“Não há muita diferença nessa onda de fascismo. Ela é mundial. Não acontece apenas nos Estados Unidos. Ela está na Europa e também na América Latina, com essa ideia de reafirmação das nações, bandeiras e muros”. É o que diz a letrista, MC e cantora de rap franco-chilena, Ana Tijoux.
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'Não se deixa de ser imigrante', afirma a cantora
Anita é hoje um dos mais importantes nomes do rap latino-americano. Nascida no exílio na França em 1977 – quatro anos após o golpe de Estado contra Salvador Allende – Anita voltou para o Chile somente em 1993 e logo começou a se dedicar à música e ao hip-hop.
Com sua arte, ela critica o império, a violência e defende a igualdade de gênero, a justiça social e o orgulho indígena. Em entrevista ao site Latino Rebels, Ana Tijoux fala sobre nacionalismo, imigração, violência de gênero e identidade latino-americana:
Marlena Fitzpatrick: Existe uma escola de pensamento que defende que a descoberta da América, a chegada de Cristovão Colombo, trouxe um resultado positivo e que houve um “intercâmbio cultural”. Qual é a sua resposta para esse argumento?
Ana Tijoux: Não sei que intercâmbio cultural pode ser feito à base de sangue e genocídio. Na minha opinião, um intercâmbio cultural é uma aproximação de duas ou mais culturas; de interesse mútuo, em se reconhecer, em trocar música, comida, sabores e vivências. Aqui o que aconteceu foi saque e colonização. Não foi um intercâmbio cultural. Não houve interesse por parte dos espanhóis em conhecer a América Latina. Houve um interesse em saquear, exterminar e impor formas religiosas.
Reprodução/ Facebook
Cantora usa diversas influências musicais em seus novos discos
Marlena Fitzpatrick: Depois desse tempo todo, ainda vivemos oprimidos com a retórica antilatina e anti-imigrante imposta pelos Estados Unidos. Em 2012, você se solidarizou com nossa comunidade, divulgando o vídeo “Shock”, defendendo os direitos de imigrantes no Arizona. Porém, os políticos ainda continuam apoiando a ideia de construir um muro dividindo o México do Texas. Qual é a sua reação em relação a esse assunto?
Ana Tijoux: Não há muita diferença nessa onda de fascismo. Ela é mundial. Não acontece apenas nos Estados Unidos. Ela está na Europa e também na América Latina com essa ideia de reafirmação das nações com bandeiras e muros. Temos de voltar atrás e nos perguntarmos: o que são os Estados Unidos? O país nasce a partir de uma multiplicação de imigrantes e, mais além, nasce também de um genocídio dos indígenas que viviam lá, antes da chegada dos europeus e de outras regiões do mundo em busca de ouro, terras e, inclusive, de trabalho.
Clipe de Shock gravado em solidariedade aos imigrantes no Arizona:
É preciso se indagar: o que é ser norte-americano? É engraçado porque a maioria das pessoas implora ou louva o nacionalismo, impulsionado por gente muito ignorante. Porque justamente eles se esquecem do legado histórico, de onde vêm. Devem reconhecer que eles são imigrantes. Porque não é que uma pessoa é imigrante e deixou de sê-lo. Você é um imigrante permanentemente. É a colonização moderna – o Cristóvão Colombo moderno.
Antes vinham barcos e exterminavam. Agora eles colocam muros e prendem pessoas sem documentos, que, no entanto, não são delinquentes.
Marlena Fitzpatrick: Ou seja, a criminalização do ser humano por alguma coisa tão superficial como a cor da nossa pele, nossos sotaques, como nosso DNA, não é mesmo?
Ana Tijoux: Exato, eu chamo isso de violência moderna. Finalmente é uma escravidão moderna. Dizem que é democrática, que é amável, que é limpa, porém não deixa de ser uma violência moderna.
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Marlena Fitzpatrick: Que autores ou educadores você recomenda para provocar essa mudança de pensamento?
Ana Tijoux: Obviamente Eduardo Galeano, que deixou um legado histórico sobre esse assunto, e ele é um especialista. Jean-François Bayart também é outro que trata do tema da colonização, embora trate da África, porém á história é muito semelhante.
Marlena Fitzpatrick: Na sua música, você colocou uma luz sobre os indígenas e sobre as mulheres. Como podemos nos solidarizar com o que continua acontecendo na América Latina, especialmente com os feminicídios?
Ana Tijoux: Estamos em luzes diferentes. Você é jornalista, eu sou música. Alguém que for ler poderá ser uma professora de matemática no colégio, e outro leitor, jornaleiro. De todos os nossos ofícios, a partir de nossas casas, de todas as nossas famílias, temos de fazer uma tarefa para nos repensarmos. Quando digo isto, não acredito que corresponda apenas ao comunicador. Por exemplo, eu que sou mãe, preciso mostrar a meu filho as coisas – fazer a tarefa que é um trabalho mais minucioso, porém buscar alternativa de quem somos na América Latina. Dessa forma, podemos fazer um bom exercício. Parece pequeno, mas não é. Cada um deixa um legado na memória das crianças. Como queremos criar nossos filhos homens? Como queremos repensar o companheirismo entre as mulheres? Isso não é somente para as artes e para a academia. Isto se amplia em cada espaço, a solidariedade, voltar a resgatar a identidade e a humanidade. Devemos recuperar o ser humano.
Na música “Somos Sur”, Tijoux canta para os invisíveis e crava: Fora yanquis da América Latina, franceses ingleses e holandeses. Eu te quero livre, Palestina
Marlena Fitzpatrick: E a última pergunta que eu faço. Qual é a sua definição de um latino rebelde?
Ana Tijoux: Eu acredito que o latino é rebelde por natureza. Não me refiro ao latino que se tatua “latino”. Eu me refiro ao latino que entende o que é ser latino-americano. Ou seja, tirando o cartão postal que fizeram do latino-americano, por exemplo, a mulher latina exótica e gostosa. Mas sobre o que mencionamos anteriormente, o latino-americano que busca a recuperação da memória e história: essa descolonização permanente que temos de realizar com as pessoas próximas de nós.
Então aí sim nos apropriamos da palavra rebelde. O que é ser rebelde? Para mim, a palavra perde contexto e o sentido porque ela é polemizada. A palavra rebelde tem a ver quando a gente se questiona, quando ela incomoda diante de alguma coisa que não é correta nem é justa. O latino rebelde, o casamento das duas palavras é a do latino-americano que busca sua identidade diante da injustiça que for cometida pelo mundo, sente que armam para cima dele ou dela. Sabe que no fundo “o seu problema é o meu problema”. O latino rebelde sente-se próximo dos problemas da África, da Ásia e dos problemas do mundo.
Tradução: Mari-Jô Zilveti
*Texto publicado originalmente no site Latino Rebels