O tempo parece ter parado na cidade de Quilmes. Impossível imaginar que estamos a 20 quilômetros do caos de Buenos Aires. As pequenas casas são perfeitamente alinhadas, à sombra dos carvalhos, ao longo das alamedas desenhadas na década de 1940. À época, o bairro, que ganhou o nome de “Nova Argentina”, era destinado a alojar os operários da cervejaria Quilmes. Em seguida, o empobrecimento das classes populares afastou os trabalhadores, substituídos por famílias com renda mais elevada. Mas a fábrica continua sendo o coração da cidade. Os jovens namorados escondem-se atrás das árvores centenárias do parque localizado a 200 metros das cisternas de cerveja. Nas manhãs de sábado, os noivos costumam sentar na grama para tirar fotos do casamento, antes de encontrar o resto da família na capela San Jose Obrero. À noite, todos vão festejar nos imensos bares da empresa.
A lenda diz que a cerveja vem diretamente da fábrica, em tubos que correm debaixo da terra. A cidade de Quilmes é orgulhosa de produzir a cerveja mais tradicional do país. A marca faz parte do DNA argentino, tanto quanto o futebol de Maradona, o tango de Gardel e os discursos políticos de Eva Perón. A tal ponto que a empresa adotou as cores da bandeira argentina, azul e branco. Porém, alguma coisa fundamental mudou: a partir de 2002, a companhia Quinsa, que controla a cervejaria Quilmes, começou a ser comprada, pedaço por pedaço, pela brasileira AmBev, já presente no país desde 1994, quando construiu uma fábrica na cidade de Lujan – na época, a AmBev ainda era conhecida como Brahma, pois não havia ocorrido a fusão com a Antarctica, nem aquela com a belga Interbrew. Entre 2002 e 2006, o grupo brasileiro passou progressivamente a controlar 57% da Quinsa.
O caso da Quilmes é emblemático da onda de investimentos brasileiros na Argentina desde o começo da década. Praticamente ausente durante os anos 90, quando Buenos Aires liquidava suas estatais a compradores europeus e norte-americanos, o Brasil entrou pesadamente no mercado argentino a partir da crise de 2001, a pior da historia do país vizinho. No período de 2002 a 2008, o Brasil se tornou o terceiro maior investidor estrangeiro no setor produtivo da Argentina, atrás somente de Estados Unidos e Espanha. A injeção de recursos somou entre US$ 6,5 bilhões e 8 bilhões, e se concentrou especialmente na construção e ampliação de fábricas.
“Nos últimos cinco anos, houve uma avalanche de investimentos brasileiros na Argentina”, confirma Dadour Dadourian, diretor executivo do Grupo Brasil, que reúne as principais empresas brasileiras estabelecidas na Argentina, em todos os setores: petróleo (Petrobras), criação de gado (Friboi, Marfrig), construção civil (Camargo Corrêa), bebidas (AmBev), siderurgia (Belgo Mineira), bancos (Itaú), e por aí vai.
O argentino Cesar Padilla, presidente de Totalcom Argentina, lembra bem do dia em que o grupo de comunicação brasileiro Totalcom abriu a primeira filial em Buenos Aires. “Não dá para esquecer: foi quando a Argentina teve quatro presidentes em duas semanas, no final de 2001”. Desde então, a empresa, instalada no bairro de Nuñez, na parte norte de Buenos Aires, virou um dos principais atores do mercado local, graças a uma política de aquisição sistemática de empresas argentinas. “A situação era muito ruim no país. Mas o dono da empresa, Eduardo Fischer, apostou na recuperação rápida da economia. O resultado foi superior às expectativas”, diz Padilla.
Países ricos tiveram medo
Desde 2003, a economia argentina vem crescendo em média 8% ao ano, puxada pelo consumo interno. Uma dádiva para o setor publicitário. Como a Totalcom, muitos empresários brasileiros aproveitaram o baixo custo de empresas argentinas, consideradas muito competitivas, mas condenadas à falência por causa da recessão, ou por terem contraído dívidas em dólares antes da abrupta desvalorização do peso. “O Brasil é o país que soube aproveitar melhor a crise argentina. Os investidores internacionais tradicionais, como Estados Unidos, Espanha, França e Alemanha, ficaram com medo diante da amplitude da recessão. As empresas brasileiras, muito menos: estão acostumadas às turbulências”, avalia Ricardo Rozemberg, diretor da agência argentina de investimentos Prosperar. “Esse momento coincidiu com a internacionalização das empresas brasileiras: na hora de investir fora do país, o vizinho parece uma boa opção”.
Além dos preços competitivos para compra, as aquisições de empresas argentinas se mostraram interessantes pelos baixos custos de produção e pela qualificação da mão-de-obra local. Durante os primeiros anos da recuperação econômica, o governo argentino congelou algumas tarifas, como a energética, o que funcionou como subsídio para a indústria local. Ao mesmo tempo, optou por uma política monetária desenvolvimentista, mantendo o peso desvalorizado para ajudar as exportações. Já a qualidade dos funcionários é especialmente importante para a indústria [como a produção de autopeças, exportadas para Brasil] e os serviços. “O talento dos argentinos no mundo do design e da publicidade é conhecido e incontestável”, afirma Cesar Padilla, de Totalcom.
Muito mais sólidos que no passado, os grupos brasileiros precisam crescer além das fronteiras para virar global players. Ao comprar a Quilmes, a AmBev aproveitou a incapacidade da Quinsa de honrar suas dívidas em dólares depois da desvalorização do peso, em 2002. Ao mesmo tempo, a operação permitiu acabar com a guerra de preços no mercado argentino, o que tende a ser ruim para o consumidor, mas vantajoso para o empresário: a Ambev controla hoje 70% do mercado, sem virtualmente nenhuma competição. No mercado da construção civil, a situação é a mesma. Comprando a Loma Negra, líder local em cimento, o grupo Camargo Corrêa Argentina começou a participar dos maiores projetos de infra-estrutura do país nas áreas de energia, transportes e saneamento básico. Também está disputando as licitações de obras futuras, com potencial de construção na ordem de US$ 3 bilhões.
Entrar num mercado de 40 milhões de habilitantes não é a única motivação das empresas brasileiras. No setor de carne, por exemplo, onde se estabeleceram dois pesos pesados (Friboi e Marfrig), os investimentos na Argentina são uma estratégia para atingir mercados em terceiros países. “Para nós, é uma forma de diminuir os riscos sanitários: se a carne brasileira é barrada na União Européia por causa de uma epidemia, podemos compensar exportando a partir da Argentina”, explica um executivo de Marfrig, o grupo brasileiro que comprou a Quickfood argentina em 2007. A empresa dribla também o problema das cotas nacionais: o grupo pode exportar muito mais se atua em vários países da região. “Os grupos norte-americanos perderam grande parte do mercado na época da febre aftosa, e nunca conseguiram recuperar sua liderança. Investir na Argentina é uma maneira de evitar essa situação e estar sempre presente para nossos clientes”, acrescenta o executivo da Marfrig.
Itaú é bem-vindo porque não participou do “corralito”
A Argentina é um alvo ainda mais interessante considerando que as empresas adquiridas controlavam várias filiais na América Latina. Assim, Petrobras, AmBev e Belgo Mineira viraram donas de redes já existentes, facilitando ainda mais sua internacionalização. Por exemplo, a Petrobras Argentina pilota também as operações na Bolívia, na Venezuela e no Equador.
A instalação das empresas brasileiras foi facilitada pelo fato de que não tinham uma imagem negativa na Argentina. O Itaú, por exemplo, é percebido de maneira muito mais simpática pelos clientes locais já que, ao contrário dos bancos europeus e norte-americanos, não participou do “corralito”, quando todos os depósitos foram congelados e desvalorizados no começo de 2002. “Como as empresas brasileiras estavam ausentes antes, elas não têm nenhum histórico negativo, ao contrário de empresas como a francesa Suez ou os bancos norte-americanos”, analisa César Padilla.
A sintonia política demonstrada pelos governos também ajudou. A Argentina foi o primeiro país visitado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva depois de sua eleição, em 2002. Desde então, o casal Kirchner foi recebido em Brasília em várias oportunidades. “Sem dúvida alguma, o apoio político e financeiro de Brasília foi fundamental para ajudar as empresas brasileiras a sair das fronteiras nacionais”, avalia Dadour Dadourian.
O governo Lula orientou o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a fazer grandes empréstimos para as empresas brasileiras na América Latina. Durante os últimos anos, o banco aprovou US$ 1,7 bilhão em projetos na Argentina. O mecanismo provoca inveja nos empresários argentinos, que lamentam a inexistência de um banco público desse tipo em seu país e sonham com os generosos financiamentos brasileiros. “Aqui, as empresas não têm outra solução a não ser o autofinanciamento. Os empréstimos dos bancos representam menos de 20% dos capitais investidos”, destaca Fernando Grasso, do lobby dos industriais metalúrgicos Adimra (associação de industriais metalúrgicos da Republica Argentina). E do mercado de câmbio, nada se pode esperar: ao contrario da dinâmica Bovespa, o índice Merval ainda é minúsculo.
Essa inveja pode facilmente virar aversão aos capitais brasileiros, como explica o analista Roberto Marafioti. “Os argentinos têm a sensação de ter perdido o lugar deles. Antes, a Argentina era superior, tinha uma produção de qualidade quando o Brasil só compensava pela escala. Agora, não é mais o caso: o Brasil tem uma estrutura industrial sólida, enquanto a Argentina apenas começou a recuperar a sua”. Diante dos brasileiros, a perda de auto-estima da sociedade argentina parece se acentuar, como se a rivalidade do futebol estivesse se transferindo para o terreno da economia. “Nos anos 90, os argentinos não diziam nada contra os investimentos europeus ou norte-americanos. Agora que os brasileiros começam a investir, fala-se muito de uma invasão brasileira”, lamenta Roberto Marafioti.
Argentinos vibram com descobertas da Petrobras
A Petrobras sabia disso quando entrou pesadamente no mercado argentino, comprando várias empresas locais (Perez Companc, Petrolera Santa Fé, EG3). Dona de 550 postos de gasolina, com mais de 4 mil funcionários, a empresa precisava ter uma imagem simpática. “Não podíamos aparecer como rivais da histórica YPF [Yacimientos Petroliferos Fiscales], que ainda é líder da distribuição de gasolina”, explica Cláudio Negrote, o porta-voz da Petrobras Argentina. Com nome e cores muito vinculados ao Brasil, a presença maciça da Petrobras poderia parecer quase uma humilhação. Por isso, a estatal preferiu ser discreta, low profile. Na hora de escolher um time de futebol para patrocinar, evitou os dois maiores (River e Boca) e optou pelo Racing, cujas cores são as da bandeira argentina. Os patrocínios culturais obedeciam à mesma lógica: prioridade para os grupos populares para se fundir à paisagem. Funcionou. A marca Petrobras é hoje uma das mais admiradas do país, a ponto de os argentinos ficarem orgulhosos cada vez que é anunciada uma descoberta de petróleo na camada pré-sal. Eles têm a sensação de participar dessa aventura.
Essa estratégia, no entanto, nem sempre dá certo. De modo geral, os argentinos percebem que os brasileiros usam a Argentina como uma etapa de seu processo de internacionalização, sem se preocupar com o nível de desenvolvimento do país. Esse racha ficou claro na última reunião na OMC (Organização Mundial do Comércio) para discutir a Rodada Doha, quando o Brasil surpreendeu seus aliados do mundo emergente fechando um acordo com Europa e Estados Unidos. “Para a Argentina, uma boa relação com o Brasil tem importância capital, mas a recíproca não é verdadeira: o Brasil quer também conquistar os mercados europeus e norte-americanos, e está pronto a sacrificar uma parte de nossa aliança para este fim”, avalia Eugenia Crespo, especialista em Mercosul no Ministério da Fazenda argentino.
Esse descompasso também pode ser notado na falta de coordenação entre os vizinhos. “Nunca as trocas comerciais e os investimentos entre os dois países foram tão importantes como agora, mas, na verdade, a estrutura econômica não mudou, não há nenhuma política de complementaridade real, para que cada país se especialize em determinados setores”, diz Eugenia Crespo. Resultado: Argentina e Brasil continuam produzindo basicamente as mesmas coisas. Em épocas de bonança, tudo bem. Mas a situação fica mais tensa em tempos de crise, quando acaba prevalecendo uma atitude defensiva de ambos os lados. Nas últimas semanas, a desvalorização brutal do real provocou uma onda de pânico entre os industriais argentinos. Afinal, o Brasil é o destino de 24% das exportações argentinas e os impostos sobre essas vendas representam 13% do orçamento do governo de Buenos Aires. A mudança no câmbio pode significar perda de competitividade e menos investimentos brasileiros.
Em Buenos Aires, muitos brasileiros se queixam da desconfiança dos argentinos, às vezes beirando o racismo. “É verdade que muitos argentinos têm dificuldade para admitir que a aliança com o Brasil é nossa única saída”, reconhece Eduardo Sigal, encarregado dos assuntos do Mercosul no Ministério de Relações Exteriores argentino. “Mas já que o Brasil quer ser o líder, tem que pagar o custo dessa situação, mostrando mais generosidade”, acrescenta o diplomata.
Em tese, isso já é realidade. O presidente Lula anunciou recentemente que o Brasil liberaria uma linha de crédito do BNDES de US$ 200 milhões para as empresas argentinas. Mas os empréstimos demoram muito para chegar, deixando nos argentinos a sensação de que Brasília não quer cumprir a promessa. “Cada vez que o Brasil faz esse tipo de promessa, a realidade acaba sendo outra: para obter o empréstimo, a empresa tem, por exemplo, que se comprometer a importar metade das matérias-primas do Brasil… Não é uma política pensada para ajudar a reindustrialização da Argentina”, critica Fernando Grasso. Ele lembra que essa medida foi anunciada logo após o desentendimento na OMC. “Foi como um esparadrapo que o governo brasileiro quis colocar na ferida argentina, não uma política de desenvolvimento comum”.
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