Com um partido de centro-esquerda – e moderadamente pró-russo – liderando as pesquisas para as eleições parlamentares que ocorrerão em outubro – e já no poder há 12 anos –, e a economia crescendo aceleradamente – favorecida pela posição de intermediária comercial entre a Rússia e o Ocidente –, a ex-república soviética da Geórgia está sendo sacudida por manifestações surpreendentes, o que lembra o cenário de alguns anos atrás.
Com dimensões territoriais e populacionais semelhantes ao estado brasileiro da Paraíba, a Geórgia, apesar dos seus problemas, é um dos pontos mais estáveis do Cáucaso, uma das regiões-chave da antiga União Soviética. A importância do que se passa no país está conectada à sua localização, absolutamente chave para a Rússia – sua poderosa vizinha, com quem esteve em guerra em 2008.
A Geórgia foi um oásis para os russos nos anos 1990. Mas girou para o Ocidente em 2003, após uma revolução colorida, o que a fez inclusive a entrar na aventura belicista de 2008, derrotada rapidamente no campo de batalha pela Rússia, voltando às mãos de forças pró-Moscou em 2012, que ainda estariam estáveis no poder. Mas agora, após a tentativa de aprovar uma lei contrária às ONG’s, o governo enfrenta manifestações massivas.
O Cáucaso, caminho para o coração da Ásia e entroncamento russo-iraniano-turco
Etnicamente, o Cáucaso é uma colcha de retalhos. Com a Rússia ao norte, o Irã ao sudeste e a Turquia ao sudoeste, trata-se de um espaço em permanente disputa. Sua forma, a de uma coluna entre os mares Negro e Cáspio, dá a ideia de que ele sustenta, ao menos, uma parte do mundo – e não é mentira ou exagero. Enquanto os azeris são um povo turco – e islâmico –, os armênios são indo-europeus e georgianos, são um grupo branco, mas não indo-europeu.
A região, hoje, vive também às voltas com um estado de guerra entre Armênia e Azerbaijão, que retomaram um conflito iniciados nos dias finais da extinta União Soviética – desta vez, com perda de território dos armênios para os azeris, os quais são apoiados pela Turquia e também por Israel, embora guardem ambivalentes boas relações com a Rússia; e os armênios, de grandes aliados russos, têm se afastado gradualmente nos últimos anos.
Geórgia e Armênia remetem a culturas milenares, assentadas naquela região há tanto tempo que nem o tempo se recorda mais. O Azerbaijão, contudo, remete aos avanços dos povos turcos oguzes e inclui populações indo-europeias que foram turquificadas – grande parte dela, no entanto, habita o noroeste do Irã, isto é, há mais azeris no Irã do que no próprio Azerbaijão, inclusive porque seu nome se refere a uma antiga província do Império Persa.
Há uma boa quantidade de minorias étnicas em todas essas repúblicas, o que não é apenas fruto de migrações ou deslocamentos forçados ocorridos durante o domínio russo ou a União Soviética, mas há milênios. O próprio território propriamente russo do Cáucaso tem povos tão diferentes quanto chechenos, inguches, mongóis kalmyks, etc – e foi palco das brutalíssimas guerras da Chechênia durante os anos 1990, o que alçou Putin ao poder.
Entre o disputado mar Negro e o mar Cáspio, é evidente que manter a estabilidade do Cáucaso é vital para a Rússia, sobretudo porque qualquer coisa diferente disso pode mudar a balança de poder na Ásia Central – com consequências negativas tanto para russos, que na prática ainda protagonizam o coração da Ásia, mas também para chineses, vide a crise no Cazaquistão em 2022, na antessala do conflito russo-ucraniano.
Mas mudar o balanço de poder na região, inclui, igualmente, interferir nos interesses iranianos e turcos também, sobretudo em um momento no qual o governo de Ancara pendula para o Oriente, motivado pela pressão interna contra o massacre de palestinos por Israel – e a Turquia, a despeito da retórica pró-palestina, foi uma improvável porém confiável aliada dos israelenses durante a longeva liderança de Erdogan.
Até bem pouco, tínhamos uma Turquia ligada comercialmente com Israel e, igualmente, anti-iraniana, com uma postura ambivalente, mas certamente rival dos russos no Cáucaso e, ainda, com ambições pan-turquistas sobre a Ásia Central – com quem se relaciona por vínculos étnicos ancestrais com a maioria dos países, mas também laços religiosos. A atual inflexão turca talvez abale o balanço de forças para o Ocidente na região.
Nesse caso, a França aparece como um ator ocidental de vanguarda, mostrando solidariedade aos armênios – o que tem mais a ver com um jogo antirrusso do que propriamente pró-armênio – e, agora, também mobilizando a poderosa elite franco-georgiana – a qual pertence a presidente georgiana, ironicamente, ex-embaixadora da França na Geórgia – e as ilusões europeístas das classes médias georgianas.
Ainda é cedo para medir os efeitos do afastamento turco-israelense sobre o Cáucaso, mas uma vez consolidado, ele impacta também o Azerbaijão – que antes tinha Israel como um inimigo em comum contra o Irã – exigindo um reposicionamento do Ocidente e seus operativos na região. A Geórgia, uma vez mais, se torna estratégica para essas pretensões, exigindo ação dos operativos ocidentais no país.
A insustentável leveza do nacionalismo georgiano
Mikheil Saakashvili, o presidente derrotado pelos russos na famosa Guerra dos Cinco Dias em agosto de 2008, de aliado ocidental, usou-se mais tarde de suas ligações com a Ucrânia para ser governador provincial nessa outra ex-república soviética – em ambos os casos, o “nacionalismo” georgiano que Saakashvili proclamava estava conectado aos interesses norte-americanos no seu país e o mesmo se pode dizer de sua participação na política ucraniana.
A vida de Saakashvili deu tantas reviravoltas quanto a terra. De governador nomeado por Petro Poroshenko e depois destituído, condenado a perder a nacionalidade ucraniana, a qual foi devolvida por Volodymyr Zelensky, que o nomeou conselheiro nacional em 2020, até que ele retornasse à Geórgia, onde foi preso em 2023 – embora os “aliados de Putin” sejam acusados, o fato é que Saakashvili se tornou alvo de todas as alas da política georgiana.
A Geórgia perdeu em 2008, para nunca mais retomar o controle das regiões da Ossétia do Sul – a Ossétia do Norte faz parte da Federação Russa – e da Abecásia, no seu noroeste, ambas apoiadas por Moscou – as quais correspondiam a regiões de minorias étnicas, que se tornaram alvo do ufanismo do discurso etnonacionalista das forças pró-ocidentais do país. Qualquer semelhança com o caso ucraniano não é coincidência.
A presidente georgiana, que é apenas chefe de Estado no país (sim, a ex-embaixadora de Paris em Tbilisi) Salomé Zourabichvili, tem defendido as manifestações e insistindo, naturalmente, em um discurso europeísta, que se entrelaça com uma mistura de etnonacionalismo local que é, a um só tempo, antirrusso e contrário às minorias étnicas locais – repetindo o script ucraniano.
Moscou vive às voltas com uma perda de protagonismo na região, enquanto está concentrada no conflito na Ucrânia. Antes, as relações entre a Rússia e Armênia pareciam ser de uma amizade profunda, mas as ambivalências de Moscou e a mudança na política interna armênia – dirigindo-se mais ao Ocidente, nomeadamente à França – aprofundaram um afastamento dos russos em relações a Yerevan, enquanto os azeris trataram de se aproveitar disso.
Perder a Geórgia hoje, abrindo uma nova frente de batalha no Cáucaso, é um pesadelo que Moscou não contava nesse momento – e pode acontecer se as manifestações atuais mudarem o equilíbrio de forças na política georgiana, o que tornará ossetas e abecazes novamente alvo do governo central georgiano. Ainda restam dúvidas do que será o papel desempenhado pela França, que parece fustigar os russos no Cáucaso em resposta à África, como já dissemos.
A questão é entender o real impacto dessas manifestações, e a resiliência do governo georgiano a investidas que passam, goste-se disso ou não, por atores estrangeiros dentro e fora do país. O europeísmo, ele próprio tão desinteressado por países pobres no seu interior, e que protelou o ingresso da Geórgia na União Europeia, aparece uma vez mais como um cavalo de troia, manobrando as aspirações democráticas de sociedades pós-socialistas.
O futuro da Geórgia vai além de si mesmo. E ela, por mais que seja atravessada por essa disputa de titãs, curiosamente, se torna uma pedra de toque para as potências regionais no seu entorno e na projeção – ou não – das potências globais sobre a Ásia Central, o Santo Graal da geopolítica antirrussa e antichinesa. Eis aí a reedição do Grande Jogo, em que a vitória britânica determinou a perpetuação do imperialismo de língua inglesa e hoje visa o mesmo objetivo.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.