Pela segunda vez em menos de dois meses, os franceses saíram às ruas na semana passada para protestar contra as respostas do governo às conseqüências da crise econômica. As previsões econômicas são cada vez piores: o governo estima uma queda de 1,5% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2009, além de déficit superior a 5% do PIB e dívida pública de 72% do PIB. Isso significa que a França não vai cumprir os chamados critérios de Maastricht, que assinou com a entrada em vigor do euro: déficit inferior a 3% e dívida pública inferior a 60%. Como a maioria dos países da zona euro.
Para entender melhor o que está acontecendo e onde esse movimento de protesto pode chegar, Opera Mundi entrevistou Stéphane Monclaire, professor de Ciências Políticas na Universidade Sorbonne, em Paris, durante viagem ao Rio de Janeiro, na última sexta-feira (20). Monclaire, que é também especialista em Brasil, alerta sobre a defasagem cada vez maior entre as elites políticas e a população. Lembrando da tradição de contestação violenta no país, ele avalia que uma explosão social faz parte dos cenários plausíveis.
A França foi paralisada na última quinta-feira pela maior mobilização social desde a posse do presidente Nicolas Sarkozy, em maio de 2007. Como interpretar este movimento?
De fato, a mobilização foi considerável, e podemos apreciá-la de muitas maneiras. Em primeiro lugar, quem manifestou, e onde? O que chama a atenção é que a mobilização não foi apenas em Paris e nas grandes cidades de sempre, mas também em lugares onde ninguém saía nas ruas há anos. É um movimento geograficamente muito amplo. E existe uma clara correlação com as zonas em que o desemprego está aumentando ou zonas em que grandes empresas têm projetos de demissões massivas.
O que é notável, também, é a popularidade do protesto. 75% dos entrevistados apoiaram a greve da última quinta. É uma proporção enorme, sem precedentes nas últimas duas décadas. Isso significa que o movimento vai bem além da oposição. Muitas pessoas que votaram em Sarkozy e apoiam o governo estão a favor da greve. Esse apoio é ainda mais impressionante quando se lembra que a jornada não tinha nenhum slogan claro. É uma multidão de reivindicações diversas, às vezes contraditórias, com a ideia que algo tem que mudar. Isso dá uma ideia do nível de ansiedade.
O que está por trás desse mal-estar?
É uma agregação de descontentamentos e exigências, algumas antigas, outras novas. A preocupação antiga é com a queda do poder aquisitivo, contínua nos últimos dois anos. Ela não afeta toda a população, mas a classe popular e a classe média. Há um aumento real do preço dos produtos de primeira necessidade que não é refletido pelos números da inflação. Claro que o preço das TVs tela plana diminuiu muito, mas não é o que importa para as famílias humildes. A realidade é que o preço das massas, do leite, da manteiga e outros produtos desse tipo subiu. A classe média, que representa a maioria, percebe que com o mesmo dinheiro, consegue cada vez menos comida.
A isso se junta uma nova angústia relacionada ao desemprego. Houve uma melhoria do mercado de trabalho nos últimos anos, mas a partir de novembro, tudo mudou. A crise financeira se transformou em crise econômica com uma violência que não dá para perceber ainda no Brasil. As previsões oficiais são de cerca de 500 mil novos desempregados em 2009. Essas estimativas duplicaram no espaço de seis semanas. Ou seja, podem até mesmo piorar. Isso afeta as pessoas que já perderam seus empregos, mas também todas aquelas que se encontram numa precariedade psicológica frente a este risco.
O que o governo está fazendo para responder?
O governo aumentou o valor do seguro-desemprego, que passou de 60% do salário perdido para 70%. É uma boa decisão, mais ainda insuficiente. Também aumentou os subsídios para as famílias mais modestas. Sarkozy decidiu isentar as pessoas com renda baixa (entre um e dois salários mínimos) de dois terços do imposto anual em 2009. É uma decisão de alto custo para o Estado, mas que vai aumentar em várias centenas de euros a renda de muitas famílias. Mas, em termos gerais, todo o pacote do governo parece ridículo comparado com o que o foi gasto para salvar o sistema financeiro, mais de 300 bilhões de euros emprestados, uma fortuna.
A população entende o porquê deste investimento nos bancos?
Nem um pouco! As somas são tão grandes que as pessoas que não entendem o funcionamento do sistema financeiro (mais da metade da população) nem conseguem decorá-las. Durante anos, todos os governos disseram que não tinham orçamento para aumentar os funcionários públicos, ou melhorar os sistemas de saúde, educação e justiça. De repente, o governo solta bilhões para os bancos, sem nenhuma pedagogia. Isso gera incompreensão, que vira exasperação. Especialmente quando, ao mesmo tempo, grandes executivos de bancos seguem exigindo bônus e dividendos astronômicos, enquanto estão à frente das instituições responsáveis pela crise. Até o Medef (Movimento das Empresas da França, representante do empresariado) admite que não sabe mais o que fazer para impor decência a estes executivos. Recentemente, a companhia petrolífera Total anunciou lucro recorde de 14 bilhões de euros e, ao mesmo tempo, a demissão de 400 pessoas.
Estas cenas chocam muito a população. Pouco a pouco, as pessoas começam a duvidar do sistema econômico inteiro. Como é que estas perdas financeiras abismais foram possíveis? Qual é a legitimidade dessas elites que querem ganhar cada vez mais ignorando o desespero dos outros? Uma série de perguntas estão surgindo, e parece que os políticos não têm nenhuma resposta.
Os partidos de esquerda estão capitalizando sobre este questionamento?
Nada disso. O Partido Socialista está atolado em disputas pessoais desde seu último congresso, provocando cansaço inclusive do próprio eleitorado. O Partido Comunista não consegue travar seu declínio. A extrema esquerda tem um capital de simpatia – há anos que denuncia o capitalismo, e a realidade parece mostrar que tinha razão. Mas isso não significa que o público gosta das soluções expostas. Dessa vez, os sindicatos estão unificados, o que é muito raro. Mas eles não têm qualquer reivindicação comum, e não estão atraindo novos membros. A taxa de sindicalização nunca foi tão baixa na história da França (8%, e apenas 5% no setor privado). A popularidade do governo está cada vez mais baixa à medida que o país mergulha na crise.
Quais são os atores políticos que se aproveitam da crise?
Estamos em um vácuo político. O sistema representativo está perdendo a legitimidade. Os partidos viraram máquinas profissionais cuja única preocupação é eleger mais pessoas, ganhar cargos. Os programas são apenas ideias vagas para obter votos. Não há renovação do pessoal político, isso é muito claro no Partido Socialista. Gera uma defasagem em relação à população. A mídia também tem uma responsabilidade. Ultimamente, a única coisa que fazem os jornais é perguntar aos políticos como eles pensam em compor as listas para as eleições europeias de junho. Este assunto não interessa a ninguém, apenas aos candidatos. Nós estamos enfrentando a pior crise econômica dos últimos 60 anos – talvez mais, ainda não se sabe – e os telejornais não mudaram. Para evitar uma explosão social, seria urgente explicar para a população o que está realmente acontecendo.
Uma explosão social é possível na França?
Absolutamente. A França tem essa tradição de contestação na rua. Não existe uma tradição de sindicalismo pragmático, ou de social-democracia como na Alemanha ou nos países escandinavos. Aqui, é sempre um confronto de forças que resolve. É por isso que a imprensa mundial, inclusive a brasileira, deu uma grande repercussão à jornada de mobilização. Estamos numa situação de transbordamento. O nível de descontentamento é muito alto comparado ao que o sistema político pode aceitar. Parece que o governo não consegue tomar conta da velocidade, da acumulação, da violência, da distribuição geográfica das mobilizações.
Alguns donos de grandes empresas foram seqüestrados durante horas por seus funcionários. Outros executivos foram bombardeados com ovos podres. E não são extremistas ou radicais que fazem estes atos, simplesmente funcionários exaustos, exasperados. Todo mundo pensa no exemplo da Guadalupe. O território francês no Caribe ficou paralisado durante semanas, no começo do ano, por um movimento social muito duro. Acabaram ganhando, obrigando o governo a ceder aumentos de 200 euros por mês. É considerável. Na França, muitos estão começando a pensar que sair para a rua é a única forma de ser ouvido.
Qual é a resposta do governo para conter as tensões?
Acho que está fazendo um cálculo. Um governo pode se beneficiar com um conflito violento. Se chegar a ameaçar a segurança pública, uma parte da população começa a ficar com medo, e o governo pode usar isso para recuperar o papel do ator legítimo que restabelece a ordem e impõe as reformas que quiser. É o que aconteceu em 1968. Porém, é um jogo perigoso, até porque a situação econômica não é comparável com a de 1968. Hoje, você pode ver surgir uma série de crises no país. Greves relacionadas com o emprego, mas também grandes problemas no mundo agrícola, já que os agricultores entenderam que iam perder muitos subsídios. E não falta muito para haver de novo uma situação muito crítica nas periferias, como aconteceu nos últimos anos. Dá para imaginar uma explosão social que não seja controlada nem pelo governo nem pela oposição nem pelos sindicatos. Vão aparecer novamente as falsas boas soluções, tal como o protecionismo, ou a rejeição dos trabalhadores estrangeiros. Numa visão otimista, esta crispação pode ajudar a repensar todo o sistema econômico, integrando pela primeira vez a questão ambiental.
Leia mais:
Leia também sobre o conflito em Guadalupe no blog The Observers.
Veja foto de uma das passeatas da semana passada:
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