The Father, The Son and The Holy Ghost (O Pai, O Filho e O Fantasma Santo), tríptico do artista indiano UBIK
Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #05: Mídia
Leia as outras matérias da edição nº 5 da Revista Samuel
Israel versus Irã. A chamada de capa numa edição recente da New York Times Magazine tinha as palavras escritas, ameaçadoramente, reproduzindo cinzas, das quais ainda saem fumaça e labaredas. Na matéria, Ronen Bergman, um analista militar do jornal israelense Yedioth Ahronot, afirma que um ataque de Israel às instalações nucleares iranianas em 2012 é inevitável, apesar de admitir que, mesmo bem-sucedida, uma operação como essa pode apenas atrasar o desenvolvimento de uma bomba iraniana por alguns meses ou, no máximo, anos, e expor Israel a um contra-ataque devastador com foguetes iranianos, alguns dos quais com capacidade para atingir Tel Aviv.
Uma vez mais, estamos sendo apresentados à guerra como um fato consumado. Mas tal relato funciona como uma profecia autorrealizável?
Quem não se lembra de Judith Miller, a repórter do New York Times cujas matérias diziam, falsamente, que o Iraque tinha desenvolvido armas de destruição em massa e foram usadas pela administração Bush como pretexto para invadir aquele país em 2003 e derrubar o regime de Saddam Hussein? O fracasso da mídia noticiosa em investigar a verdade daquelas alegações é frequentemente citado como um fator chave para levar nossa nação a uma guerra dúbia, que provocou centenas de milhares de baixas iraquianas e americanas e custou mais em dólares (mesmo após correção da inflação) do que a Segunda Guerra Mundial.
A mídia noticiosa professa neutralidade em sua cobertura de guerra. Contudo, ao repetir rotineiramente argumentos e declarações governamentais como se fossem fatos, jornalistas como Miller fazem de si mesmos cúmplices dos conflitos que eles reportam.
Ao mesmo tempo em que repórteres do Times e de outras publicações líderes de mercado faziam lobby pesado para uma invasão americana, o apresentador da rede de TV paga MSNBC, Phil Donahue, teve seu programa — um dos líderes de audiência — cancelado devido à sua visão progressivamente antibélica. Hoje em dia, a regra na mídia nacional norte-americana é, aparentemente, “somente quem apoia a guerra tem espaço”.
Empresas mainstream como The New York Times estão novamente batendo os tambores de guerra, alegando que o Irã está desenvolvendo armas nucleares, apesar de Teerã alegar o contrário. E, de fato, a avaliação do diretor do Serviço Nacional de Inteligência, James Clapper, em depoimento ao Comitê de Serviços Armados do Senado em março, foi que o serviço de inteligência tem um “alto nível de confiança de que o Irã não tomou até o momento uma decisão de recomeçar seu programa de armas nucleares”.
Apoie a imprensa independente e alternativa. Assine a Revista Samuel.
The Father, The Son and The Holy Ghost (O Pai, O Filho e O Fantasma Santo), tríptico do artista indiano UBIK
Guerra midiática
O ponto aqui não é tomar partido de um lado ou de outro do controverso debate sobre as intenções nucleares do Irã. É apenas indicar que, para muitos na mídia noticiosa, a questão já está colocada. Pode essa certeza — quando não há nenhuma, de fato — mais uma vez nos levar em direção à guerra?
Caso positivo, seria apenas a mais recente em uma longa série de provocações históricas. Durante os anos 1890, jornalistas fizeram sensacionalismo e às vezes até fabricaram incidentes em uma série de artigos publicados nos jornais do grupo Hearst que ajudaram a levar os Estados Unidos à guerra contra a Espanha, em Cuba. A Guerra Hispano-Americana é chamada ocasionalmente como a primeira “guerra midiática”. Não foi a última. Desde então, a imprensa desempenhou rotineiramente um papel chave em incitar medos e paixões e preparar o público para o conflito armado.
Ao simplificar narrativas complexas, o mau jornalismo induz a soluções simplistas. E nada é mais simplista do que a guerra, a suposição de que toda doença social pode ser curada pela aplicação de força letal. Se você quer encorajar a democracia, assegurar o fornecimento de petróleo para a América, prevenir a proliferação nuclear, derrotar o terrorismo ou o que quer que seja, não precisa combater realidades sociais e políticas espinhosas. Apenas chame os marines!
A guerra em sua raiz é um fracasso da imaginação, um fracasso em pensar criativamente alternativas para o conflito violento. Esse é o conteúdo do “jornalismo da paz”, um campo de estudo e prática que emergiu nos anos 1970 do trabalho do sociólogo norueguês Johan Galtung.
Galtung, vencedor do Prêmio Nobel Alternativo em 1987, acredita que o viés institucional da mídia ao reportar “fontes oficiais” militares e governamentais significa que geralmente só ouvimos aqueles com interesse no uso da força, raramente pessoas comuns que pagarão pelas decisões com sangue. Os argumentos para a ação militar são embasados em termos geopolíticos abstratos e apelos vagos ao “interesse nacional” em vez de focarem nos terríveis custos humanos da violência estatal organizada.
O sociólogo também argumenta que o governo e a mídia compartilham um gosto pela guerra porque ela é boa para seus negócios — ainda que de maneiras totalmente diferentes. O negócio do governo, em seu método imperial, é flexionar seus músculos e projetar seu poder em nações mais fracas; o negócio do jornalismo, por outro lado, é aumentar sua audiência. Que maneira melhor de alcançar uma audiência maior do que ajudar a satisfazer a sede do público por sangue?
The Father, The Son and The Holy Ghost (O Pai, O Filho e O Fantasma Santo), tríptico do artista indiano UBIK
Colocando mais lenha na fogueira, a mídia noticiosa habitualmente enquadra sua reportagem de guerra em termos de “os bons” contra “os maus”. Os bons são os Estados Unidos e seus aliados, e os maus são os outros. Mas é sempre tão simples assim? Quando eu era pequeno, meu pai recusava-se a escolher um lado nas batalhas entre minha irmã e eu, e dizia: “Quando um não quer, dois não brigam”. Ele queria dizer que a culpa por nossas guerras adolescentes era de nós dois. Não há inocentes na guerra.
Essa sabedoria de senso comum foi perdida pela imprensa, que invariavelmente adota o ponto de vista americano. Repórteres “embarcados” nas unidades das Forças Armadas contam suas histórias através dos olhos de um soldado, nunca da perspectiva de um inimigo combatente e menos ainda dos civis que são pegos no fogo cruzado.
O repórter australiano Jake Lynch escreveu: “Jornalismo da paz é quando editores e repórteres fazem escolhas — sobre o que reportar e como reportar — que criam oportunidades para a sociedade considerar e valorizar respostas não violentas a um conflito”.
Repórteres não fazem guerras. Mas também não são os observadores neutros que fingem ser. Ao aderir às convenções não examinadas da reportagem de guerra, jornalistas atiçam as chamas da violência, dando voz à propaganda governamental, demonizando o inimigo e apresentando histórias simplistas sobre a natureza do conflito e suas soluções.
Nas palavras do colunista Bob Koehler, jornalista da paz à sua maneira, “resposta não violenta a conflito é, simplesmente, o fundamento da civilização, não é? Conflitos — no meio e entre pessoas, entre espécies, com nosso planeta e universo — são inevitáveis. Respostas violentas depreciam o conflito, estilhaçam a complexidade, perpetuam o problema, põem inocentes em perigo e frequentemente explodem na nossa cara. Mas a violência é uma indústria, encoberta em mitologia e consenso. Nós estamos presos a isso, aparentemente. Acredito que trabalhar para desfazer a mitologia da violência é o ato mais responsável que um redator pode perpetrar.”
Tradução por Rachel Martins
* Texto publicado originalmente no site Truthout
NULL
NULL