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As Nações Unidas, por meio do Comitê sobre Desaparecimentos Forçados, lembram à Espanha que o país deve investigar todos os desaparecimentos forçados de forma exaustiva e imparcial, não importando o tempo transcorrido dos crimes, não importando que não tenha sido apresentada uma demanda formal. Tampouco servem para as Nações Unidas os argumentos do governo espanhol para justificar sua falta de ação em relação aos crimes ocorridos no passado: que estes crimes já prescreveram, que os responsáveis estão presumidamente mortos, ou que existe uma lei de anistia que impede qualquer tipo de investigação.
Estará a Espanha à altura das circunstâncias? Cumprirá suas obrigações depois de assumir em 2010 a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra os Desaparecimentos Forçados? Tem um ano, até novembro de 2014, para demonstrar que está levando a sério as recomendações do Comitê.
Não há razões para otimismo. A primeira reação do governo às ditas recomendações, por meio da embaixadora da Espanha na ONU, Ana Menéndez, foi demonstrar o “desassossego pelas excessivas perguntas referentes ao passado”, algo que, segundo ela “dificulta a identificação de problemas futuros e presentes”. E não podemos esquecer que, durante anos, o Estado espanhol não deixou de colocar obstáculos à investigação de crimes de direito internacional cometidos durante a Guerra Civil e o franquismo.
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Entre 1936 e 1977, na Espanha, foram cometidos inúmeros crimes como os desaparecimentos forçados. Somente no caso aberto em 2005 na Audiência Nacional pelo então juiz Baltasar Garzón, calculava-se que pelo menos 114.266 pessoas tinham sido vítimas de desparecimentos forçados durante o franquismo. Mais desaparecidos que em toda a América Latina durante o século XX. Atualmente, esse caso está praticamente arquivado. Também nesses 40 anos cometeram-se atos atrozes como torturas, execuções extrajudiciais, ataques contra a população civil, perseguições políticas, prisões arbitrárias, trabalhos forçados, crimes contra o direito internacional que, por sua natureza e gravidade, são reconhecidos como crimes contra a humanidade. Crimes que não prescrevem.
É paradoxal que o país que pediu a extradição de Augusto Pinochet (1915- 2006), ditador do Chile e cujos tribunais, aplicando o princípio da jurisdição universal, condenaram o ex-militar argentino Adolfo Scilingo por crimes de lesa-humanidade, até agora não tenha sido capaz de oferecer verdade, justiça e reparação às vítimas de seu próprio país. E quando estas e seus familiares quiseram uma resposta, somente escutaram o som de portas que se fechavam.
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A impunidade continua
A Anistia Internacional denunciou nos últimos anos como na Espanha existe uma tentativa de virar essa página da história sem lê-la, uma clara vontade política de que não prosperem as investigações, e uma tentativa de fazer com que esses crimes atrozes continuem impunes.
O Poder Judiciário espanhol se nega a investigar e arquiva as denúncias das vítimas, se amparando na triste sentença do Tribunal Supremo de fevereiro de 2012, que fechou qualquer porta à investigação ao argumentar, entre outros motivos, que esses crimes eram ordinários, que prescreveram, que todos os autores estavam mortos, e que existia uma Lei de Anistia de 1977 que nos levou a uma transição de modelo. Uma lei de ponto final? Depois dessa sentença, dos 47 casos investigados pelo juiz Garzón, que tinham sido encaminhados a tribunais regionais, pelo menos 38 foram arquivados.
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A Procuradoria espanhola não colabora adequadamente com as petições de cooperação solicitadas pela Argentina, único país que, no momento, tem uma causa aberta contra os crimes cometidos na Espanha entre 1936 e 1937. No transcurso da investigação, a Justiça argentina se dirigiu às autoridades espanholas em duas ocasiões para solicitar informações. Surpreendentemente, a Procuradoria pediu que a Argentina deixasse de investigar porque a Espanha tinha preferência na investigação e a estava realizando.
Uma interpretação que nada tem a ver com o direito internacional. A jurisdição universal é, por definição, concorrente e não subsidiária, isto é, fosse o caso de a Espanha estar investigando os crimes, o que não está acontecendo, isso não impediria em nenhum momento que a Argentina, ou qualquer outro país, também pudesse fazê-lo.
O governo espanhol colocou obstáculos para que as vítimas prestassem declarações para a juíza argentina que está à frente do caso e tem a última palavra, à espera de que se pronuncie o juiz, sobre a primeira extradição para a Argentina de dois presumidos responsáveis por tortura durante o regime franquista. Uma decisão histórica que se tornou pública no último dia 18 de setembro.
E, enquanto isso, o Poder Legislativo segue, depois de quase quatro décadas, defendendo as maravilhas da Lei de Anistia, e se mostrando relutante em aderir à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade.
Em diversos países da Europa, Ásia, América Latina e África, autores de crimes contra a humanidade foram levados a julgamento. Tanto em Nuremberg como em Tóquio, alguns dos piores criminosos das potências do Eixo, responsáveis por crimes de guerra e crimes de lesa-humanidade, foram julgados por eventos contemporâneos aos espanhóis. Na América Latina, estabeleceram-se mecanismos para contribuir para o esclarecimento da verdade em relação aos crimes perpetrados nas últimas décadas, e aqueles que acreditavam estar acima do direito internacional se viram enfrentando processos penais. Pinochet; Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru; Jorge Rafael Videla (1925-2013), ditador da Argentina; ou François Duvalier (1907-1971), ditador do Haiti são alguns dos nomes que vêm à memória. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, mais de 15 países exerceram a jurisdição universal em investigações ou julgamentos de pessoas suspeitas de terem cometidos crimes contra o direito internacional, entre eles, a Espanha.
Durante anos, a Espanha foi, particularmente, para a Argentina, o único lugar no mundo onde se podia obter verdade, justiça e reparação para as vítimas de sua ditadura quando as portas se fechavam em seu país. 413 pessoas estão detidas ou em prisão domiciliar por crimes de lesa-humanidade durante a ditadura argentina. Atualmente, a corte da juíza Servini de Cubría, em Buenos Aires, é o único lugar no mundo onde as vítimas espanholas e seus familiares podem contar o que sabem, são ouvidos e podem esperar alguma diligência judicial que mereça ser chamada de tal.
Na Argentina, todo ano, homenageia-se os desaparecidos espanhóis durante a ditadura argentina, no entanto, continua o silêncio quando se trata dos desaparecidos durante o franquismo. A luta contra a impunidade é de competência universal, assim o estabelece o Estatuto de Roma… “é dever de todo Estado exercer sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes internacionais.”
A Espanha tem a obrigação de oferecer verdade, justiça e reparação às vítimas de crimes contra a humanidade cometidos em seu território. E, se a Espanha continuar fechando as portas à investigação, o restante dos Estados têm a obrigação de garantir esses direitos. Não é apenas uma questão legal de cumprimento das normas de direitos humanos que têm a ver com o passado. É uma questão de futuro.
* Carmen López é jornalista da Anistia Internacional espanhola