Imagem de microscópio do vírus H5N1 (em tom amarelo): perigosas experiências com mutação genética
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Desde que a escritora Mary Shelley (1797–1851) publicou sua obra-prima, Frankenstein, os espíritos aldeões e religiosos sempre ficam inquietos com o que se passa por trás das muralhas dos castelos da ciência. Alterar a gênese da vida, pensam eles, além de ser uma violação de prerrogativa divina, pode levar a resultados desastrosos. E foi isso que duas equipes independentes de cientistas anunciaram no início do ano. Eles criaram novas formas de vidas virais que poderiam causar pandemias sem precedentes na história.
Mas desta vez o alarido ficou praticamente restrito à comunidade científica, talvez pela natureza extremamente técnica do ocorrido, meio fora do alcance dos leigos. O que os cientistas fizeram foi dar aos vírus de origem em aves a capacidade de infectar humanos pelo ar. Até agora esses vírus só podiam afetar os humanos pelo contato direto ou manuseio de galinhas e outras aves infectadas, uma forma muito limitada de propagação e relativamente fácil de controlar.
Apesar dessas barreiras naturais, após o contágio a letalidade do vírus é extremamente alta. Na mais recente epidemia, em 1997, a partir de Hong Kong, a gripe aviária, batizada com a sigla H5N1, chegou a matar 60% dos infectados, contra apenas 1% dos atingidos pelas gripes sazonais comuns. O grande medo da Organização Mundial da Saúde é que alguma mutação associe a alta letalidade à capacidade de ser transmitida por espirros entre humanos. Em 2009, uma nova cepa do vírus da gripe não aviária, transmissível entre humanos, chegou a contaminar 16% da população japonesa e causou a morte de 18 mil pessoas globalmente.
Se fosse a H5N1, teria sido uma catástrofe. “A questão agora não é se o vírus H5N1 pode conseguir ser transmitido por aerossóis (espirros e fluidos), mas sim quando ele vai aparecer espontaneamente na natureza”, diz o epidemiologista Daniel Perez, do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade de Maryland, nos EUA, em opinião publicada na revista Science.
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Risco no ar
Pois foi justamente isso o que fizeram duas equipes de cientistas, antecipando-se ao aparecimento natural dos vírus aviários com capacidade de transmissão pelo ar entre humanos. As experiências, financiadas pelo Instituto Nacional de Saúde dos EUA, foram feitas no Centro Médico Erasmus, em Roterdã, na Holanda, e na Universidade de Wisconsin, nos EUA. O resultado mais perigoso foi o produzido na Holanda pelo virologista Ron Fouchier. O H5N1 modificado geneticamente infectou fortemente em laboratório os furões, bichos que têm um sistema respiratório muito parecido com o dos humanos. Depois de dez gerações, o vírus modificado infectou todos os furões que estavam perto do bicho doente, por transmissão aérea.
Imediatamente a Comissão de Biossegurança da Academia Nacional de Ciência dos EUA pediu às revistas Science e Nature, que iriam publicar a pesquisa, a suspensão e a publicação de uma versão reduzida, apenas com as conclusões e sem a descrição dos procedimentos empregados. As revistas e os pesquisadores aceitaram a suspensão da publicação por 60 dias. As razões arroladas foram o risco potencial do uso do novo vírus como arma biológica por governos hostis, terroristas ou algum cientista “mentalmente desequilibrado”.
A decisão repercutiu fortemente na comunidade científica, que ficou radicalmente dividida entre os que são a favor da censura e os que a consideram negativa e capaz de abrir um perigoso precedente de interferência do Estado na atividade científica.
Natureza bioterrorista
Na verdade, argumenta Ron Fouchier, principal autor do estudo holandês, a censura é inócua e prejudicial. Ele argumenta que o principal segredo era a confirmação de que o feito, obter H5N1 transmissível, era possível. Algo como aconteceu com a polêmica sobre os segredos da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial. O principal segredo era que ela funcionava, o que permitiu aos soviéticos concentrar os esforços dos mais competentes cientistas atômicos para reproduzir o feito americano.
“Os especialistas em biossegurança argumentam que os métodos que usamos representam uma receita para armas biológicas. No entanto, é importante enfatizar que não desenvolvemos um método novo, e os usados estão amplamente difundidos e livremente acessáveis na literatura científica. A lógica da experiência é suficientemente óbvia para que outros virologistas repliquem nossa experiência, mesmo que nosso método não seja publicado”, defende-se Ron Fouchier.
Além disso, emenda: “Se compararmos a presente ex-periência a uma ameaça bioterrorista, podemos argumentar que a natureza em si é que é a principal bioterrorista. Vírus emergindo de reservatórios naturais têm matado milhões de pessoas ao redor do mundo, como no caso da Aids, da Sars, do vírus do Nilo Ocidental, do ebola e outros. Especialistas em doenças infecciosas têm a obrigação moral, no interesse da saúde pública, de publicar os resultados de maneira responsável.”
A posição é respeitável, principalmente porque todas as cinco mutações necessárias para tornar mais infeccioso o H5N1 já existem naturalmente, de forma isolada, em diferentes vírus na natureza. E todas elas já foram descritas em trabalhos publicados e de livre acesso. Como é comum vírus trocarem material genético, o H5N1, portanto, é uma bomba de tempo esperando para explodir na natureza, sem interferência dos cientistas.
Saber como vírus aviários, atualmente inócuos, podem cruzar as atuais barreiras é, evidentemente, fundamental para evitar futuras pandemias. Com isso, a obtenção de vacinas pode ser radicalmente abreviada. Normalmente, o período entre a detecção de uma nova cepa de vírus de gripe e a produção de vacinas dura no mínimo duas semanas. A fabricação em larga escala, a distribuição e a logística de vacinação, mais algumas semanas. A tecnologia e os métodos usados atualmente não mudaram muito nos últimos 50 anos. Estar à frente das mutações adaptativas do vírus vai ser no futuro imediato o maior salto da história da humanidade na prevenção de mortes por essa infecção.
* Texto publicado originalmente na revista Retrato do Brasil
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