Quando completar 12 anos em dezembro, a Constituição Bolivariana da Venezuela voltará a entrar na pauta da opinião pública do país, já tomada pelo clima de campanha eleitoral antecipada. A carta terá como sua principal defensora a atual presidente do TSJ (Tribunal Supremo de Justiça), uma corte superior de funcionamento díspar, criada após a revolução. Ao contrário de seus pares como o STF (Supremo Tribunal Federal) brasileiro, por exemplo, não se restringe às questões constitucionais, abrangendo todos as áreas da Justiça.
Morales esteve na semana passada em Brasília, onde participou da VI Cúpula de Poderes Judiciários da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), sendo a única mulher entre os 12 representantes sul-americanos. Entre sua participação nos seminários, concedeu uma entrevista exclusiva ao Opera Mundi.
Além de explicar o funcionamento único da Justiça na Venezuela, procurou desmistificar acusações de decisões jurídicas contaminadas por favorecimento político – em especial, no caso envolvendo o economista e ex-prefeito de Chacao Leopoldo López, uma das principais forças de oposição, que alega ter tido seus direitos políticos cassados. Também afirmou o compromisso do país em relação à noção dos direitos humanos atrelada à luta pela qualidade de vida das pessoas.
Pode-se dizer que a América Latina caminha em direção a uma jurisprudência, que faça com que uma decisão judicial sobre um tema relevante possa ser usada como referência a um país vizinho?
Ainda não dá para dizer que chegamos a esse ponto. De fato, o ideal é que cheguemos a uma integração autêntica, mas não somente no aspecto judicial. Para que essa jurisprudência transnacional ocorra, teremos que chegar a uma unificação legislativa. Em relação aos direitos humanos, estamos desenvolvendo no corpo jurídico da Unasul a concepção de relacioná-lo ao direito por uma vida melhor.
Divulgação/STJ
Morales discursa durante evento jurídico da Unasul em Brasília
A Venezuela propôs durante a Cúpula a criação de um centro de mediação e conciliação para a América do Sul. Realizamos um amplo exame sobre as situações difíceis que passaram nossos países quando ocorrem divergências em relação a investimentos e de comércio exterior.
Até agora, nossa única via para resolver os conflitos são os órgãos internacionais de arbitragem, que geralmente estão localizados na Europa e América do Norte. Na próxima cúpula, recomendaremos aos Estados uma forma jurídica para a implementação desse centro.
Qual é o balanço que podemos fazer após quase 12 anos da implementação da Constituição Bolivariana? O que mudou na Justiça e na sociedade venezuelanas?
Sob o ponto de vista geral, a Constituição da República Bolivariana da Venezuela é uma das mais “garantistas” do mundo. Porque ela concebe os direitos humanos exatamente nesse conceito da procura de uma vida melhor e por direitos que são clássicos a todas as legislações.
Leia mais:
Popularidade de Chávez cresce 10 pontos em dois meses
A mais de um ano da eleição, Venezuela já vive clima de campanha antecipada
Chávez pratica esporte diante da imprensa para confirmar boa recuperação
Venezuela nega que Chávez tenha sido internado às pressas para tratar câncer
Chávez viaja a Cuba para provável último ciclo de quimioterapia
Na Venezuela se desenvolveu uma ampla concepção da progressividade dos Direitos Humanos desde a nova Constituição. Uma das últimas demonstrações foi em relação ao direito à habitação, enunciativo em qualquer Constituição. Logo depois de uma temporada de chuvas que deixou recentemente milhares de famílias venezuelanas desabrigadas, o Executivo nacional implementou uma lei que estabelece o direito a essas vítimas de fenômenos naturais a reclamarem ao Estado um refúgio digno ao mesmo tempo em que demandam o direito a uma casa nova.
Desenvolvemos dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, não podemos considerar o sistema judicial como algo isolado, mas como um sistema que procura a aplicação da Justiça para todos os cidadãos venezuelanos. Em segundo, tivemos a criação de novas instituições [representativas do cidadão]. A promotoria e a polícia já são tradicionais, mas a criação da defensoria pública possibilita que todos os venezuelanos sejam representados frente à Justiça.
Qual é o nível de independência dos juízes na Venezuela depois da Revolução Bolivariana?
Quando se discutiu a Constituição de 15 de dezembro de 1999, foi formado um conselho de deputados para cobrir as etapas de transição e foi criada uma comissão de funcionamento e reestruturação do Poder Judiciário.
Essa provisoriabilidade em relação aos juízes se manteve por muitos anos até que, ao fim de 2010, foi aprovado o Código de Ética dos Juízes e Juízas Venezuelanos assim como foram criadas instâncias jurídicas disciplinares: a Corte de Ética e o Tribunal de Disciplina. Dentro desse sistema, os juízes asseguram um processo que permite sua defesa. Para marcar o fim desse período transitório, o Poder Judiciário venezuelano caminha, através da Escola de Magistratura, para a organização de concursos de promoção para que os juízes que até agora integram o Poder Judiciário possam optar pela titularidade e pela [continuidade na] carreira.
Ao se analisar o funcionamento do Tribunal Supremo de Justiça venezuelana, observa-se várias diferenças entre as demais cortes superiores, como o STF e o STJ brasileiros, por exemplo. Ele é muito mais generalista em relação às demais cortes supremas. Como é a dinâmica do tribunal para cuidar de tantas atribuições diferentes?
Na Venezuela, criamos uma jurisdição única. O Tribunal Supremo de Justiça, principal órgão do Poder Judiciário, é uma corte integral. Ao contrário dos demais países, não temos um tribunal constitucional, mas uma sala [câmara ou turma, ou corte especial, nos moldes brasileiros] constitucional que funciona com as características de um tribunal superior. Porém, este é integrado ao restante do corpo do judiciário.
STJ/Saulo Cruz
Morales foi a única representante mulher presente à Cúpula de Poderes Judiciários da Unasul
Essa mudança mostrou ter ser um grande êxito, pois a convivência entre os magistrados permite a discussão entre os diferentes pontos de vista que possam existir na interpretação constitucional. E posso dizer que existe uma convivência pacífica entre a sala constitucional e as demais, algo que não se pode dizer sobre o resto do mundo em relação às cortes internacionais e os tribunais superiores.
A Venezuela não desenvolveu, como em outros países, os tribunais eleitorais separados do restante do corpo judiciário. Os assuntos administrativos relativos ao poder eleitoral são representados nesse caso no CNE (Conselho nacional Eleitoral). Mas as questões jurídicas que surgem no exercício da participação eleitoral se resolvem dentro da Sala eleitoral, que compõe também o Tribunal Supremo de Justiça. Assim, os assuntos administrativos se diferenciam perfeitamente dos jurídicos, dando sempre a possibilidade de recursos.
No Brasil, por exemplo, uma decisão de uma turma ou câmara de determinado tribunal constituem em um estágio anterior em relação à decisão final. O voto do plenário constitui na decisão final de cada tribunal. No Supremo venezuelano, composto por 32 magistrados, como ocorre esta tramitação?
Nosso sistema é diferente. Cada uma das salas tem autonomia para decidir sobre seus assuntos. A Sala Plena [plenário] tem atribuições diferentes. Lá se decide toda matéria referente às atribuições de mérito, processos relativos às altas autoridades do país, como o presidente da República e os ministros de Estado.
Ele trata também de atribuições de mérito e conflitos de competência entre os diferentes tribunais ordinários ou especializados. Isso corre quando não existe outro tribunal superior comum a eles que pode resolver a questão de competência. Enfim, é muito diferente.
A mídia internacional alardeia que a Justiça venezuelana atende a compromissos políticos. Isso voltou a ocorrer no caso do opositor Leopoldo López. Ele apelou, com sucesso, à Corte Interamericana de Direitos Humanos alegando que seus direitos políticos teriam sido cassados. Esta situação não provocar um clima de instabilidade jurídica no país?
É necessário conhecer a legislação da Venezuela para poder julgar esse caso sem precipitações. Em primeiro lugar, com base nos compromissos constitucionais e nos convênios internacionais contra a corrupção assinados pelo país, em convenções datadas de 1996 e 2003, e implementadas na legislação venezuelana, foram estabelecidos alguns elementos sancionatórios relativos ao tema da corrupção administrativa.
Por isso, a Sala Constitucional do Tribunal Supremo de Justiça, com base no que estabelece a lei orgânica da Controladoria Geral da República e no sistema fiscal, afirmou que o caso de Leopoldo López se trata de uma pena de inabilitação administrativa. Ou seja, um caso onde a Controladoria analisou um possível ato de corrupção e deu sempre a possibilidade para o acusado se defender. Quando o réu é condenado nesse tipo de caso, ele é submetido a um ato de inabilitação administrativa, que o impossibilita de administrar recursos públicos. Isso quer dizer que a inabilitação administrativa em nenhum momento inabilita direitos políticos.
Para a Venezuela, a luta contra a corrupção não é algo que podemos relevar, pois se constitui em um compromisso de transparência de toda a administração do governo com o povo.
A Controladoria da República emitiu duas decisões de inabilitação administrativa a Leopoldo López, em sessões onde o réu compareceu e se defendeu. Porém, não obteve o resultado desejado, pois foi plenamente comprovado, através de documentos e outros elementos, que ele incorreu em um ato de corrupção. Ele poderia ter recorrido aos órgãos jurídicos do contencioso administrativo. Porém, ele o fez na Corte Interamericana dos Direitos Humanos, denunciando a Venezuela por restrição de direitos políticos.
Isto não se aplica ao caso de Leopoldo López. Ele nunca foi desabilitado politicamente porque esses casos administrativos não foram julgados por tribunais venezuelanos e não se estabeleceu uma condenação. No momento em que a Corte Interamericana tomou a decisão e notificou a Venezuela através de sua chancelaria, a procuradoria-geral da República solicitou à Sala Constitucional a seguinte interpretação: seria aplicável ao país a anulação do ato administrativo de inabilitação da Controladoria Geral? Porque, segundo a sentença, estava claro os que os direitos políticos de López foram restringidos.
A Sala Constitucional respondeu da seguinte maneira: a decisão da Corte Interamericana é inexecutável. Em primeiro lugar porque não se trata de uma inabilitação política, mas administrativa, ditada por um órgão distinto que não tem capacidade de cassar ninguém politicamente, só inabilitar administrativamente.
Em segundo lugar, porque a Corte Interamericana ordena que a Venezuela mude sua legislação relativa à corrupção passando por cima do compromisso de cumprimento de tratados internacionais relativos ao tema. Teríamos de reformar nossa Constituição para eliminar a competência da Controladoria Geral da República em ditar atos de inabilitação administrativa.
Efe
Leopoldo López, um dos principais opositores de Hugo Chávez
Em relação ao impedimento de direitos políticos, a Sala Constitucional foi enfática ao dizer que López nunca teve seus direitos políticos suspensos. Ele os exerce livremente, participa em todos os eventos políticos, constituiu um partido, se desenvolve perfeitamente. No âmbito político, tem direito de votar e também de ser eleito. O único aspecto pelo qual se encontra inabilitado é na administração de bens e orçamentos públicos. Mas politicamente não tem qualquer tipo e inabilitação. Foi isso que se decidiu e se interpretou na Sala Constitucional.
Creio que não se pode taxar de decisão judicial de finalidade política quando se respeitam objetivamente a Constituição, os direitos internos e os convênios internacionais contra a corrupção assinados pela Venezuela.
Siga o Opera Mundi no Twitter
Conheça nossa página no Facebook
NULL
NULL
NULL