Há mais de trinta anos, humanos da Argentina buscam seus netos, filhos de presos políticos desaparecidos durante a última ditadura militar do país (1976-1983). Estima-se que 500 crianças foram seqüestradas quando ainda eram bebês ou foram doadas ilegalmente a militares, após o nascimento nas prisões clandestinas. Após anos de investigação, há 102 “netos recuperados”, como são chamados na Argentina, atualmente adultos, foram identificados e devolvidos às suas famílias biológicas.
Há um caso, porém, que ganhou notoriedade e se tornou uma das principais disputas políticas do país: a verdadeira identidade dos herdeiros do grupo Clarín, o maior conglomerado de mídia da Argentina.
Veja a cronologia do caso:
24 de março de 1976 – As Forças Armadas da Argentina dão um golpe militar que derruba o governo constitucional de Maria Estela Martinez de Perón. Presidido por uma Junta Militar formada por Jorge Rafael Videla, Emilio Eduardo Massera e Orlando Ramón Agosti, o governo ditatorial é instalado Os principais objetivos eram aniquilar a esquerda marxista e peronista e o movimento sindical argentino.
Arquivo/Reprodução
Para isso, o regime monta no país 364 campos clandestinos de detenção sob controle militar, onde oposicionistas foram torturados, assassinados e desapareceram. Houve aproximadamente 30 mil desaparecidos, 10 mil presos políticos, 300 mil exilados, 300 adolescentes desaparecidos e 500 crianças seqüestradas junto de seus pais. Muitas delas foram roubadas por militares logo depois de nascerem nos centros clandestinos de detenção.
Leia mais:
Hoje na História: Golpe militar instaura ditadura na Argentina
Memórias do passado de terror
Assassinato por papel: livro tenta provar que CIA e ditadura argentina mataram empresário
7 de julho de 1976 – Ernestina Herrera de Noble adota Felipe. Segundo ela, a mãe biologia, Carmen Luisa Delta, não podia ficar com o bebê. No mesmo dia, sem dispor de provas determinando as circunstâncias do nascimento, a juíza Ofelia Hejt concede a guarda à dona do Clarín. A justiça descobre, em 2001, que a senhora Delta nunca existiu.
13 de maio de 1976 – Ernestina se apresenta diante da justiça em San Isidro, com um bebê a quem chamou de Marcela. Disse que a havia encontrado onze dias antes em uma caixa abandonada na porta de sua casa. Ela oferece como testemunhas uma vizinha, Yolanda Echagüe de Aragon, e o caseiro da vizinha, Roberto Antonio García, cujos depoimentos foram desmentidos em 2001. A guarda foi concedida no dia seguinte pela mesma juíza, Ofélia, que morreu antes de dar depoimento sobre o caso.
30 de abril de 1977 – Um grupo formado por quatorze mulheres de Buenos Aires começa a procurar por seus filhos desaparecidos e a cobrar uma resposta do governo militar. O movimento dá origem a uma das mais importantes organizações de direitos humanos do país, as Mães da Praça de Maio.
22 de outubro de 1977 – Surgem as Avós da Praça de Maio, associação formada também por mães de desaparecidos. Mas, no caso delas, suas filhas ou noras foram seqüestradas ainda grávidas e elas buscavam os bebês nascidos nas prisões clandestinas, que eram entregues a militares ou a simpatizantes do regime.
Reprodução/Abuelas.org e Madres.org
Manifestações das Avós e das Mães da Praça de Maio
Leia também:
Consolidar democracia exige punir repressores, dizem no Brasil Mães e Avós da Praça de Maio
Roubada por militares na ditadura, deputada argentina luta pelos direitos humanos
10 de dezembro de 1983 – O governo militar termina oficialmente e inicia-se o governo de transição foi do presidente Raúl Alfonsín (1983-1989), membro do partido UCR (União Cívica Radical).
24 de dezembro de 1986 – Sob governo Alfonsín, é criada a Lei de Ponto Final. Com texto curto, de apenas sete artigos, estabelecia a paralisação dos processos judiciários contra os autores das prisões arbitrárias, torturas e assassinatos durante a ditadura militar. Com as duas leis, estima-se que ao menos 1.800 militares foram anistiados.
Clique aqui para acessar o texto da lei.
4 de julho de 1987 – O governo Alfonsín sanciona a Lei de Obediência Devida, segundo a qual os crimes cometidos durante a ditadura não poderiam ser julgado, pois os repressores haviam agido em virtude de obediência devida.
Clique aqui para acessar o texto.
Análise:
Alfonsín acabou com avanços da democracia argentina e abriu caminho para os neoliberais
6 de maio de 2001 – Uma das testemunhas da adoção de Marcela, Roberto Antonio García, com 85 anos na época, desmente a versão da dona do Clarín. Apresentado, em 1976, como caseiro do local onde o bebê teria sido abandonado, García revela que trabalhou por 40 anos como motorista de Ernestina e de seu marido, Roberto Noble, fundador do conglomerado de mídia argentino.
Diante da comprovação de que os documentos da adoção eram falsos, as Avós da Praça de Maio fazem as primeiras acusações de que Felipe e Marcela são filhos de desaparecidos. Os dois, porém, recusam-se a fazer o exame de DNA.
Arquivo/Efe
Felipe, Ernestina e Marcela
17 de dezembro de 2002 – O juiz federal Roberto Marquevich ordena a prisão de Ernestina Herrera de Noble alegando ter “provas suficientes de que seus filhos foram adotados ilegalmente”.
19 de dezembro de 2002 – O jornal Clarín publica uma nota para justificar a adulteração nos documentos. Clique aqui para ler.
23 de dezembro de 2002 – Ernestina é solta e dá sua primeira e única declaração sobre o assunto: “Muitas vezes conversei com meus filhos sobre a possibilidade de que eles e seus pais terem sido vítimas da repressão”.
8 de janeiro de 2003 – A empresária é processada por ter falsificados os documentos de adoção de Felipe e Marcela.
21 de Agosto de 2003 – Sob o governo do presidente Néstor Kirchner (2003-2007), o Congresso Nacional argentino anula as leis de Ponto Final e de Obediência Devida.
14 de julho de 2005 – a Corte Suprema de Justiça ratifica a decisão de anular as leis de anistia, o que permitiu reabrir os casos de violação de direitos humanos durante a ditadura militar.
20 de Novembro de 2009 – Com 58 votos a favor e um contra, o Senado argentino aprova a lei de exame compulsório de DNA. A medida autoriza a coleta por meio de amostras de sangue, de saliva, de cabelo, na pele e na roupa. A lei determina também que a Justiça pode ordenar a colheita por meio de confisco de objetos que contenham células desprendidas do corpo da pessoa, como um pente ou uma peça de roupa, por exemplo.
30 de dezembro de 2009 – Amparado na lei de exame compulsório, o tribunal federal de San Martín ordenou ao juiz federal Conrado Bergesio que realize “de forma imediata e sem mais delongas” os exames de DNA de Marcela e Felipe.
A decisão, porém, é limitada: o magistrado declarou que as amostras de DNA seriam comparadas somente com as das duas famílias, García Gualdero e Lanuscou Miranda, que fizeram o pedido na Justiça para comprovar se são seus netos desaparecidos. Além disso, o exame foi feito numa sala de um tribunal, à pedido da diretora do Grupo Clarín, e não no Hospital Durand, onde funciona o Banco Nacional de Dados Genéticos. Amostras de sangue foram recolhidas, mas não foram submetidas a comparação porque os Herrera de Noble recorrem solicitando a suspensão da investigação de suas verdadeiras identidades.
9 de abril de 2010 – A Câmara Nacional de Cassação Penal determina que os DNAs de Marcela e Felipe sejam comparados com os do Banco Nacional de Dados Genéticos de desaparecidos. Os Herrera de Noble recorrem mais uma vez.
19 de maio de 2010 – A Corte Suprema da Argentina rejeita o recurso de Felipe e de Marcela e determina que façam o exame.
7 de julho de 2010 – Felipe e Marcela entregaram suas amostras de DNA ao Banco Nacional de Dados Genéticos, em Buenos Aires, na presença de advogados, jornalistas, da juíza que conduz o caso e de militantes de organizações de direitos humanos, sociais e sindicais.
Dyn
30 de julho de 2010 – O advogado dos Herrera de Noble anuncia que os exames de DNA dos dois estavam contaminados, impossibilitando a realização das comparações genéticas. As peças de roupas que foram entregues continham material de várias pessoas, informou o laboratório.
21 de setembro de 2010 – A Justiça solicita o recolhimento de pentes e escovas de dente na casa de Felipe e de Marcela e determina o afastamento do policial encarregado de recolher as amostras, em junho de 2010, por suspeita de adulteração.
29 de setembro de 2010 – A juíza responsável pelo caso, Sandra Arroyo
Salgado, determinou que o Banco Nacional de Dados Genéticos faça uma
análise das amostras de sangue e de saliva que Felipe e Marcela entregaram em dezembro de 2009. O objetivo é verificar se ali
há material genético suficiente para fazer o exame de DNA. Se não
houver, a juíza pode determinar que os dois entreguem nova amostra.
Siga o Opera Mundi no Twitter
NULL
NULL
NULL