Os protestos que agora ecoam no Chipre contra as medidas recessivas de austeridade fiscal que estão a ser aplicadas no país são muito familiares ao economista e ativista político português Francisco Louçã. Ele acompanha de perto, principalmente em seu país e na Grécia, como a crise das dívidas soberanas afeta a economia, o emprego e a auto-estima dos trabalhadores europeus.
Fundador e líder até o fim do ano passado do Bloco de Esquerda, quarta maior força política do Parlamento português, após anos de militância iniciados na luta contra a ditadura salazarista, Louçã é enfático ao indicar a União Europeia e a Troika (o grupo de credores para renegociar as dívidas, formado por Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu) como responsáveis pelo quadro de caos econômico e político na zona euro.
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Também desempenhou um papel importante na mobilização da população nos grandes protestos, pedindo a demissão do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, mas reconhece que as condições políticas para se estabelecer um verdadeiro governo de esquerda em Portugal não estão tão bem maturadas quanto na Grécia, onde acompanhou de perto a trajetória do Syriza (Coalizão da Esquerda Radical) para se tornar uma alternativa viável ao discurso liberal.
Louçã esteve na semana passada no Brasil onde, entre outros eventos, participou da palestra “A crise econômica europeia e as perspectivas para a esquerda na luta anticapitalista” na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da Universidade de São Paulo. Ao lado do deputado federal Ivan Valente e do estadual Carlos Giannazi – ambos do PSOL-SP (Partido Socialismo e Liberdade) – fez uma avaliação da crise e respondeu às perguntas dos estudantes. Questionado sobre o papel das esquerdas na crise, teve de defender em diversas vezes o Syriza, por este ter optado em rejeitar o pagamento da dívida e, ao mesmo tempo, tentar permanecer na zona do euro e na União Europeia.
Na ocasião, atendeu a reportagem de Opera Mundi, com quem voltou a conversar uma semana depois, já em Portugal, por telefone. Abaixo, segue o resumo dessas duas entrevistas.
Opera Mundi: Há possibilidade da taxação sobre depósitos bancários aplicada no Chipre também afete Portugal, em uma espécie de efeito dominó?
Francisco Louçã: Há certamente um efeito dominó que resulta da constatação de que os tratados europeus não são respeitados pela direção da UE e de que as regras de proteção dos depósitos e poupanças podem ser violadas. Isso cria uma enorme crise de confiança, que vai se traduzir em um aumento de juros, em pressões especulativas e, sobretudo, afeta a credibilidade das instituições europeias.
A União Europeia, o presidente do Eurogrupo [Jeroen Dijsselbloem] e o BCE saem dessa semana de crise no Chipre demonstrando enorme incompetência, falta de preparo técnico e viés antidemocrático. O centro da crise da Europa não está em Nicósia, mas em Berlim.
Medidas como essa têm um efeito dominó sobre todas as economias. A possibilidade de aplicação de uma mesma taxa desse tipo em outras economias em curto prazo é pequena. Se bem que o presidente do Eurogrupo, em entrevista ao Financial Times, sugeriu que o caso do Chipre seria o modelo de solução.
Repare: a UE financiou na Espanha um “resgate” do sistema bancário de 60 bilhões de euros, sem impor uma taxa aos depositantes, algo que nunca conseguiria fazer por lá. O fez no Chipre porque está é uma economia muito menor e avaliou que a pressão popular seria pequena. Creio, no entanto, que o sinal que deu para a UE e aos povos europeus é de uma grande desorientação e falta de preparação para resposder à crise.
OM: É possível para os países alvos das medidas de austeridade uma alternativa que não implique na saída da zona do euro ou da União Europeia?
FL: A alternativa que existe aos povos europeus é um combate frontal à Troika para derrotar essa política de austeridade e recessão. O centro dessa resposta é a anulação da dívida, acompanhada por um combate para recuperar salários, pensões, o sistema nacional de saúde, a segurança social, a previdência, etc. Em torno disso é preciso organizar uma força popular, alianças políticas, maiorias que possam representar um governo de esquerda.
A saída do euro só se coloca em caso de solução limite. É uma solução muito difícil, porque implica em uma desvalorização de 40% a 50%, com enorme efeito sobre os salários. Os bens importados vão subir em grande escala, enquanto alimentos, combustíveis e muitos outros vão subir muito em relação ao salário. Qualquer política de esquerda tem de ter essa consciência clara.
Exceto, no entanto, se não houver nenhuma outra alternativa. Se a crise europeia impedir qualquer solução europeia, então o país chantageado pela dívida fica sem qualquer alternativa a não ser rechaçar os credores e um governo poderia ser obrigado ou forçado a sair do euro em último recurso. Todas essas hipóteses são possíveis, mas as únicas que me interessam no momento são as que defendem o salário, o emprego e os direitos dos trabalhadores contra a austeridade.
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OM: Há em Portugal uma união entre os partidos de esquerda?
FL: A esquerda não tem um projeto político comum, mas uma resposta partilhada contra a austeridade, em que está solidamente unida. Ela defende os serviços públicos. Opõe-se à política do desemprego e às propostas que a Troika faz ao mundo do trabalho. E os principais partidos de esquerda partilham a ideia de que é preciso um governo de esquerda contra a Troika.
O PS (Partido Socialista, centro-esquerda) não concorda com esse ponto de vista, mas os outros partidos à esquerda sim. E essa proposta encontra acolhida positiva de pessoas dentro do PS e de muita gente que não tem ligação com nenhum partido, mas que compreende que é preciso uma alternativa sólida que não seja a repetição da mesma austeridade com o novo governo.
OM: Há real possibilidade de troca de governo no país? Quais as consequências de uma eventual queda do governo Passos Coelho?
FL: O governo de Passos Coelho tem maioria absoluta no Parlamento, além do apoio do presidente Cavaco Silva. Já houve ocasião em que o presidente convocou eleições gerais contra um governo de maioria absoluta. Não será certamente o caso do atual.
No entanto, apesar de o governo ter essa força, ele está muito dividido e enfraquecido por grandes contradições, isolamento popular, insatisfação social e, sobretudo, por sua incapacidade de decidir sobre uma austeridade que cavalga sistematicamente para soluções cada vez piores.
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O fundador do Bloco de Esquerda e ex-deputado Francisco Louçã responde perguntas de alunos da FFLCH em São Paulo
OM: A esquerda tem conseguido aproveitar a crise para cultivar uma cultura de resistência, contestação e busca de uma alternativa socialista na população? Quais os setores que mais têm se mostrado abertos a uma mudança? E os jovens, seriamente afetados pelo desemprego, como se posicionam?
FL: Houve uma grande manifestação no dia 2 de março [cerca 1,5 milhão de pessoas saíram às ruas em 40 cidades em um país cuja população beira 10,7 milhões], uma parte muito importante da população, que inclui certamente muitos jovens, empregados, trabalhadores e pensionistas. O feito foi tão generalizado na sociedade que envolve muitos setores diferentes.
A esquerda portuguesa faz parte dessa mobilização, mas ainda não é protagonista política. O Syriza na Grécia chegou a 27% e não conseguiu ganhar, embora tivesse chegado muito perto do Nova Democracia, o partido tradicional da direita. É preciso muito mais força, capacidade de ação política, representação, respostas diretas aos trabalhadores e credibilidade política imediata do que a esquerda representa.
Esse é um grande combate de curto prazo, que tem de ser travado já, sem esperar, sem hesitações, e mostrando à população que uma grande alternativa e ruptura política passa por esse confronto, para vencer a Troika, romper com as políticas de austeridade e recuperar uma política socialista de esquerda.
OM: A crise provocou uma série de movimentos que, mesmo completamente diferentes entre si, rejeitam os partidos tradicionais. Entre eles estão os “Indignados”, na Espanha, e o Movimento 5 Estrelas, na Itália. Rejeitar a ação política é uma atitude correta?
FL: Quanto aos indignados, creio que falharam em não ensejar a ação política eleitoral. Porém, ocupar as praças de Madri é uma ação política muito útil e um ensaio muito forte. Já o M5S está no centro da ação política. São muito diferentes um do outro: os Indignados são um movimento para abranger toda a juventude, a todos. O M5S é um movimento político de conteúdo interno muito díspar: defendem temas como não pagar a dívida ao mesmo tempo que querem expulsar os imigrantes. Completamente contraditórias.
O pior erro que qualquer projeto emancipatório pode fazer é ignorar a ação política. Se ignorá-la, não vai triunfar. E a esquerda tem de estar no centro da ação política, que permite a evolução democrática, a consciência, forma capacidade de luta.
Agência Efe (02/03)
Governo Passos Cooelho já enfrentou mais de 200 manifestações contrárias à sua opção política pela austeridade; portugueses agora pedem sua demissão
OM: Por que, até o momento, só o Syriza obteve, entre todas as correntes europeias de esquerda (excluindo a centro-esquerda), resultados eleitorais competitivos?
FL: Acho que o Syriza se equipou com uma ação estratégica absolutamente exemplar em condições muito especiais. É verdade: diferente de Espanha, Portugal ou Itália. Tudo indica que isso ocorreu porque o programa na Troika foi aplicado na Grécia com o apoio da centro-esquerda, o Pasok (Partido Socialista Pan-helênico), que diante da primeira dificuldade se aliou à direita e à extrema-direita. E, depois das eleições, continuou aliado a eles.
A configuração do sistema político grego fez com que o Syriza fosse a única alternativa para uma proposta unitária de um governo de esquerda. Não havia outra alternativa.
Em Portugal é diferente. O Partido Socialista, enquanto governo, só fazia crescer seu compromisso com a política liberal e com a austeridade. Porém, quando a social-democracia [o PS] está fora de o governo, participa de um jogo que ocorre há 30, 50 anos na Europa, que é perfeitíssimo, muito inteligente: a alternância de poder com a direita, um se colocando como alternativa ao outro partido, mesmo que as políticas de direita e centro-esquerda sejam muito parecidas. Esse instrumento político é muito hábil.
Nesse contexto, o Syriza fez o que nenhum partido de esquerda jamais havia conseguido fazer na Europa: apresentar e ser a única alternativa para a vida imediata da população. Se a população grega queria rejeitar a austeridade, recuperar o salário, defender o emprego e os bens públicos, tinha o Syriza. Não venceu, mas se bateu como tinha de se bater pela classe trabalhadora.
Porque a luta é duríssima, e o mais importante aspecto dela é saber proteger seu povo, o que implica em fazer escolhas. O Syriza fez as escolhas que deveriam ser feitas. Tem de estar do lado do trabalhador pelo seu salário, contra a dívida e a privatização. E assumir a responsabilidade de enfrentar um governo que aplica essas medidas é arriscadíssimo. No primeiro dia em que esse governo rejeitasse o memorando de austeridade, teria a Alemanha contra ele. Eu participei das ações do Syriza sobre como responder e formar esse programa. Mas só a experiência que vai dizer [como governar], como sempre na vida.
OM: Essa resistência às esquerdas também não poderiam ser explicadas por uma “cultura do medo”, como ocorreu no Brasil durante os anos 1990 até uns dez anos? Ela também existe na Europa de hoje?
FL: Certamente que sim, a chantagem do medo é fortíssima: o medo de perder salários, de não haver financiamento ao Estado [caso se opte por um calote à dívida], colapso dos serviços públicos.
Creio que é por isso que a mobilização social é tão importante. Dar e ganhar confiança, saber que se pode acreditar.