Com uma lixa na mão, tirando farpas de um pedaço de madeira, o argentino
Humberto Paz narra sua história com serenidade. Fala pausada, o olhar
doce e a simpatia são algumas de suas características que, a primeira
vista, não combinam com seu passado: foi ele quem liderou o sequestro do
dono do grupo Pão de Açúcar, Abilio Diniz, em dezembro de 1989.
Paz recebeu Opera Mundi em sua
oficina, localizada na periferia fabril de Buenos Aires, onde
confecciona vidros, espelhos e molduras para quadros. O bairro, La
Tablada, é um tradicional distrito operário, ocupado por indústrias e
pequenas casas térreas. Foi lá que, aos 13 anos, ingressou na militância
peronista, participando de marchas por melhores condições de saneamento
e moradia na vizinhança.
Opera Mundi
Humberto Paz em 1989, na época da prisão no Brasil e hoje, com 55 anos
Com um sorriso atravessa a barba branca, Paz fala com naturalidade sobre
a infância, quando teve que trabalhar para sustentar a família, sobre a
vida na guerrilha durante o regime militar argentino e sobre a
participação no sequestro de Abílio Diniz. São histórias contadas como
se pertencessem a outra vida, relatadas com emoção aos 55 anos.
Ainda no final da adolescência, junto com seu irmão Horácio, filiou-se
ao PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores) e passou a fazer parte
de seu braço armado, o ERP (Exército Revolucionário do Povo). Esse
grupo e os Montoneros eram as principais organizações guerrilheiras
argentinas nos anos 1960 e 1970. Paz conseguiu recuperar, recentemente,
uma foto de seu primeiro treinamento militar, realizado em 1974.
Desde que caiu preso a primeira vez, em 1975, até o retorno a Buenos
Aires, em 2001, sua trajetória foi marcada pela cadeia, o exílio e a
clandestinidade. Após os dez anos de prisão no Brasil, condenado pelo
sequestro de Diniz, ainda cumpriu mais dois anos na Argentina, depois
de repatriado em 1999. Quando recebeu liberdade condicional, há nove
anos, voltou ao convívio com a família e amigos.
Aos poucos, foi reunindo as peças perdidas para reconstruir o formato de
sua vida. “Depois de tantos anos de clandestinidade, guerrilha e
prisão, pude me recuperar como pessoa”, relata Paz. “Há anos eu não
estava estabelecido em lugar algum. Na ditadura, mudei umas 12 vezes de
casa e, no exílio, me deslocava, o tempo todo, de um país a outro. Essa
inconstância deixou cicatrizes dolorosas, não só em mim, mas também nos
meus filhos, que me deram três netos depois que saí da cadeia.”
Opera Mundi
Fotografia registra o primeiro treinamento militar de Paz na guerrilha argentina
O sequestro
Paz explica que a operação do sequestro foi planejada aproximadamente um
ano antes: “Foi muito difícil aceitar participar, porque na época esta
decisão significava continuar vivendo às escondidas, em vez de tentar
levar uma vida normal”. Na época, final dos anos 1980, já era militante
do MIR (Movimento da Esquerda Revolucionária), grupo chileno envolvido
na luta contra a ditadura de Augusto Pinochet.
“Não quis voltar a Argentina depois da redemocratização em 1983”, conta
Paz. “Até fiquei alguns meses, mas meu partido tinha sido destruido, a
maioria de meus companheiros estava morta ou desaparecida. Não encontrei
meu lugar e resolvi me integrar à resistência chilena. Para o que desse
e viesse.”
A ordem de realizar o sequestro, segundo ele, partiu do comando de sua
organização e o objetivo seria “apoiar a guerrilha de El Salvador”. O
pequeno país centro-americano atravessava uma longa guerra civil naquele
momento, e o colapso da União Soviética havia prejudicado o
financiamento da esquerda local, progressivamente incapaz de enfrentar
um governo fortemente respaldado pelos Estados Unidos.
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Abílio Diniz foi raptado em uma manhã de dezembro, em 1989, no Jardim
Europa, São Paulo. Quando se dirigia ao trabalho, sua Mercedes foi
encurralada por uma Caravan disfarçada de ambulância e por um carro, dos
quais desceram homens que o renderam e o levaram a uma casa no bairro
do Jabaquara. O empresário foi mantido como refém durante seis dias em
um cativeiro subterrâneo de seis metros quadrados. O resgate pedido por
sua liberdade era de 30 milhões de dólares.
Mas uma sucessão de erros na operação levaram à prisão de seus chefes e e
à localização do esconderijo onde estava o refém. Após 36 horas de
cerco policial, que culminaram no dia das primeiras eleições
presidenciais brasileiras depois do golpe de 1964, os sequestradores se
renderam e foram presos. Ao ser liberado, Abílio Diniz declarou: “Foram
os piores dias da minha vida”.
O pesadelo de Humberto Paz e seus companheiros apenas começava.
Condenados a 28 anos de prisão, depois de sete teriam direito à
progressão penal e ao regime semi-aberto. Diante de decisões contrárias
da Justiça, fizeram três greves de fome em 1998. A última durou 45 dias e
acabou no último dia do ano, quando o governo de Fernando Henrique
Cardoso aceitou repatriá-los para os países de origem, onde terminariam
de cumprir sua pena.
Divulgação
Abílio Diniz, cercado por policiais, é libertado do cativeiro no bairro do Jabaquara
Somente nessa fase, quando os dez prisioneiros (além dos dois irmãos
argentinos, Humberto e Horácio Paz, havia mais cinco chilenos, dois
canadenses e um brasileiro) corriam risco de morte, o MIR assumiu
oficialmente a autoria do sequestro. Os salvadorenhos foram mais
discretos: através de carta ao então ministo da Justiça, Renan
Calheiros, um dirigente da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional
reconhecia o motivo político da operação e pedia desculpas. O
signatário da carta foi Salvador Sanchez Cerén, atual vice-presidente da
República.
Adeus às armas
“Você tem música do Brasil pra me passar? Adoro Maria Bethânia e Elis
Regina”, diz o argentino quando perguntado sobre detalhes do sequestro.
Diante da insistência, foge do assunto e solta uma sonora gargalhada.
Mas se põe sério ao ser questionado se está arrependido do que fez.
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“Como alguém vai se arrepender de ter lutado contra a pobreza e as
ditaduras?”, reage. “Se hoje conquistamos sociedades democráticas, foi
também graças ao nosso combate. Não pegamos em armas porque éramos
loucos, mas porque era uma necessidade. Os nossos estavam sendo
assassinado e massacrados. O que fizémos foi reagir. Infelizmente isso
teve um preço também para quem não estava diretamente no conflito. Foi o
caso do senhor Diniz.”
Mas é enfático ao afirmar que os tempos atuais são diferentes. Não
integra mais nenhum partido político, mas apóia o governo de Cristina
Kirchner e participa de manifestações a seu favor. “Os países da América
Latina construíram processos democráticos e de participação popular,
não é mais a hora das armas”, afirma Paz. “Muitos deram a vida para que
chegássemos até aqui. Outros caminhos se abriram, através da organização
das pessoas e eleições livres, que devemos defender incondicionalmente.
A democracia é um valor da esquerda, sempre ameaçado pelos
conservadores quando temem as mudanças.”
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