22 de julho de 2005, Fallujah, Iraque. “O Marine que patrulhava o Posto 7 não conseguiu identificar os ocupantes do veículo devido ao reflexo do Sol vindo do pára-brisa. A operação resultou em 1 NKIA [sigla para “Iraquiano morto em ação”] e 4 NWIA [“Iraquiano ferido em ação]. Todas as vítimas estavam no veículo. O NKIA era uma mulher adulta (mãe). Os 4 NWIA eram: um homem adulto (pai); uma mulher adulta (filha); duas crianças do sexo feminino (filhas). Havia mais uma criança (filha) no carro, que não foi ferida.” Leia aqui o relatório divulgado pelo Wikileaks
Veja gráfico interativo sobre os arquivos
Este é apenas um trecho de um dos 391.832 arquivos secretos do exército norte-americano divulgados em 22 de outubro, no maior vazamento de dados militares da história. Todos os documentos são relativos à Guerra do Iraque, entre os anos de 2004 e 2009, e foram chamados de “Iraq War Logs” (Diários da Guerra do Iraque). O responsável pelo vazamento dos documentos é a organização sem fins lucrativos Wikileaks, que verifica a autenticidade dos arquivos e mantém o anonimato do informante.
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O vazamento provou que, ao contrário do que diziam as autoridades, os EUA dispunham de um registro de mortos e que era possível computar as vítimas da guerra, ainda que sem exatidão. Ao todo, há registros de 109.032 mortes, 60% delas de civis, e de 176.382 feridos, além de torturas de prisioneiros pela polícia iraquiana e assassinato de insurgentes que tentavam se render, o que é considerado crime de guerra.
“[Antes do vazamento] se encontrávamos um homem que tinha sido torturado, nos diziam que era a propaganda terrorista; se descobríamos uma casa cheia de crianças mortas em um ataque aéreo dos EUA, também era propaganda terrorista, ou dano colateral, ou uma simples frase: nós não temos nenhuma informação sobre isso (…) Aqui está a evidência da vergonha norte-americana. É um material que pode ser usado por advogados em tribunal”, disse em artigo no britânico The Guardian o jornalista Robert Fisk.
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Em julho, sem alarde, o site do Pentágono publicou o primeiro balanço oficial de mortes da Guerra do Iraque: 77 mil mortos, valor 30% menor que o relatado nos documentos vazados. “É uma característica da cultura dos EUA não revelar o que for de segurança nacional. Com a guerra contra terror esse impedimento se agravou ainda mais”, disse ao Opera Mundi Cristina Pecequilo, professora da Unifesp e autora do livro Política externa dos Estados Unidos: continuidade ou mudança?.
O vazamento acontece 52 dias após o anúncio do fim da guerra. Em 31 de agosto, Obama disse que havia chegado a hora “de virar a página”.
Andrew Bacevich, professor da Universidade de Boston, aproveitou a expressão de Obama e disse que o vazamento do Wikileaks mostra que ainda não é hora de virar a página, de esquecer. “A maior ‘ofensa’ de Julian Assange, responsável pelo Wikileaks, é que ele está subvertendo o esforço cuidadoso, já em estágio avançado, de construir uma pura e satisfatória narrativa sobre a guerra do Iraque, que ajuda os norte-americanos a considerar a Guerra do Iraque como um episódio do passado”.
Reprodução
Saeed Chmagh, da Reuters, sobreviveu à primeira onda de tiros. É assassinado minutos depois, quando tentavam socorrê-lo
Versão da guerra
Em outro relatório vazado, de 11 de setembro de 2005, um soldado descreve uma operação na cidade de Ar Rutba: “Foi colocada uma carga explosiva na porta de uma casa suspeita, enquanto eram conduzidos cordão e pesquisa em Ar Rutbah. Ao entrar na casa, os marines descobriram três NWIA. Os NWIA consistiam de um menino de dez anos, uma menina de dez anos e um menino de dois anos, todos sofriam de graves ferimentos de explosão”. No pé da página do documento há a nota: “Eventos que podem criar reação política, da mídia ou internacional”. Leia esse relatório.
De acordo com os Diário da Guerra do Iraque, entre os quase 110 mil mortos, 66 mil eram civis (60%) e 3800 soldados da força de coalizão (3,4%). A maior causa de morte entre os civis foi assassinato (50%), categoria usada nos casos em que os soldados norte-americanos encontraram os corpos, mas não foram responsáveis pelo crime. A segunda maior causa de morte foi explosão de artefato improvisado (30%), termo usado para designar explosões terroristas, entre outros. Ou seja, a maior parte dos civis teria sido morta por outros iraquianos.
Mas os documentos vazados devem ser lidos como a versão dos soldados norte-americanos que seria mantida em sigilo, não como o cenário real da Guerra do Iraque. O New York Times e o Guardian, dois dos três veículos que tiveram acesso antecipado a todos os quase 400 mil documentos, constataram que os relatórios dos soldados omitiram mortes de civis pelas quais eles foram responsáveis.
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Segundo o New York Times, o relatório referente a um tiroteio norte-americano que matou 15 civis, entre eles mulheres e crianças, na cidade de Haditha, e que gerou comoção na opinião pública, diz que os civis foram assassinados por militantes em um atentado a bomba. “A mesma versão falsa que foi contada para a mídia”, diz o jornal. Leia esse relatório.
O Guardian analisou os relatórios da batalha travada para ocupar a cidade de Samarra, ao Norte de Bagdá, em 1˚ de outubro de 2004. Eles não fazem referência a nenhuma morte civil, mas na época um repórter da Associated Press apurou 23 crianças e 18 mulheres mortas.Leia esse relatório.
Conflito documentado
O grande volume de dados dos Diários da Guerra do Iraque permite uma análise detalhada do conflito. Técnicas de processamento e visualização de dados foram utilizadas por veículos como New York Times, The Guardian e o alemão Der Spiegel, que publicaram especiais multimídia sobre o assunto. Mas a disponibilização dos Diários na Internet pelo Wikileaks possibilitou que qualquer pessoa trabalhasse os dados.
O programador norte-americano Mike Brennan, por exemplo, reutilizou dados computados pelo Guardian e simulou todas as mortes da Guerra do Iraque em mapas de cidades dos EUA, para dar uma dimensão da tragédia para o público norte-americano. Abaixo, como as casualidades seriam distribuídas pela cidade de Nova York
O Pentágono pediu que a imprensa que não divulgasse os documentos vazados pelo Wikileaks. Após o vazamento, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, condenou a liberação de informações que “coloquem em risco vidas norte-americanas ou de seus aliados”. A ONU (Organização das Nações Unidas) cobrou dos EUA investigação dos casos de tortura no Iraque.
Esta não é a primeira vez que o Wikileaks contraria o Pentágono. Em julho deste ano, a organização vazou de mais de 92 mil arquivos relacionados à Guerra do Afeganistão. Eles detalhavam a morte de 20 mil pessoas entre 2004 e 2009.
Na época, o Wikileaks também vazou um vídeo de 2007 que mostra disparos de um helicóptero contra um grupo de pessoas que andava na rua. Não havia fortes evidências de que se tratava de insurgentes. Entre o grupo, havia 2 funcionários da Reuters. Eles e outras 10 pessoas foram assassinados. Duas crianças foram feridas.
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