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Crise é o lema do nosso tempo. Após a aurora do novo milênio, a América cambaleou de fracasso em fracasso. A eleição de Barack Obama levou esperança a muitos, mas a realidade de uma política econômica profundamente disfuncional não se rendeu imediatamente a um ou dois bons discursos. O colapso em câmera lenta da educação pública, ajudado pelas políticas de uma administração democrata, continua em passo acelerado. O sistema financeiro parece mais desajeitado, negligente, obscuro e insanamente poderoso do que nunca.
Chris Hayes é editor da revista The Nation e apresentador de um programa de notícias da TV a cabo MSNBC. Em seu novo livro, Twilight of the elites (O caso das elites), ele explica que a “década perdida” é resultado de uma elite meritocrática corrupta e isolada, que não ajuda e é disfuncional. Hayes argumenta que são os ideais meritocráticos dessas elites, calcificados em caricaturas perversas, que produzem suas repetidas tolices. Uma ampla igualdade, embora apoiada numa concepção rasa, permite uma maior aceitação do, digamos, casamento gay, mas faz da mobilidade social um delírio, deixa as classes trabalhadora e média sem participação ativa e a rede de segurança sob ataque permanente.
O livro é fortemente influenciado pelos trabalhos de Christopher Lasch, cuja obra de 1994, The revolt of the elites (A rebelião das elites, na edição em português), antecipa muitos argumentos de Hayes, e de Robert Michels, um intelectual socialista do início do século 20. Em seu livro mais famoso, Political parties (Partidos políticos), Michels argumenta que organizações, até mesmo as de esquerda, inevitavelmente “escorregam” na oligarquia. A seguir uma versão editada da entrevista realizada durante um café da manhã.
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O senhor argumenta que a meritocracia inevitavelmente espalha-se por metástase na oligarquia, criando “elites que não podem ajudar e são disfuncionais e corruptas”. Qual o problema em deixar os mais espertos e mais dinâmicos dirigirem a sociedade?
Eu acho que as pessoas são resistentes à ideia porque a meritocracia é nosso ideal social, particularmente entre os bons liberais. Igualdade de oportunidades, mas não de resultados. Não avaliar pessoas por seus [aparentes] atributos, mas por seu talento próprio e dinamismo. E eu não digo isso zombeteiramente. É uma visão incrivelmente atraente. Mas a meritocracia contém as sementes de sua própria destruição. Ela permite a desigualdade. Como um ethos, ela não se preocupa com os resultados. Mas tais resultados têm efeitos reais. E estes arruínam o sistema para produzir mais desigualdade e restringir a igualdade de oportunidades.
A meritocracia leva à oligarquia. A high school que frequentei é uma parábola concreta nesse sentido. O Hunter College High School [uma escola pública de prestígio em Manhattan] é um lugar incrível que, de alguma maneira, apoia uma visão austera de meritocracia. Eles têm um teste de admissão e, literalmente, não importa se você é filha do prefeito Bloomberg, se não passar no teste, você não entra. Conversei com a presidente do Hunter e ela me disse: “Você não iria acreditar nos telefonemas que recebo, e de quem eu recebo, perguntando se tem algum jeito de fazer um acordo…’” Há algo inacreditável sobre isso, particularmente em uma época em que muito poucas instituições podem dizer com segurança que a filha do prefeito Bloomberg não seria (necessariamente) aceita.
Mas o que aconteceu com esse, em algum nível brutalmente equitativo, sistema? Essa igualdade está embutida em um sistema social cheio de desigualdade, que penetra no sistema e o coloniza. Nós tivemos o crescimento dessa tremenda indústria de provas e pré-testes em Nova York, junto com o crescimento maciço da desigualdade. Isso produziu um sistema no qual a escola está agora admitindo apenas entre três e cinco estudantes negros e latinos. Você acaba tendo um sistema onde quem você está realmente deixando entrar são crianças com acesso a testes preparatórios, crianças com acesso a recursos. Hunter pode ser um incrível motor de mobilidade, mas ao longo do tempo não poderá ajudar e falhará se não estiver incorporada em uma sociedade que tem um compromisso com a igualdade de condições para seus membros. Se nós vamos continuar embarcando nesse projeto meritocrático, devemos ter os olhos abertos para seus efeitos negativos.
Gostei da sua descrição de meritocracia como “uma nova hierarquia baseada na noção de que pessoas são profundamente desiguais em habilidades e dinamismo”. Quando posto dessa forma, parece uma ideia profundamente conservadora, ignorando realidades sociais de pobreza, racismo estrutural, falta de mobilidade social.
Essa ideia de “igualdade de oportunidades, não de resultados” é muito bipartidarista, quase sem sentido. Mas isso significa algo, tem uma política. Um dos resultados inevitáveis é que você vai pedir para o sistema educacional expiar os pecados de todo o resto da sociedade. É o único lugar onde nós podemos fazer intervenções. E isso é o que você está vendo na nossa política, esse é o lugar onde a energia está sendo gerada.
A política educacional é o lugar onde parece haver sobreposição bipartidária.
Não é por acaso que todos os caras de hedge fund estão financiando reformas nas escolas. Acho que eles realmente acreditam, são realmente idealistas nesse sentido. Eles odeiam sindicatos também. Mas eles veem uma sociedade manifestamente desigual e, nos termos da ideologia deles, o jeito de lidar com isso é melhorar a educação. Meu ponto é que toda a estrutura está errada.
O socialista Robert Michels teve uma forte influência em seu trabalho, mas a conclusão dele — “democracia leva à oligarquia e necessariamente contém um núcleo oligárquico” — implica limites intrínsecos ao radicalismo de qualquer projeto. Uma elite melhor é o máximo que podemos esperar?
Não há solução final, não há condição estática. A natureza de ter compromissos igualitários é reconhecer que o trabalho nunca chega ao fim… A inevitabilidade disso é um pouco como o ensaio de Albert Camus, “O Mito de Sísifo”. A inevitabilidade não significa que seja inválido, significa que a luta continua. Você continua lutando por igualdade porque a igualdade não é o estado natural dos seres humanos; eu acho que esse é de alguma maneira o insight realmente profundo. A desigualdade é impossível de ser evitada.
Michels sentia que tinha provado a impossibilidade do socialismo e da democracia. O senhor teme uma análise do tipo “fracasso quase total das instituições pilares da nossa sociedade”?
Sim, estou muito preocupado com isso. Acho que os dados são interessantes, você vê que as duas instituições que ganharam confiança pública são os militares e a polícia. A instituição mais confiável no país são os militares, a menos confiável é o Congresso. O autoritarismo se torna muito sedutor em tempos de uma elite desacreditada, mas é importante manter tudo isso em termos relativos. Não estamos em crise como a Grécia. Na Grécia, o partido [neonazista] Golden Dawn obteve 7% nas últimas eleições, permitindo a possibilidade de assentos no parlamento.
O senhor menciona a guinada da América Latina à esquerda como um exemplo entre as nações que consideraram seriamente a desigualdade e entre partidos que utilizaram políticas progressistas para reduzir isso. Que lições podem ser tiradas dos progressistas da América Latina? Que parte da experiência deles é replicável?
A lição importante é que isso é factível. O governo Lula [no Brasil] começou dando muito dinheiro para os pobres. Isto não é algo que esteja fora do nosso controle, há coisas que podemos fazer. Alguns tiveram mais sucesso que outros. Outra lição importante é que isso não precisa acontecer ao custo do crescimento. Na história básica da América Latina, 10 a 20 anos de presença do FMI impuseram austeridade e ajuste estrutural que resultaram em crise, pobreza e desigualdade terríveis, o que provocou revoltas pelo continente. Líderes de esquerda e centro-esquerda votaram em quem tinha mandatos e coalizões políticas nos quais a desigualdade era uma parte explícita de suas agendas e então implementaram políticas que eram igualitárias. Mais uma vez, há tremendas diferenças entre o Brasil e a Bolívia e, definitivamente, a Venezuela, que é um caso especial por causa de Hugo Chávez e da política venezuelana. Mas aquele drama em três atos é a história básica — crise financeira e enorme desigualdade, revoltas contra isso e governo eleito para diminuir a desigualdade.
Em Twilight of the elites, você faz a defesa do “romper a normalidade e o conforto da elite”. Por quais ações e organizações você está mais entusiasmado?
Vejo muita esperança nas mobilizações do tipo Occupy. Acho que são incrivelmente importantes, porque uma das coisas estranhas sobre o bizarro intervalo pós-crise em que estamos é que as elites, uma vez que produziram a crise, fizeram um bom trabalho ao, essencialmente, manter o barco flutuando. Gente como Ben Bernanke, Henry Paulson, Timothy Geithner, o presidente Barack Obama. Poderia realmente ter sido muito pior. Veja a Europa. Nós poderíamos ter 20% de desempregados. Eles poderiam ter feito besteira suficiente para chegar nisso. E se eles tivessem feito, provavelmente haveria mais movimentos de massa nas ruas.
O potencial para a crise é claro para todo mundo, mas a profundidade real e a intensidade da crise atual é sentida por pessoas que são pobres ou desempregadas. É horrível, miserável e penetrante. Mas 8% de desemprego não são 20% de desemprego. Há esse estranho, frustrado senso de infelicidade com o status quo e, ainda, um tipo de retorno ao estado normal. Quero que façamos as mudanças de que precisamos e redistribuamos o poder do mesmo modo, mas eu não desejo a crise. A crise é horrível e fere mais as pessoas mais pobres. Então o que realmente precisamos fazer é criar uma ruptura, porque senão haverá um rompimento exógeno, que significará outro choque, outra crise, ou essa ruptura será feita por meio de movimentos, protestos de rua e todas as maneiras criativas de dizer “não, isto não é sustentável”.
Eu realmente me preocupo porque, se as análises estão certas, a atual constituição da elite americana e do poder americano irão, inevitavelmente, nos levar em direção a outra crise. Então essa é nossa chance para, de certo modo, salvar as elites delas mesmas.
Tradução por Rachel Martins
* Texto originalmente publicado no site Jacobin
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