Victoria Donda nunca se esquecerá daquela tarde de inverno, em agosto de 2003. Preocupada com o telefonema de um amigo querido, “Yuyo”, partiu apressada de casa ao seu encontro. O rapaz estava vinculado ao movimento das Mães da Praça de Maio, que agrupa desde 1977 mulheres cujos filhos desapareceram na ditadura argentina (1976-1983). Segundo ele, o assunto era urgente. “Depois da conversa, saí do bar onde nos encontramos sem saber quem eu era. Voltei para casa caminhando como um zumbi, em piloto automático”, conta a jovem, em tom de voz tenso.
“Yuyo” lhe contou que as Avós da Praça de Maio, mães de desaparecidos que buscam netos nascidos em prisões ou cativeiros, e que posteriormente foram adotados, suspeitavam há anos que ela era uma das crianças. As “abuelas” (avós em espanhol) haviam sido alertadas por um telefonema anônimo. “Suponho que a pessoa que fez a ligação sempre tenha desconfiado, já que minha mãe não apareceu grávida”, explica.
Aos 24 anos, Victoria – desde a adolescência militante de movimentos populares –, batizada com o nome de Anália, aprendeu que tinha outra identidade. O homem que chamou de pai durante toda a vida era amigo de militares. Mais tarde, ela descobriria que ele agiu durante a repressão contra seus verdadeiros pais. A guinada em sua biografia fez com que, em 2007, a jovem, então com 29 anos, seguisse traçando sua carreira política, consagrando-se deputada federal pela província de Buenos Aires, onde atua ativamente a favor dos direitos humanos e contra os torturadores. Victoria se tornou um símbolo.
Victoria acompanha ato das “Avós da Praça de Maio”, em Buenos Aires
Instalada no sofá do modesto, mas charmoso apartamento no centro de Buenos Aires, Victoria parece não saber por onde começar a relatar sua história. “Falei com meus pais, que me confirmaram que eu não era sua filha biológica. Chorei muito”, diz. Chocada, a estudante de Direito demorou seis meses para se submeter a um teste de DNA e autorizar que este fosse comparado a um banco de dados organizado pelo movimento das “abuelas” no hospital rural de Buenos Aires.
Acompanhada por vários amigos, entre os quais Lydia, colega militante e sobrevivente do centro de tortura da Escola Mecânica da Marinha (ESMA, na sigla em espanhol), ela pode então comparar seu DNA com o de 500 mulheres grávidas desaparecidas. Ela conta que a cena foi quase cômica, pois havia esquecido sua cédula de identidade em casa. “A única coisa que tinha era o cartão para alugar vídeos. Eles disseram que não podia fazer o teste sem prova de identidade, e eu respondi que essa era justamente a razão pela qual estava lá. Deu certo”, relata.
Seis meses depois, a resposta chegou: Anália era na verdade filha de María Hilda Pérez e José María Donda, apelidados de “Cori” e “el Cabo” pelos companheiros. Os dois eram membros da guerrilha montonera, facção do partido peronista opositora à ditadura. “Mamãe estava grávida de sete meses quando foi pega”, conta a jovem. Na estante feita de madeira e tijolos, entre a multidão de livros, há uma foto em preto e branco. “São meus pais biológicos no dia do casamento. Um visual muito anos 1970, não?”, brinca.
A menina nasceu em 1977, provavelmente na “sala das grávidas” da ESMA. Não sabe a data exata. Mas por sorte, descobriu que a amiga, Lydia, tinha conhecido sua mãe nos últimos dias de gravidez e a ajudado depois do parto. “Contou-me que me deixaram quinze dias com ela, para que me amamentasse; estávamos na ‘capucha’”, diz, em referência a uma das duas salas principais da ESMA. “Pelo o que soube, eu era muito chata, chorava o tempo todo e incomodava as outras prisioneiras”, narra, com um sorriso. De repente, mais séria, ela acrescenta: “Lydia me disse que minha mãe me chamou de Victoria. De um dia para o outro, abandonei Anália e virei Victoria”.
Encontro com a família biológica
Conhecer a nova família foi doloroso. “Tem uma parte boa e uma parte podre”, explica. Victoria descobriu que seu tio biológico, Adolfo Donda, era um torturador famoso, chefe das operações na ESMA. Foi ele quem organizou sua adoção, provavelmente após assistir à tortura e à morte da mãe. Adolfo foi preso em 1984, um ano após o restabelecimento da democracia, quando o já falecido presidente Raul Alfonsin autorizou o julgamento dos envolvidos na ditadura. Após dois anos na cadeia, foi solto: o mesmo Alfonsin, pressionado pelos militares, havia promovido duas leis de anistia, chamadas de “obediência devida” e “ponto final”.
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Victoria soube também da existência de uma irmã mais velha, Daniella, com quem não tem nenhuma relação. “Ela não quer me conhecer. Foi criada por meu tio, que a adotou quando saiu da cadeia, em 1986. Adolfo até mudou seu nome, que era Eva, escolhido por meus pais em homenagem a Eva Perón”, diz.
A avó materna de Victoria ainda está viva. Trata-se de Leontina Puebla de Pérez, uma das fundadoras do movimento das “abuelas”. Mora desde 1986 em Toronto, Canadá. “Leontina militou no movimento para me encontrar, mas quando meu tio saiu da cadeia, ele a ameaçou de morte. Ela então teve que fugir para o exterior”, justifica Victoria, que conheceu a avó vinte anos depois do exílio, em 2006.
Do pai, a garota não sabe nada. “Não acredito que tenha morrido na ESMA, acho que sumiu na Aeronáutica, mas não tenho certeza”, murmura em voz baixa. O único que conhece a verdade é o tio, que foi preso novamente em 2003, depois da revogação das leis de anistia pelo ex-presidente Nestor Kirchner. Ele agora aguarda ser julgado por crimes contra a humanidade. Victoria tentou visitá-lo para saber mais sobre sua história, mas Aldolfo se recusa a recebê-la.
A jovem não rompeu com a família de seus “apropriadores”, neologismo inventado para descrever a situação dos pais adotivos. Seu pai, Juan Antonio Azic, tentou de suicidar em 2003 quando soube que a Justiça iria revelar sua verdadeira identidade de torturador da ESMA. A própria Victoria relata a cena em um livro publicado em junho passado – uma maneira que encontrou para virar definitivamente essa página de sua vida. “Eu sei, claramente, que fui ‘apropriada’. Mas isso não significa que não tenho sentimentos ambíguos em relação àquele que foi meu ‘apropriador’, são sentimentos”, escreve no livro. “Quando uma pessoa ama outra, não tem jeito. E ninguém, nem as “abuelas”, acham que tenho de odiar meu ‘apropriador’”, afirma.
Parte 2: “Tenho o compromisso político no sangue”
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