O Supremo Tribunal Federal (STF) julga nesta quarta-feira (9) se extradita o italiano Cesare Battisti, 54 anos, a despeito de o ministro da Justiça, Tarso Genro, ter concedido a ele o status de refugiado político. Em seu país de origem, ele foi condenado à prisão perpétua por quatro homicídios como membro da organização clandestina Proletários Armados para o Comunismo (PAC), na década de 1970. Battisti nega ter cometido os crimes do período histórico iniciado por influência do movimento de revolta na França, em 1968.
Ignorado pela maioria dos italianos, o caso tomou grandes proporções e hoje divide os ministros da mais alta corte do país. O resultado do julgamento é indefinido, de acordo com os especialistas na área jurídica. Indefinido também porque a situação de Battisti é única: há cerca de 70 ex-militantes italianos dos chamados “Anos de Chumbo” foragidos pelo mundo. Sabe-se onde a maioria vive: França, Nicarágua, Japão, Canadá, Inglaterra, Grécia, Espanha e Palestina. O endereço deles é conhecido, assim como o número de telefone e a profissão. Mas a maioria dos países mal ouve os pedidos de extradição da Itália. Por quê?
A razão que eles dão é uma avaliação recorrente de que os crimes praticados foram por razões políticas. Nem sequer entram no mérito se Battisti os cometeu ou não. Além disso, o princípio jurídico não autoriza a extradição dos condenados à revelia, isto é, sem a presença do acusado, que não pôde se defender. Os arquivos da polícia italiana e os bancos de dados do Ministério da Justiça do país indicam Battisti e seus ex-colegas como foragidos porque são perseguidos por condenações definitivas.
Mas com a prisão recente de Battisti no Brasil, especialistas notaram que a direita italiana usou o caso para reafirmar a força do anticomunismo e abrir a chaga do terrorismo de esquerda. A deixa foi a decisão do ministro da Justiça ter sinalizado desconfianças sobre a isenção do Judiciário do país europeu para tratar do assunto. O status de refugiado político é concedido com base na Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, para pessoas que possam ser perseguidas ou temam pela própria vida no país de origem.
Desrespeito?
Segundo Cláudio Zanghì, professor emérito de Direito Internacional da Universidade de Roma, o fato de Tarso ter concedido o status de refugiado político a Battisti foi o que causou esse alvoroço no governo italiano. Ele diz que a administração de Berlusconi se sentiu ofendida pelo fato de o país ter sido considerado um lugar onde os seus adversários políticos são torturados ou até mesmo mortos.
Zanghì afirma que esse foi um fato novo para o governo italiano. No decorrer da história de pedidos de extradição feitos pela Itália, a maior parte deles foi recusada, mas nenhum país até então havia dado essa justificativa. “Nos Estados Unidos se encontram muitos perseguidos e condenados pelo governo italiano, inclusive, mafiosos. Nesse caso, os pedidos de extradição negados tiveram sempre justificativas jurídicas. No regulamento norte-americano, por exemplo, não existe o processo à revelia e, portanto, o indivíduo não pode ser extraditado”, afirmou.
O professor explica que, mesmo no período em que a França se recusava em entregar os perseguidos das Brigadas Vermelhas ou das Rote Armée Fraktion (Facção Exército Vermelho, organização alemã guerrilheira de extrema esquerda), na era da Doutrina Miterrand, as motivações eram jurídicas. Segundo a Doutrina, se os crimes cometidos pela pessoa eram de natureza política, ela não podia ser extraditada. E assim foi por anos. Em todos esses episódios, a Itália teve sempre que aceitar as decisões dos outros países.
Para Luigi Bonanate, analista político e professor emérito de Relações Internacionais da Universidade de Turim, “a retomada do caso Battisti entra na agenda política cultural do atual governo italiano”, para demonstrar que o governo não perdeu (ainda mais) autoridade internacionalmente. Ele lembra que o único ex-militante dos “Anos de Chumbo” de que as pessoas ainda se lembram é Antonio Negri, autor dos livros “Império” e “Multidão”. Mas Toni Negri (como é conhecido), já era um personagem culturalmente e politicamente relevante antes mesmo de seu exílio na França e de sua prisão na Itália. Era um filósofo e ativista político, com sólida carreira universitária.
Prioridades de Berlusconi
Bonanate avalia que a indecisão entre Itália e Brasil sobre o preso é irrelevante porque, no fim das contas, o veredito já foi dado. “Os senhores e as senhoras que lutaram na época dos ‘Anos de Chumbo’ já foram punidos: a história foi para outra direção”. E finaliza: “Battisti é um personagem derrotado pela história”.
O professor da Universidade de Turim afirma que essa postura em relação ao ex-ativista de esquerda é a mesma atitude do governo em relação aos imigrantes e estrangeiros. A Itália, nos últimos meses, tem lançado novas políticas de imigração e asilo, que receberam muitas críticas do Conselho Europeu e das Nações Unidas, através da agência da Organização do Trabalho e do Alto Comissariado para Refugiados.
O caso Battisti não importa a quase ninguém na Itália, ressalta o analista político. Ele diz que 95% da população italiana nem sabe quem é ele. E quem o conhecia, nem se lembrava mais dele. “Este é um típico caso político e da mídia”. Com a prisão recente de Battisti no Brasil, a direita italiana aproveitou a ocasião para reafirmar a força do anticomunismo e abrir a chaga do terrorismo de esquerda.
“Anos de Chumbo”
No final dos anos 1960, num pequeno espaço de tempo entre uma e outra, uma série de crises afetaram todo o mundo. Rebeliões sociais e culturais, guerras neocoloniais, fim da estabilidade monetária, economia internacional em recessão e crise energética. A Europa passava por um período de mal estar político, social e econômico.
Influenciada principalmente pelas aspirações e revoltas dos jovens franceses, parte da população italiana passou a reivindicar um novo modelo cultural e social de clara inclinação socialista. O Partido Comunista Italiano (PCI) a cada eleição recebia mais votos e começava a colocar em xeque o controle de quase meio século da Democracia Cristã (DC).
Em 1969, devido à crise econômica, o desemprego aumentou muito com a dispensa de milhares de operários. O movimento estudantil se juntou à luta dos sindicatos e dos trabalhadores contra as demissões. Foi um período conhecido como “outono quente”.
A tensão social e política se agravou com o início de atentados à bomba. O de maior repercussão foi o da agência do Banco Nacional da Agricultura, na Piazza Fontana, em Milão, que deixou 17 mortos e 87 feridos. Nenhum grupo político reivindicou a autoria do atentado. As suspeitas recaíram sobre grupos de esquerda e de direita. Nada foi comprovado. Para os historiadores, esse incidente marca o início dos “Anos de Chumbo” na Itália.
Atentados como esse duraram até a década de 1980, e foram classificados posteriormente como “Estratégia da Tensão” – termo que indica um complexo de ações produzido pela extrema direita, com o objetivo de desestabilizar e criar medo na sociedade civil, para obter determinados objetivos políticos: afastar os italianos dos partidos de esquerda e formar uma opinião pública favorável à instauração de um Estado policial.
Esquerda italiana
Os grupos de esquerda do país também estavam divididos ao longo daquele período. Parte dos jovens passou a acreditar que somente um movimento de luta armada revolucionário e, no caso, clandestino, poderia mudar a Itália e solucionar os seus problemas. De 1969 a 1975 surgem as primeiras organizações de extrema esquerda Luta Continua, Vanguarda Operária e as Brigadas Vermelhas.
O mais famoso desses grupos, as Brigadas, usava modelo cultural e político marxista-leninista, com o declarado objetivo de estabelecer a Ditadura do Proletariado. Opunham-se ao “compromisso histórico” – acordo político entre o PCI e a DC para formarem um governo de união nacional. Mas a intensificação da violência no país vem depois de 1975, quando novas organizações são formadas: os Núcleos Armados Proletários, Primeira Linha e o PAC, de Cesare Battisti.
Em 1978, quando se tornava quase certa a celebração do “compromisso histórico”, as Brigadas Vermelhas sequestram Aldo Moro, líder da Democracia Cristã e ex-premiê, e exigem a libertação de militantes presos. Dirigentes da Democracia Cristã e do governo se recusam a negociar e Moro é assassinado.
A repercussão do crime é enorme e a sua condenação também. A extrema esquerda clandestina fica totalmente isolada. Muitos militantes abandonam os movimentos de luta armada. Uma nova legislação é aprovada pelo governo para implantar a “delação premiada”, que recompensa o ativista que se arrepender dos atos cometidos e revelar a identidade dos colegas. Surgem os “pentiti” (arrependidos).
Assim, com a prisão de alguns, e com a colaboração de outros com a polícia, as organizações de extrema esquerda são desmanteladas. E, aos poucos, os “anos de chumbo” terminam.
Nesta quarta-feira, o STF poderá revivê-los na memória ou enterrá-los de vez.
(Até as 20h desta quarta, o julgamento ainda não havia terminado)
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