Reprodução
Camponeses e operários, unidos pela 1ª vez na América Latina, usaram armas da Guerra do Chaco para depor oligarquia
O golpe de estado de 9 de abril de 1952 não foi um fato isolado no processo revolucionário boliviano, uma vez que o país já estava enfraquecido por uma longa e sucessiva sequência de crises políticas e sociais. A insurreição civil-militar apenas marcou uma insatisfação limite da população operário-mineira e camponesa, que vinha desde a década de 1930, diante da situação exploratória da extração de estanho. Este era o minério mais importante na época e assegurou, durante mais de 20 anos, a continuidade do monopólio da velha ordem oligárquica, com apenas três grandes mineradores e proprietários de terra: Patiño, Hothschild e Aramayo.
Um dos fatores iniciais para o aumento da insatisfação popular foi a depressão econômica mundial de 1929, que comprometeu duramente a produção e as exportações bolivianas de estanho para os Estados Unidos e Europa, causando o fechamento de minas e desemprego massivo. Somou-se a isso a sangrenta Guerra do Chaco, de 1932 a 1935, quando o país perdeu uma significativa parte de seu território para o Paraguai e também muitas vidas (mais de 65 mil) – os soldados, em grande parte índios, camponeses e operários, não receberam preparo militar adequado e ainda passaram fome no campo de batalha.
Resultado já esperado: aumento da mobilização política nas camadas populares, especialmente na classe mineira e camponesa. Resultado acidental (ou mal planejado): as armas não foram devolvidas após a guerra e estes cidadãos permaneceram armados, inflados pela sede de mudança. Ou seja, o levante não foi o estopim, mas o ápice de um demorado processo considerado único na América Latina a unir operários e camponeses (de maioria indígena) do mesmo lado.
No dia 9 de abril, o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), coordenado pela classe média, passou por cima da ilegalidade imposta pela junta militar e liderou um golpe civil-militar. A pequena burguesia não contava com a consciência política generalizada, mas soube usufruir dos êxitos dessa insurreição. Por isso, pode-se dizer que a participação espontânea e improvisada de mineiros e camponeses armados (com o aparato da Guerra do Chaco e também com dinamites usadas nas minas) foi fundamental na invasão dos quartéis em cidades como La Paz e Oruro, causando a dissolução do exército nacional.
Os meses e anos seguintes mostraram a ascensão de novas forças sociais organizadas, como a COB (Central Operária Boliviana) e os sindicatos camponeses. O voto universal foi instaurado em julho e a nacionalização das grandes mineradoras aconteceu em outubro do mesmo ano.
Na sequência vieram a reforma agrária, em agosto de 1953, e reforma educacional com um novo código oficializado em janeiro de 1955.
Depois da revolução
De acordo com o livro A Revolução Boliviana, de Everaldo de Oliveira Andrade (Ed. Unesp), de forma geral, os fatos que se seguiram não foram tão memoráveis. O regime militar governou o país de 64 a 78 e teve altos e baixos. No início, a Bolívia recebeu apoio dos EUA, proibiu reuniões sindicais, eliminando os opositores com prisões, exílios e assassinatos (vale lembrar a prisão e morte de Che Guevara em território boliviano, em outubro de 1967). Na década de 70, no entanto, outro governo militar assumiu uma política externa um pouco mais independente, restabelecendo relações com a URSS e parcerias comerciais com vários países do Leste Europeu.
Nessa época, os movimentos sociais se rearticularam e alcançaram uma grande conquista: a Assembleia Popular, criada em maio de 1971, pretendia instaurar a democracia direta. A eleição dos delegados, porém, não garantiu a participação de todas as entidades e sindicatos representativos de forma equilibrada, e ainda havia limites na atuação efetiva dos integrantes da chamada Comuna de La Paz.
Mesmo assim, o coronel Hugo Banzer chegou a declarar, muitos anos depois, que “a assembleia era o governo de fato”. Dois meses depois, quando ele liderou um golpe novo militar, a Comuna foi desfeita e a violência da ditadura tornou-se pior.
Em 1978, as primeiras eleições pós-regime militar são anuladas por conta de fraudes e irregularidades, e o candidato vencedor não assume a liderança do país. Em cerca de quatro anos, a Bolívia vive um período de extrema instabilidade política, com o revezamento de nove presidentes no cargo, e o primeiro mandato realmente democrático chega apenas em 1982. Em 1985, a eleição de Victor Paz Estensoro assume uma posição neoliberal e o governo faz acordos com o FMI, mas passa a enfrentar uma forte recessão econômica e desemprego por conta das privatizações. Os movimentos sociais passam por outra onda negativa, com a prisão de dirigentes sindicais e a dispersão da classe operária mais organizada do país, justamente por conta da falta de salário e da fome generalizada.
As novas correntes camponesas e originárias se organizam, inclusive em manifestações contra a privatização da água na chamada “Guerra da Água”, entre 1999 e 2000. Apesar disso, o sistema de governo da democracia moderna exclui setores populares, indígenas e operários, e a força política que se alterna no poder até 1997 são os partidos moderados ligados à burguesia.
Voltando a 1985, vale destacar a ascensão do movimento cocaleiro, que incluiu em sua luta as reivindicações de outras classes excluídas, ganhando, assim, ainda mais força aos longo dos anos seguintes. Apesar do apoio dos EUA no combate ao narcotráfico e do programa “Coca Zero”, lançado por Hugo Banzer, o violento militar que dessa vez foi eleito com voto popular até 2002, o movimento “Assembleia para a Soberania dos Povos”, criado pelos cocaleiros, leva Evo Morales ao parlamento com 70% dos votos em Cochabamba.
Nas eleição de 2002, o MAS (Movimento ao Socialismo) é o segundo partido mais votado, atrás do MNR de Gonzalo Sanchez de Lozada, que governou mantendo as políticas neoliberais e defendeu a exportação de gás da Bolívia para o Chile com a justificativa de que os investimentos ajudariam o país a sair da crise. Por causa desse argumento, o presidente enfrentou a Guerra do Gás, em 2003, em um confronto do exército contra camponeses, desempregados, cidadãos excluídos e militantes da COB na cidade de El Alto, vizinha a La Paz. E então seu mandato foi interrompido com a própria renúncia, assumindo Carlos Mesa.
Em 2004, um referendo popular aprova a gestão nacional dos hidrocarbonetos para devolver a soberania boliviana na exploração de seus recursos naturais, mas Mesa distorce resultados e, em 2005, a lei realmente aprovada não prevê a nacionalização. A consequência é imediata: La Paz é sitiada, o governo interrompe seus trabalhos e Mesa renuncia. O presidente da Corte Suprema assume temporariamente a presidência até as eleições em dezembro deste ano, quando Evo Morales Ayma vence com a maioria absoluta dos votos.
NULL
NULL