“A plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes do presente Protocolo”. É o que diz o chamado Protocolo de Ushuaia, mais conhecido como cláusula democrática do Mercosul.
Assinado em 1998 por Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile, os dois últimos como observadores, o documento prevê sanções para a eventualidade de um país apresentar uma quebra na democracia representativa. A iniciativa surgiu após a tentativa de golpe de Estado no Paraguai em 1996, quando o general Lino César Oviedo tentou derrubar o presidente Juan Carlos Wasmosy (1993-1998).
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A resposta do bloco veio por meio da participação dos chanceleres de Argentina, Brasil e Uruguai e, com a mediação dos integrantes do Mercosul, as tensões existentes foram sufocadas e o golpe contido. Diante da experiência verificada, os presidentes resolveram criar um compromisso democrático para o bloco.
Cancilleria del Equador / Flickr CC
Cúpula de chefes de Estado do Mercosul realizada em Montevidéu, Uruguai, em julho de 2013
Para Wagner Iglecias, doutor em Sociologia e professor do Prolam (Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina) da USP (Universidade de São Paulo), um projeto integracionista como o Mercosul não deve ser concebido “de maneira limitada, restrita apenas às questões da economia, como o comércio e as finanças. Ele deve também estruturar-se sobre outros temas fundamentais para o desenvolvimento e para a convivência entre os povos, como a democracia, a cultura e as políticas sociais”.
Após sua criação, a cláusula democrática foi usada para o Paraguai quando, em 2012, o presidente Fernando Lugo (2008-2012) foi destituído por meio de um golpe de Estado Parlamentar em um processo de impeachment no qual não teve as devidas garantias legais de defesa. Após o ocorrido, o país foi suspenso até que a ordem democrática pudesse ser restabelecida com a realização de eleições, o que ocorreu em 2013 com a ascensão de Horacio Cartes ao poder.
Os questionamentos em torno das regras específicas e punições diante de eventuais quebras da ordem democrática levaram à criação, ainda em 2012, do Protocolo de Ushuaia II que, mais detalhado, prevê que serão consideradas punições para eventuais rupturas: o fechamento total ou parcial das fronteiras terrestres; a suspensão ou limitação do comércio, do tráfego aéreo e marítimo, das comunicações e do fornecimento de energia, serviços e abastecimento.
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Mas, por estar suspenso à época das discussões em torno da atualização do Protocolo, o Paraguai se negou a assinar o documento que, por este motivo, não está vigente.
Invocação da cláusula
Recentemente, o tema da invocação da cláusula democrática do Mercosul voltou à tona com declarações dos atuais presidentes de Argentina, Mauricio Macri, e do Brasil, Dilma Rousseff, em diferentes contextos. O mandatário argentino, antes de sua posse, afirmou que invocaria a cláusula contra a Venezuela, governada por Nicolás Maduro. Já a mandatária afastada disse que, em caso de efetivação de seu processo de impeachment, denunciaria a violação da democracia em seu país ao bloco.
O professor Iglecias afirma que a “invocação da cláusula democrática do Mercosul depende fundamentalmente do embate e da negociação política que ocorrem dentro do bloco diante de situações controversas”.
Segundo ele, a análise do processo está sujeita aos presidentes de turno na região. Isso porque “na visão da direita latino-americana, o impeachment de Dilma Rousseff é plenamente legal, sendo inclusive respeitados todos os trâmites no Congresso Nacional para que ela se defenda e para que os parlamentares, através do voto, decidam o desfecho do caso. Na visão de muitos setores da esquerda latino-americana, no entanto, trata-se da imputação, à presidente, de um crime que ela não cometeu, configurando um golpe de Estado”.
O mesmo ocorre para o caso da Venezuela, diz Iglecias: “para a direita, o país é uma ditadura socialista. Para a esquerda, a Venezuela é uma democracia, onde há eleições livres e periódicas e as instituições funcionam. Portanto, tanto em um como no outro caso, a invocação da cláusula democrática é muito controversa e depende do embate entre forças à direita e à esquerda que duelam pelo destino do Mercosul, dentro e fora dele”.
Apesar de ser considerado um avanço regional por zelar pela vigência das instituições democráticas na região, o protocolo tem limitações. Uma delas, afirma o especialista em integração regional, é o fato de que mesmo em uma situação de debilidade democrática no Brasil, “dificilmente algum dos países membros cogitaria, a sério, a suspensão ou expulsão do Brasil do bloco, dado que se trata da maior economia do Mercosul. Excluir o Brasil do bloco seria praticamente decretar o fim do Mercosul”.