso, nos dois lados do estreito da Flórida.
“Eu estava em Cuba quando Obama levantou as restrições. No meu regresso, um oficial de emigração me perguntou com que autorização eu tinha viajado a Cuba. Eu respondi que com a autorização do presidente. Mas ele me disse que eles ainda não tinham recebido nenhuma legislação formal sobre o assunto. Quando eu lhe perguntei se a palavra de Obama não era suficiente, ele calou de imediato e deixou de me chatear”, contou “Mariana”.
“Mariana” é uma jovem cubana que a cada dois meses, passa duas semanas em Havana com a família. Antes do levantamento das restrições, quando regressava a Miami, dizia aos funcionários de imigração que tinha ido ao México. “Era uma forma para eles não incomodarem muito, mas eles sabiam que gente estava indo a Cuba”, explicou.
Desde o levantamento das restrições, o ambiente mudou. “Agora a gente entra e sai quando quer, voa direto sem passar pelo México e na alfândega já não somos revistados. Sabe uma coisa? Agora já posso trazer souvenirs de Cuba, objetos de cerâmica, quadros, lenços… tudo que diga ‘Cuba’, e eles não chateiam para nada”, acrescentou “Mariana”, com o entusiasmo de quem encontrou uma gruta cheia de objetos que lhe são preciosos.
O levantamento das restrições também permitiu maior comunicação familiar. Ainda à espera de que os dois governos restabeleçam o serviço de correio direto, os viajantes se transformaram em carteiros improvisados e estão levando para Cuba todas as cartas que familiares, amigos ou vizinhos lhes encomendam. E na volta, trazem todas as respostas que podem. Antes, isso era simplesmente impossível. As autoridades dos dois países confiscavam todo o correio.
Em Havana, o ambiente também mudou, coincidiram vários viajantes. No aeroporto, as autoridades são muito mais flexíveis com os cubano-americanos, nas ruas – apesar de que a imprensa oficial não anunciou os termos do levantamento das restrições – toda a gente parece saber dos mais ínfimos detalhes. “Uma prima minha que vive lá foi quem me contou que podia transportar todo tipo de cartas. Eu não sabia disso até porque aqui em Miami não se fala nisso”, contou “Mariana”.
Medo
Vários viajantes disseram anonimamente ao Opera Mundi, já que ainda não se sentem seguros para revelarem seu verdadeiro nome, que apesar de tudo, muitos passageiros estão viajando com um medo relativo porque temem que, por alguma razão, não possam voltar a Miami. Mas uma vez que desembarcam e veem que estão sendo bem acolhidos pelas autoridades, sentem-se mais confortáveis.
Tanto “Mariana” como “Carlos” disseram que nas ruas não notaram nenhum tipo de animosidade ou repressão por viverem em Miami, apesar de toda as asseverações em contrário que a rádio extremista de Miami vocifera. “Os únicos que se sabe que são vigiados de perto são os norte-americanos ‘gringos, gringos’, porque eles têm medo de alguns espiões e isso é entendível”, explicou “Mariana”.
“Na última viagem que fiz, em maio, tive um pequeno desastre na moto de um amigo meu. Fui ao hospital e trataram-me como um cubano normal, não como estrangeiro”, acrescentou “Carlos”. “A enfermeira disse-me que eram ordens do governo”.
Três meses depois que Obama levantou as restrições, as autoridades dos dois países parece que já se habituaram ao fluxo de passageiros. Ao cabo de várias viagens a Cuba, ainda ninguém perguntou a “Mariana” por que vai visitar a família tantas vezes seguidas. “Ainda estou à espera de que isso aconteça. Mas a verdade é que eles olham para os carimbos no passaporte, mas até agora ninguém me perguntou por que viajo tantas vezes seguidas”, contou.
O único que não mudou foi o preço das passagens, que continuam caras. Um voo de 45 minutos a Havana custa, no mínimo, US$ 450, enquanto que para Cancún (quase duas horas) raramente ultrapassam os US$ 230.
Brasil, “cúmplice da ditadura”
Um dos lugares mais pitorescos no coração da Pequena Havana é o Parque do Dominó, lugar concentração dos exilados mais velhos e onde passam o dia inteiro a jogar xadrez, cartas, damas e dominó, reencontram os velhos amigos e rememoram aventuras passadas, quando ma juventude tentavam derrubar Fidel Castro. Fechados dentro de si próprios, raramente aceitam falar com um correspondente estrangeiro, muito menos do Brasil, “esse país cúmplice da ditadura” na ilha, explicam.
Por isso, Daniel Martínez (em pé na foto abaixo, de boné verde) é uma ave rara. Aceita explicar o que pensa de Obama e o levantamento das restrições. Na sua opinião, o presidente norte-americano “é um comunista, porque ao deixar todo mundo viajar a Cuba, está dando oxigênio ao Fidel”.
“Eu não vou mais nunca a Cuba enquanto o ditador esteja lá, porque ele ainda continua a mandar. O irmão não decide nada sem consultá-lo”, afirmou.
E o pessoal que está viajando agora a Cuba é “um grupelho de traidores à causa cubana do exílio histórico que lutou para acabar com aquilo e deixou muitos mortos no caminho”, acrescentou.
Mas não deve uma pessoa ir onde quiser? “No caso cubano, não. E sabe por quê? Porque essa gente aceita a humilhação de ter de viajar com uma autorização de entrada. Cuba é o único país do mundo que obriga seus cidadãos a terem um visto de entrada”, explica com certa veemência, que se acalma em questão de segundos quando aceita tomar um cafezinho na esquina do parque com o jornalista estrangeiro.
Martínez acha que o regime está em seus momentos finais e os cubanos no exílio devem se unir ainda mais. “Só juntos podemos dar o empurrãozinho final”, afirma com convicção, aplaudido pelos amigos, agora ansiosos para mostrar para a imprensa estrangeira que estão todos contra Fidel.
Tony González é a antítese total de Martínez. Jovem cubano-americano, nascido em Miami e filho de exilados conservadores, não esconde sua admiração pelo gesto de Obama e confessa ser um democrata convicto, numa família de republicanos.
Mas a decisão do presidente já começa a mudar a vida da família e sua história, se não é um caso único, é um exemplo dos novos tempos.
Mera questão eleitoral
González tem 27 anos e já foi sete vezes a Cuba. Mas os pais nunca souberam. “Se soubessem, teríamos uma crise na família”, explica. Por isso, quando recentemente disse num jantar que queria passar o Natal na ilha junto com os pais, a surpresa foi tão grande que a mãe deixou cair a colher de sopa e partiu o prato.
“É preciso entender uma coisa. Eu tenho familiares que lutaram na invasão da Baía dos Porcos [a invasão contra-revolucionária de 1961]. Meus pais nisso são muito firmes. A família diz que foi vítima de Fidel”, disse González.
Mas a verdade, acrescenta, é que ele não nasceu lá, não viveu isso. “Eu tenho família em Cuba que nunca conheceu seus primos ou sobrinhos que nasceram aqui. Só o que quero é poder estar com sangue do nosso sangue”, sublinhou.
É possível que a família toda vá a Cuba no Natal ou no fim do ano. Os pais parecem estar assimilando a nova realidade aos poucos e à medida que os que estão indo voltam e contam coisas novas, a “Miami cubana” está assimilando o momento de transformação.
“O mais importante de tudo isto é que vai beneficiar o povo cubano. Nossas viagens estão abrindo portas, lá e cá. Estamos explorando um mundo novo e também mostrando às pessoas como é viver em liberdade. O que não podemos é dar as costas à família”, explica.
No fundo, Jiménez nunca entendeu como as restrições de viagens duraram tanto tempo porque nunca foram racionais. “A única coisa que me ocorre é que sempre responderam a interesses políticos nacionais. Sempre foi uma questão eleitoral”.
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Mudança dos EUA em relação a Cuba nasceu no seio do exílio
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