“Na Turquia, não há liberdade de expressão. Você não é livre para falar o que realmente pensa”, define o mais famoso jogador de futebol da Turquia. Não há nenhum outro que tenha marcado mais gols pela seleção turca de futebol do que Hakan Sukur, com 51 gols. Ele ainda foi o autor do tento mais rápido em uma partida de Copa do Mundo, aos 11 segundos de jogo contra a Coreia do Sul em 2002, o que lhe rendeu o título de “O Rei” entre os turcos.
Aos 43 anos, entretanto, o maior goleador da Turquia está hoje fora dos gramados e se diz alvo de perseguição do presidente Recep Tayyip Erdogan. Convencido pelo próprio Erdogan, ainda enquanto era primeiro-ministro, a lançar sua candidatura a deputado no Congresso Nacional pelo AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento, na sigla em turco), Hakan Sukur se diz hoje frustrado com o jogo político.
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Fabíola Ortiz/Opera Mundi
Aclamado como o melhor jogador do futebol turco, Hakan Sukur deixou os gramados e entrou na política e agora é opositor a Erdogan
Foram 21 anos jogando no Galatasaray SK, um dos mais famosos times de futebol na Turquia. Além dele, passou também por equipes como o Sakaryaspor e o Bursaspor. Em sua carreira internacional jogou ao lado de Taffarel e Ronaldo e passou por times italianos, como o Torino (1995-96), Inter de Milão (2000-2002) e o Parma (2002-2003), além de uma breve passagem pelo inglês Blackburn (2003).
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Em 2011 — a exemplo do que fizera o craque brasileiro Romário um ano antes —, Sukur trocou os campos por uma cadeira no Parlamento turco e optou por abrir mão do salário milionário de um jogador de futebol, algo entorno de € 1,5 milhão de euros para passar a ganhar 9 mil liras turcas (cerca de R$ 10 mil) como deputado na Assembleia Nacional em Ancara.
“Ou você se alia ao governo, ou você se cala”
Em seu confortável apartamento localizado em Florya, um bairro de alto poder aquisitivo, Sukur conversou com Opera Mundi durante uma noite fria de Istambul. Sua esposa também muçulmana e seus três filhos fizeram as honras da casa até que Sukur decidisse contar sua história. Falando em turco, o ex-boleiro deu relatos valiosos de sua escolha ao entrar para o mundo da política, além de tecer duras críticas ao atual governo, classificado por ele de “antidemocrático”.
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Após ser eleito como deputado em 2011, ano em que o AKP — no poder desde 2002 — obteve cerca de 50% dos votos, o então parlamentar optou ser independente e sair do partido liderado por Erdogan. Sua escolha acarretou duras consequências e foi acompanhada pela perda de prestígio no esporte e, até mesmo, perseguição política.
“Ou você se alia ao governo, ou você se cala”, afirma Sukur. Nesse cenário, demitir-se do partido AKP é aceitar ficar isolado, admitiu. “Eu e minha família estamos pagando por isso e vivemos um período difícil. Já fui chamado de traidor da pátria. Aqui, quando a pessoa pensa diferente é vista como uma ameaça ou uma força paralela”, criticou.
Quando iniciou seu mandato de deputado, o mais famoso jogador de futebol tinha esperanças de formular políticas públicas no esporte e defender a educação. “Foi um convite que partiu do próprio Erdoğan. Naquele cenário, ele ainda tinha respeito pelas pessoas. Não pensei em recusar, pois antes já haviam me oferecido disputar as eleições municipais como prefeito de Istambul e eu recusei. Mas em 2011, ele fez pressão dizendo que haveria muita coisa que eu poderia fazer pelo esporte”, lembrou.
Mudanças antidemocráticas no país
Apesar de novato no mundo político, Sukur arriscou. “No começo, eu não tinha experiência no Parlamento e esperei para entender como poderia me expressar. Mas chegou um momento em que ocorreram mudanças antidemocráticas no país”, afirmou.
O deputado se referiu especialmente à determinação do governo de fechar escolas e unidades de ensino que estivessem ligadas ao movimento liderado pelo clérigo muçulmano Fethullah Gulen, de 73 anos, que vive no exílio na Pensilvânia, nos Estados Unidos desde 1999.
O movimento pró-democracia conhecido como Hizmet (serviço, em turco) ou simplesmente movimento Gulen, foi fundado na década de 1960 e preza por: diálogo interreligioso, direitos humanos, não-violência, antirradicalismo e educação igualitária. Gulen é hoje visto como o rival número um do presidente Erdogan.
Na ocasião, Sukur condenou o regime por ter mandado fechar e boicotar as escolas ligadas ao movimento Gulen. “Fiz oposição a essa medida, era um processo antidemocrático. Eu não apoiava as medidas que o AKP tomava, especialmente em relação à educação. Chegou um ponto em que decidi deixar o partido”, relatou.
No esporte, o deputado tão pouco conseguiu realizar o que pretendia. “Queria usar o esporte para unir as pessoas, mas quando entrei na política percebi que os políticos na Turquia não pensam desse jeito”. O governo, segundo ele, exerce forte influência sobre a federação de futebol.
“Tudo ficou sob controle do presidente. Muitos clubes dependem de ajuda financeira do governo”, disse. Especialmente os 18 clubes de primeira divisão, que estão fortemente atrelados ao governo, assim como os estádios que são estatizados.
“São poucos os que resistem”
“A cada ano, a força de Erdogan tem se expressado ainda mais. Eu tinha esperanças quando entrei na política, mas infelizmente percebi que tentaram estatizar tudo e todos. Querem controlar a mídia, o esporte e os movimentos sociais. Querem acabar com todos que fazem oposição. Quem se recusar a cooperar com o governo pode ser preso. São poucos os que conseguem resistir”, lamenta.
Hoje, o maior goleador de todos os tempos na Turquia se sente rejeitado pelo próprio governo. Como deputado independente e sem partido, sua vida não ficou mais fácil. Dos 550 assentos no Parlamento turco, o conservador AKP tem uma cômoda posição de 313 parlamentares. Além de Sukur, existem outros oito deputados independentes. Seu mandato termina em julho de 2015, mas o jogador não sabe ainda se conseguirá retornar ao futebol, onde fizera sua carreira.
“Imagine um país em que tudo está nas mãos do governante. Depois que saí do partido não consigo mais estabelecer contatos com meus colegas e até parceiros de negócios, pois estão com medo. O partido se aproveitou da minha imagem e, quando renunciei, eles me disseram: ‘fomos nós quem criamos você’.”, desabafa.
“Chegamos ao ponto que são os políticos que decidem a sua vida. Isso não normal. Esperávamos que as coisas fossem melhorar, entrei no partido para ajudar o país, mas ele (o presidente) está se tornando um ditador. Estamos numa época com muitas dificuldades. Perdemos valores como democracia. Infelizmente perdemos a habilidade de sonhar”, conclui Hakan Sukur.