A vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais da Argentina combina diversos elementos da extrema direita global com os episódios mais sombrios da história do país.
Ao examinar a história da Argentina, pode-se observar que o país que não é alheio a tumultos e infortúnios, e pode ter ainda mais para os próximos quatro anos. Quando o resultado das eleições de 19 de novembro foi divulgado, o segundo turno da eleição veio com a vitória acachapante de Milei que derrotou o candidato do governo peronista em exercício por mais de 12% de diferença. As poucas esperanças de uma reviravolta de última hora serviram apenas para tornar a derrota ainda mais amarga.
Milei, foi destaque em suas características de personalidade mais bizarras: os cinco mastins, batizados em homenagem a liberais como Milton Friedman e Murray Rothbard, que supostamente dão ‘conselhos’ a Milei; seu histórico como goleiro de futebol e vocalista de uma banda cover dos Rolling Stones
Mas além disso e dos discursos inflamados – cuja violência lembra o imaginário da extrema direita global – e de algumas palavras bajuladoras sobre Margaret Thatcher (persona non grata na Argentina), Milei é um nacional profundamente argentino e está se inspirando em uma história nacional mais profunda e sombria. A nova direita argentina conversa bem com o seu autoritarismo, com a tendência a tratar a oposição como inimigos e nesta campanha vimos exemplos a respeito em abundância.
Em conversa com Opera Mundi, André Kaysel, professor doutor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) faz um balanço crítico do cenário político argentino e latino-americano, apontando com particular preocupação o que pode significar uma vitória de Javier Milei para a América Latina.
Opera Mundi: Como você analisa essa virada brusca à direita na Argentina com a vitória de Milei?
André Kaysel: Essa virada deve ser compreendida no cruzamento de duas dimensões: Uma delas é internacional que é a onda que tem persistido nos últimos anos de avanço da extrema-direita em diferentes regiões do mundo em diferentes contextos entre si, basta lembrar que poucos dias depois da vitória de Milei, em um outro contexto completamente diferente na extrema-direita o candidato Geert Wilders acaba de vencer as eleições na Holanda, mas também evidentemente o componente interno argentino, e a crise econômica é um elemento fundamental, sobretudo a inflação. Lembrando que o desemprego argentino não é tão alto para padrões locais, em torno de 6% não mais que 7%, temos uma taxa de 140% de inflação e uma taxa de pobreza de 40% ainda que seja difícil comparar taxa de pobreza, a Argentina tem uma taxa de pobreza oficial, coisa que o Brasil propriamente não tem, mas em todo caso, 40% é um número alto. Nesse sentido, temos uma maioria de força de trabalho empregada mas, com empregos principalmente precários de baixos rendimentos, rendimentos esses que tem sido tragados pela inflação que não começou no Governo Fernández, a Cristina Kirchner deixou o último mandato com 25% de inflação, Macri dobrou a inflação e deixou a Argentina em 2019 com 50% de inflação, mas Alberto Fernández mais que dobrou a inflação chegando a 140%.
Mesmo que exista um peso do acordo com o FMI, do alto grau de endividamento deixado pelo governo anterior, os efeitos da pandemia e da seca que prejudicou muito as exportações argentinas neste ano é inquestionável que houve muitos erros do atual governo e que pagou por isso como costumam pagar os incumbentes. Diria que as principais razões estão aqui.
Mas, em todo caso, há um aspecto mais profundo. Tem a ver com aquilo que tem se chamado de batalha cultural, em outros contextos porque afinal de contas, havia outros candidatos, inclusive a oposição tradicional ao peronismo, o campo encabeçado pelo ex-presidente Mauricio Macri, a candidata era a Patricia Bullrich, que ficou em 3º lugar na corrida presidencial e teve os seus votos transferidos para Javier Milei, portanto, há aí um rechaço da classe política em seu conjunto, Milei soube canalizar isso muito bem utilizando todo o arsenal anti político, usando a expressão “la casta” para se referir à política tradicional, ainda que esteja aliado com parte dela, compondo com Macrismo no gabinete.
Quais são as semelhanças e diferenças entre um governo Milei e o processo liderado no Brasil pelo ex-presidente Jair Bolsonaro?
Temos elementos semelhantes como a característica “antissistema”, como a afirmação de um conjunto de pautas da extrema-direita, livre mercado, conservadorismo nos costumes são elementos comuns, mas o contexto e a combinação desses elementos são diferentes. O Brasil não tinha uma crise inflacionária como tem a Argentina hoje, embora tivesse uma crise econômica que bateu profundamente no final do governo da Dilma Rousseff, um particular aumento do desemprego e o empobrecimento de uma parte importante da população.
Em relação às diferenças, o elemento do conservadorismo religioso e em particular evangélico parece ter mais peso no caso brasileiro, embora o conservadorismo moral não esteja ausente da plataforma de Milei em particular o anti-feminismo, a oposição à comunidade LGBTQIA+ ou a rejeição da legalização da despenalização do aborto. E a defesa do legado judaico-cristão que no caso com Milei é forte, a proximidade com Israel não é por acaso. Mas, o elemento evangélico não é tão forte no caso argentino.
Nessas eleições argentinas vimos algo incomum. Um ministro da Economia na corrida presidencial com uma inflação de 140%, como você acha que seria um governo Massa?
De fato, acho que a escolha de um candidato oficialista – e de qualquer modo teria uma vida muito difícil – tornou a tarefa ainda pior por ser um ministro da economia. Massa tentou se desvencilhar desse legado, mas como já era ministro há quase um ano, isso foi impossível.
Como seria um governo Massa, não é o mais importante já que não será. Era um candidato moderado, de centro-direita. Como se vê, nem sempre a moderação é a solução para ganhar uma eleição, nesse caso claramente não foi. O fato dele ser ministro da economia pesou muito mais. Agora, como será um governo Milei também é difícil dizer pois há sinais desencontrados nesse primeiro momento, inclusive uma sinalização de que a equipe econômica vai ter um peso maior dos elementos ligados à Macri, como o Luiz Caputo que deve ser ao que tudo indica o ministro da Fazenda que foi um membro da equipe do Macri, esteve no Banco Central na sua gestão, mais do que os elementos que cercavam Milei originalmente que eram mais favoráveis à dolarização como o Emílio Ocampo, Carlos Rodrigues que até de certa maneira deixaram a equipe de transição e já há um sinal de que a bandeira de campanha da dolarização está sendo abandonada. Mas é muito difícil dizer o que vai acontecer com um governo que vai ter que construir uma maioria parlamentar com o macrismo e de qualquer modo terá uma maioria parlamentar frágil, para dizer o mínimo.
O que pensa das posições da esquerda latino-americana em geral?
Sobre as posições da esquerda latino-americana, o problema maior me parece ser as circunstâncias. A América Latina é um continente de um modo geral um continente muito dependente de exportação de produtos primários, portanto, muito vulnerável às oscilações do mercado internacional e foi duramente atingido pela pandemia de covid-19 e deixou sob extremo estresse os seus muito precários os sistemas de proteção social e estamos em uma conjuntura internacional com um sistema internacional tanto do ponto de vista geopolítico como do ponto de vista econômico muito instável.
Portanto, é um momento ruim para a esquerda em geral. As vitórias recentes da esquerda latino-americana, tendem a ser de vida curta, como de certa maneira também muitas das vitórias das direitas. Os atuais presidentes, todos estão tendo dificuldades, uns menos outros mais. Talvez com a exceção no campo da esquerda de Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, que tem uma popularidade ainda muito alta, mesmo ao final do seu governo e que agora vai passar por um teste para ver se consegue eleger sua sucessora ano que vem, mas os demais enfrentam dificuldades, tanto pela conjuntura externa, como também por divisões internas, como é o caso do MAS boliviano que há uma divisão muito forte entre o presidente Luis Arce e o ex-presidente Evo Morales.
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O presidente eleito de extrema direita da Argentina, Javier Milei, Buenos Aires, Argentina.
No caso argentino, algo assim também aconteceu entre Alberto Fernandez e Cristina Kirchner, é bom lembrar que não se entenderam bem durante o governo e esse foi também um fator importante para entender essa derrota para Javier Milei.
A questão fundamental é deixar um pouco de lado essa ideia de ciclos estanques, de “ondas” mas entender de fato um cenário em que a força da extrema-direita se nutre de uma forte instabilidade. Indico a leitura de um artigo recente publicado pouco depois das primárias da Argentina, chamado “Retratos de Família”e o outra leitura é um pequeno livro do Álvaro García Linera, ex-vice-presidente da Bolívia, La Politica como Disputa de la Esperanza.
Você acha que Milei foi apenas um voto de protesto e descontentamento de um eleitorado desiludido?
Essa rejeição ao estado atual das coisas falou fundo aos mais jovens, especialmente homens, onde os votos para Milei foram esmagadores e também em setores precarizados da classe trabalhadora. O voto antissistema teve um peso muito grande, mas claro, um voto de protesto nunca é só um voto de protesto, porque Milei tem plataforma política e os eleitores em parte o escolheram por ela. A ideia de dolarização, e devolver certa estabilidade à economia.
Porém, outra parte o escolheu apesar dessa plataforma política, porque não necessariamente estavam de acordo com muitas coisas que ele defendia, tanto é que em alguns posicionamentos ele teve de recuar, como a proposta de privatização da educação pública e da saúde pública, mas essa plataforma de extrema-direita acabou prevalecendo tanto sobre a centro-esquerda como sobre a direita tradicional.
Javier Milei se autodenomina “anarcocapitalista”. Mas ele também se imagina parte de um legado secular do liberalismo clássico argentino. Quão importante é esse elemento para a nossa compreensão de Milei?
Acho que a ideologia de alguém não é relevante para entender em totalidade sua postura, mas não deve ser absolutizado. As ideias são muito importantes mas elas têm de ser entendidas como um contexto a partir da correlação de forças. Por exemplo: Milei prometeu a dolarização mas está abandonando esta proposta, dito isso, há uma tensão entre as duas reivindicações que Milei faz, uma de pertencer a essa tradição anarco-capitalistas, ligada seja as ideias mais radicais da Escola Austríaca como de Hayek e Von Mises ou de um economista norte-americano que se auto definia como libertário ou libertariano em algumas traduções Murray Rothbard, que é uma corrente tradicionalmente marginal, dentro da própria direita norte-americana.
O liberalismo clássico argentino do século XIX, inclusive um autor que Milei cita de vez em quando que é o Juan Bautista Alberdi, um dos pais da constituição argentina de 1853 ou Domingo Faustino Sarmiento autor de um clássico da literatura e do pensamento latino-americano que é o livro Facundo: civilização e barbárie de 1845, portanto há uma diferença grande a ser destacada. Por exemplo: o papel da escola pública, inclusive abstraindo as diferenças de contexto internacional ou nacional, e uma distância de 150 anos que nos separa deste período, tanto para Alberdi quanto para Sarmiento, a escola pública era muito central e não é para Milei porque Milei promete agora que a escola vai permanecer pública, mas ele chegou a dizer em mais de uma ocasião durante a campanha eleitoral que o melhor seria a privatização.
Esse ultra-liberalismo do século XX que emerge nos anos 1930 e 1940 e que sob diferentes denominações como a Escola Austríaca, Libertarianismo etc., tem ganhado força desde o final do século XX e agora em versões particularmente extremadas no início do século XXI, tem continuidades com o liberalismo mas também tem muitos pontos de ruptura. O tipo de individualismo que se postula, a relação entre o Estado e a cidadania é muito diferente. E no limite temos aqui um individualismo do “salve-se quem puder”, que está mais próximo do que Thomas Hobbes identificaria com o estado de natureza do que o ideal do cidadão livre sob uma República liberal como entendiam Alberdi e Sarmiento.
Haveria muito o que comentar nesse sentido, sobre o imaginário argentino e uma percepção de decadência que as elites e parte das classes médias argentinas tem em relação ao país, e uma certa nostalgia do início do século XX quando havia uma economia primária exportadora mais próspera e que agora ganhou uma audiência de massas dado a agudização da crise recente, e como qualquer memória retrospectiva carrega muito de idealização e ao mesmo tempo tem aí uma ideia de civilização Ocidental e branca, muito associada a essa imagem da nação argentina construída por autores como Alberdi e Sarmiento no final do século XX.
Mas, insisto que isso é uma coisa e o libertarianismo é outra. E diria que são coisas de difícil convívio. O governo Milei, pega evidentemente uma situação economica muito difícil e numa situação de certa fragilidade institucional, terá muita dificuldade de equilibrar esses dois imaginários e convertê-los em políticas de Estado, até porque convenhamos… Anarco-capitalismo é uma fórmula contraditória em si mesma porque não há capitalismo sem Estado, ao contrário do que parte dessa tradição imagina. E não precisamos ler Karl Marx para percebermos isso, para Hobbes por exemplo não há propriedade privada sem o Leviatã que garanta a propriedade. A maioria dos liberais reconhecem isso, o próprio Milei reconheceria isso, talvez.
Situações de especial crise econômica como a Argentina, requer um Estado forte capaz de garantir tanto a sobrevivência das maiorias como o próprio funcionamento do mercado. O que Milei poderá entregar para os seus eleitores é muito duvidoso e a Argentina deve permanecer num período de instabilidade econômica, política e social. A ver o que acontecerá.
Qual a relação de Milei com a ala repressiva do Estado argentino? Essa ligação parecia ser mais evidente no caso de Jair Bolsonaro, ele próprio um ex-capitão militar e um defensor da ditadura militar.
A ligação maior é com a vice-presidente, Victoria Villarruel, que vem de família militar e é uma revisionista e negacionista dos crimes da ditadura militar argentina. Defendeu e visitou vários violadores de direitos humanos condenados nas décadas passadas por crimes contra a humanidade e há quem diga até que visitou o general Videla quando estava vivo e portanto, ela seria a ligação maior com este setor.
Mas é preciso considerar que o exército argentino não tem o mesmo poder para com a sociedade e o restante do aparelho de Estado que o Exército brasileiro tem. Inclusive, que se desmoralizou com a derrota militar na Guerra das Malvinas. Então, é difícil dizer quando Milei poderá usar um eventual poder militar como uma forma de se legitimar ou se manter no poder. Me parece que, por mais que Villarruel possa apelar a isso, o peso na Argentina é menor. Menos pelo discurso deles e mais pelas condições concretas da relação entre militares e civis na Argentina.