No último escrito da nossa coluna, concluímos tratando do confronto teórico-político entre Luiz Aguiar Costa Pinto e Guerreiro Ramos e como essa peleja foi fundamental para os trabalhos posteriores daquele, como O problema do negro na sociologia brasileira. Este escrito, publicado originalmente em 1954, no Cadernos do Nosso Tempo (Ibesp, Rio de Janeiro), é o texto de maior fôlego presente na coletânea de textos do livro Negro Sou. Trata-se de uma reflexão sobre a questão racial no Brasil, mas vai além disso. É um estudo corajoso sobre a história do pensamento social brasileiro, suas condicionantes, problemas e potencialidades.
Nesse escrito, o sociólogo começa falando da farta literatura de caráter “histórico e socioantropológico” produzida por autores nacionais e estrangeiros sobre a população negra no Brasil, mas destaca que esta literatura, na contemporaneidade (ou seja, em 1954), revela-se em “contradição com as tendências de autonomia espiritual e material do Brasil” (RAMOS, 2023, p. 136). No parágrafo seguinte, Guerreiro Ramos aponta o centro dessa contradição: “o negro tem sido estudo, no Brasil, a partir de categorias e valores induzidos predominantemente da realidade europeia. E assim, do ponto de vista da atitude ou da ótica, os autores nacionais não se distinguem dos estrangeiros, no campo em apreço” (RAMOS, 2023, p. 2023).
Nos dois primeiros ensaios desta coluna, vimos como o sociólogo baiano apresentou em vários textos anteriores o problema do “imperialismo sociológico e antropológico” nos estudos sobre o negro no Brasil. Para Guerreiro, a alienação da realidade nacional e o colonialismo cultural – termo, não custa lembrar, que não é de uso corrente na obra do autor –, uma prática permanente de importação acrítica de ideias, teorias, conceitos e atitude científica e política academicista e descolada da práxis, consiste no cerne dos erros do debate nacional sobre o racismo.
Contudo, é nesse escrito que ele busca demonstrar em detalhes a sua tese. O que antes era um conjunto de afirmações com fundamentação fragmentária e um tanto rápidas demais, aqui ganha um caráter sistemático. Começa na fundamentação da necessidade intransponível de existir uma sociologia nacional em cada país que é, de fato, uma nação – com superação de sua fase colonial ou de qualquer forma de heteronomia. Para o sociólogo, em 1954, só existia em pequeníssima escala uma “ciência brasileira”. O trabalho científico no Brasil – diz o autor – “carece, em larga margem, de funcionalidade e de autenticidade. De um lado, porque não contribui para a autodeterminação da sociedade; de outro lado, porque o cientista indígena é, via de regra, um répétiteur, hábil muitas vezes, um utilizador de conceitos pré-fabricados, pobre de experiências cognitivas genuinamente vividas e, portanto, vítima dos ‘prestígios’ dos centros europeus e norte-americanos de investigação” (RAMOS, 2023, p. 137).
É necessário dizer que o termo “cientista indígena” não significa indígena no sentido comum de povos originários, mas de local, nacional do Brasil. Dito isso, perceba que não temos uma ciência brasileira consolidada porque não temos um campo científico funcional à “autodeterminação da sociedade”, que, para Guerreiro Ramos, era a principal função da ciência, em particular da sociologia, nas condições brasileiras do momento; ao mesmo tempo, os nossos cientistas se alimentam do prestígio dos centros imperialistas, repetindo suas formulações, ausentes de uma práxis genuinamente vivida junto ao povo brasileiro.
Essa realidade brasileira está em contradição com a própria natureza científica das ciências humanas. Para Guerreiro, existem os “princípios gerais de conhecimento positivo universal” e, ao mesmo tempo, e com vários sentidos, uma ciência nacional em “todo país de cultura autêntica”. A autenticidade da cultura diz respeito à sua articulação concreta, direta ou indireta, com um “projeto nacional de desenvolvimento – o que transparece nos “objetos em que incide” e na localização dos problemas científicos radicando-se em “situações historicamente concretas” – mesmo quando intrinsecamente abstratos (RAMOS, 2023, p. 137).
Dessa reflexão, Guerreiro afirma as diferenças de problemática científica entre países como Rússia, Estados Unidos, França, Inglaterra, Alemanha: a diferença se fundamenta nas “necesidades práticas da sociedade”. Essas necessidades práticas só assumem a forma racionalizada de ciência nacional com um “labor contínuo” e com os especialistas de uma mesma época em cooperação. A ciência nacional não se forma pela “justaposição de conhecimentos ou pela mera sucessão abrupta de orientações” (RAMOS, 2023, p. 138).
Com esse diagnóstico, o sociólogo passa a debater a ausência de uma ciência nacional a partir do exemplo da antropologia. Afirma que esta disciplina científica está “fortemente alienada do meio brasileiro, já por suas categorias, já pela sua temática”. A antropologia “brasileira” é vassala da produção estadunidense e europeia que “têm sido, em larga margem, uma racionalização da espoliação colonial” (RAMOS, 2023, p. 138). Cita o conceito de raça oriundo dessa produção antropológica para indicar como a alienação da realidade nacional tem sido nociva ao Brasil – ao mesmo tempo que destaca resistências e contra tendências, como as obras de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Álvaro Bomílcar (RAMOS, 2023. p. 139).
No desenvolvimento da crítica à antropologia produzida nos centros imperialistas e assimilada na periferia do sistema, Guerreiro Ramos destaca o caráter quietista das abordagens, a estetização e naturalização do atraso e da miséria e como a problemática da mudança social é analisada desde uma perspectiva meramente superestrutural, adaptada à dinâmica de ação de agências educacionais e sanitárias. Conclui o raciocínio sobre a antropologia com um longo trecho que precisamos citar integralmente:
“Os nossos grandes problemas ‘antropológicos’ – o do índio e o do negro – são aspectos particulares do problema nacional de caráter eminentemente econômico e político. Daí resulta que, sem estribar-se na teoria geral da sociedade brasileira, o antropólogo, em nosso país, se expõe a tornar-se uma espécie de ‘mercenário inconsciente’, um ‘inocente útil’ ou, na melhor das hipóteses, um esteta. Rigorosamente, é lícito afirmar que, em um país como o Brasil, o trabalho antropológico terá sempre sentido dispersivo se não se articular com o processo de desenvolvimento econômico. Na fase em que se encontra, o mero aspecto ‘antropológico’ dos seus problemas é acentuadamente subsidiário. Nossos problemas culturais, no sentido antropológico, são particulares e dependentes da fase de desenvolvimento econômico do Brasil. A mudança faseológica de nossa estrutura econômica automaticamente solucionará tais problemas (…) Nessas condições, os nossos patrícios, cultores desta matéria, têm diante de si uma tarefa ciclópica, qual a de, utilizando o acervo de conhecimentos acumulados universalmente neste campo, induzirem da realidade nacional os seus critérios de pensamento e ação. Pois jamais serão científicas obras resultantes da imitação servil ou de transplantação liberal de conceitos e atitudes” (RAMOS, 2023, p. 141 – destaques nossos).
Guerreiro, nesse trecho, convida os antropólogos a mergulhar na realidade nacional, tirando dela, a partir da práxis, os conceitos e problemas científicos. Clama por um compromisso com um projeto nacional de desenvolvimento que tem como objetivo criar um capitalismo nacional, democrático, industrializado e com elevação das condições de vida (material e cultural) do povo brasileiro e considera que superar a fase colonial ou dependente da vida brasileira é a questão totalizante por excelência, subordinando e englobando todas as obras, tornando-as “secundárias”. Para nosso sociólogo, estudos culturais descomprometidos com o enfrentamento à dependência tornam o antropólogo um esteta da situação existente.
É fundamental notar que nesse momento, de forma semelhante à sua primeira entrevista sobre a questão racial (abordada no texto anterior), Guerreiro Ramos considera que um projeto econômico de superação da dependência vai por si só resolver o “problema do negro e do índio”. Contudo, é importante frisar que dessa vez o sociólogo fala de resolução na dimensão “antropológica” do problema. Diferentemente de 1946, o debate não é que não existe um problema racial, mas sim um problema econômico que de forma superficial aparece como antagonismo racial. Esse antagonismo existe, mas no plano da cultura, tomando em si, a partir do trabalho de “agências educacionais e sanitárias”, nada será solucionado.
Mas o que significaria, em termos concretos, a solução da dimensão “antropológica” do problema do negro no Brasil? Caso atingisse a emancipação nacional, superando a fase colonial ou dependente, que tipo de estruturas racistas restariam no país? No decorrer da análise, veremos como Guerreiro Ramos responde essa pergunta a partir de sua formulação sobre a estética social brasileira.
Depois desse debate preliminar sobre a ausência de uma ciência nacional e o exemplo da antropologia, Guerreiro Ramos começa a traçar a história dos estudos sobre o negro no Brasil. Registra três correntes: a) a crítico-assimilativa frente à ciência social estrangeira, fundada por Sílvio Romero e continuada nas obras de Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Viana. Para nosso autor, essa corrente buscava uma formulação sobre o “tipo étnico brasileiro” e não pensar a extrema peculiaridade de cada um dos “contingentes formadores da nação”. Aliado a isso, a corrente crítico-assimilativa contribuiu para “arrefecer qualquer tendência” de considerar o negro a partir do “ângulo do exótico” ou “como algo estranho na comunidade” (RAMOS, 2023, p. 142); b) a segunda corrente, segundo Guerreiro, é a monográfica, fundada por Nina Rodrigues e continuada nas obras de Arthur Ramos, Gilberto Freyre e “seus imitadores”. Essa corrente tornou o negro um “assunto”, “tema de especialistas”, focado no passado e nas “sobrevivências daquele no presente”, tendo um hiper foco no que particularizaria a população negra frente à “comunidade nacional” (RAMOS, 2023, p. 142-43); c) Já a terceira corrente não é um campo teórico-político. É constituída pelas práticas políticas de tentativa de transformar a condição humana do “negro na sociedade brasileira”, e seus atores se registram “desde a época colonial”. Guerreiro coloca em situação de igualdade analítica a prática político-organizativa dos negros e negras escravizados e alforriados com as correntes teórias de estudos sobre o negro (RAMOS, 2023, p. 143).
Não faz sentido reconstituir as análises do sociólogo sobre cada autor, isso deixaria o texto demasiado grande e fugiria de nossos objetivos. Mas cabe destacar, para quem alertou-se com nomes como Oliveira Viana (de obra abertamente racista e defensor da tese do branqueamento da população brasileira) ou Euclides da Cunha (adepto de teorias sobre o caráter biologicamente negativo da mestiçagem), que Guerreiro Ramos não desconsidera esses elementos. O que ele busca mostrar é que mesmo com erros e abordagens racistas, os autores da corrente crítico-assimilativa, com várias diferenças entre si, procuraram ancorar sua produção teórica na realidade nacional, expressando desconfiança ou crítica aberta à importação de ideias como chave para explicar o Brasil. Para um aprofundamento maior, não é supérfluo indicar que leiam diretamente a sua abordagem.
Contudo, precisamos citar um trecho da análise do pensador baiano sobre Alberto Torres. O autor abre a seção do seu ensaio sobre Torres citando as restrições e problemas na obra do autor de A organização Nacional. Uma das críticas é que Alberto Torres “negligenciou, portanto, o condicionamento da psicologia do povo brasileiro e de suas elites pelas condições materiais do país e, assim, incorreu em enganos e erros em muitos aspectos do seu diagnóstico e de sua terapêutica do ‘problema nacional’” (RAMOS, 2023. p. 152). Voltaremos a essa reflexão em breve.
Para Guerreiro Ramos, é com Nina Rodrigues que inicia-se no Brasil a prática de tomar o “negro como tema”. Essa corrente toma o “negro como tema” a partir de um prisma do “negro como problema”. O sociólogo é taxativo ao afirmar que todos dessa corrente monográfica veem o negro “como algo estranho, exótico, problemático, como não Brasil, ainda que alguns protestem o contrário” – e também insere nessa crítica a obra de Roger Bastide, Florestan Fernandes e Thales de Azevedo (RAMOS, 2023, p. 169).
Na busca por criticar os fundamentos dessa abordagem do “negro como problema”, tendência da corrente monográfica, Guerreiro nega uma especificidade religiosa da população negra, afirmando a adesão destes ao cristianismo desde o começo do século e a suposta maior propensão de negros à práticas criminais, poderando que “a maior frequência de indivíduos pigmentados na estatística de certos crimes decorre necessariamente de sua predominância em determinadas camadas sociais. Assinala um fenômeno quantitativo e não qualitativo”; e, por fim, nega existir “tendências específicas essenciais na vida associativa” (conjugal, profissional, moral etc.). E conclui o raciocínio dizendo que “o fato é que o negro se comporta sempre essencialmente como brasileiro, embora, como o dos brancos, esse comportamento se diferencie segundo as contingências de região e estrato social” (RAMOS, 2023. p. 171-172).
Guerreiro erra buscando o caminho certo. É fato que a maioria da população negra – no começo do século XX, em 1954 e nos dias de hoje – é aderente à religião majoritária, nas diversas variantes do cristianismo. Mas isso não justifica tratar as religiões de matriz africana (chamadas de “religiões primitivas”) como meras reminiscências, detalhe destinado a desaparecer ou desconsiderar as diversas formas de adaptação e refuncionalização do cristianismo em contextos específicos – desnecessário citar, por exemplo, as diversas irmandades negras católicas ou a mescla entre cultos afro brasileiros e católicos em torno de santos/orixás. O nosso sociólogo é fixado na ideia das religiões de matriz africana como um complexo social pré-moderno, sem possibilidades de funcionalidade progressiva no presente e no futuro. Nesse sentido, é possível dizer que Guerreiro padece de uma abordagem eurocêntrica, alienada da realidade nacional, no trato das religiões de matriz africana – o que é uma suprema ironia para um crítico tão contundente do eurocentrismo. Compare, por exemplo, as abordagem de Clóvis Moura em Sociologia do Negro brasileiro (Perspectiva, 2019) e O negro de bom escravo a mau cidadão? (Dandara, 2021) sobre a religiosidade afro-brasileira com as do sociólogo baiano e veremos a pobreza teórica e analítica deste último – nessa comparação, alguém pode afirmar que Clóvis Moura escreveu bem mais sobre o tema, dedicando mais atenção. Isso é um fato. Mas o desleixo temático de Guerreiro tem origem em sua visão teórica equivocada.
No segundo aspecto, o das estatísticas criminais, é possível deduzir que quando o sociólogo fala da predominância de negros em certas “camadas sociais”, esteja abordando a sobrepresença nas classes trabalhadoras (incluídas ou não no mercado de trabalho formal). Embora não esteja errada, essa abordagem é limitada. A maior predominância de negros em estatísticas criminais é resultante da desigualdade entre as classes de poder político, econômico e ideológico que torna mais criminalizável certas condutas em detrimento de outras. O Brasil, hoje, encarcera milhares de pessoas por comércio ilegal de drogas no varejo e não faz o mesmo com quem realiza desmatamento, sonegação e evação fiscal, violação de direitos trabalhistas ou casos de trabalho análogo à escravidão.
O que é criminalizado primariamente (definir o que é crime) e secundariamente (punir efetivamente os crimes) é determinado por relações de poder que já induzem uma específica produção de estatísticas criminais e as “cifras ocultas”. Não é fato dado que “pobres” cometam mais crimes que “ricos”. É fato que as condutas e práticas dos “pobres” são mais criminalizáveis (primária e secundariamente) que a dos “ricos”. E, considerando um país racista como o Brasil, a dominação racial atua como um reforço dessa criminalização seletiva. Em 1954, quando Guerreiro escreveu seu ensaio, a criminologia crítica ainda ensaiava seus primeiros passos. As obras paradigmáticas dessa perspectiva crítica são Punição e estrutura social (1939) de Georg Rusche e Otto Kirchheimer; Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (1977) de Dario Melossi e Massimo Pavarini; e Vigiar e Punir: nascimento da prisão (1975) de Michel Foucault. Para a época, portanto, esse erro de Guerreiro é totalmente compreensível – erro, insisto, de conclusão, mas que se direciona por um caminho correto, questionando uma leitura naturalista e racista das estatísticas criminais.
Por fim, o nosso sociólogo também acerta ao criticar a busca por hiper particularismos na vida social da população negra. Mas chega ao outro extremo de negar quaisquer particularidades, reduzindo as diferenças a determinantes de região e estrato social. Ora, justamente por vivermos numa sociedade racista, existem especificidades em modos de organização e experiência de dinâmicas coletivas por parte da população negra. Negar o papel das organizações negras específicas – escolas de samba, terreiros, grupos de capoeira, associações culturais etc. – e suas consequências nos diversos aspectos da vida cotidiana não faz sentido nenhum. Guerreiro acerta quando diz que o negro comporta-se sempre como essencialmente brasileiro, mas brasileiros constituídos por uma organização societária racista que impõe formas específicas de viver o ser nacional.
Mas voltemos ao texto em análise. Depois de criticar os fundamentos da corrente que trata o negro como problema, o sociólogo vai além e diz, sem citar quaisquer fontes ou estudos, que “graças ao desenvolvimento econômico e social do país, elementos de cor se encontram, de alto a baixo, em todas as camadas sociais, e só em algumas instituições vigoram ainda forte restrições para o seu acessso a determinadas esferas” (RAMOS, 2023, p. 172). Guerreiro considerava, como mostramos acima, que a emancipação econômica do país iria resolver por si só a “dimensão antropológica” da questão negra. Agora afirma que, no plano da mobilidade social, já temos negros em todas as camadas sociais e só em algumas poucas instituições ainda figura o preconceito.
Ou seja, o processo econômico que iria emancipar todo o povo brasileiro – e solucionar a “dimensão antropológica” da questão negra e indígena – já estava em curso e com resultados visíveis, mesmo assim, contudo, ainda existe uma questão racial no país – aspectos de opressão ou discriminação contra a população negra. Por quê? A partir de qual fundamento? O autor responde a questão dessa forma: “o que parece justificar a insistência com que se considera como problemática a situação do negro no Brasil é o fato de que ele é portador de pele escura. A cor da pele do negro parece constituir obstáculo, a anormalidade a sanar. Dir-se-ia que na cultura brasileira o branco é o ideal, a norma, o valor, por excelência” (RAMOS, 2023, p. 172).
Depois dessa afirmação, Guerreiro se apressa em dizer que a insignificância do tema é apenas aparente, indicando ser essa a questão central para a permanência da corrente monográfica que trata do “problema do negro” (RAMOS, 2023, p. 172). Em seguida, o sociólogo desenvolve uma longa argumentação – rica de exemplos – sobre como o colonialismo europeu impôs uma estética social de positivação do branco (europeu) e de negativação dos povos colonizados. Para Guerreiro, o problema brasileiro é persistir uma estética social alienada, fora dos critérios da realidade nacional, eurocêntrica e que negativa o negro em si, inume a quaisquer fatos e transformações da situação deste grupo social,
“Ora, o Brasil, como sociedade europeizada, não escapa, quanto à estética social, à patologia coletiva acima descrita. O brasileiro em geral, e especialmente o letrado, adere psicologicamente a um padrão estético europeu e vê os acidentes étnicos do país e a si próprio do ponto de vista deste. Isso é verdade tanto com referência ao brasileiro de cor como ao claro. Esse fato da nossa psicologia coletiva é, do ponto de vista da ciência social, de caráter patológico, exatamente porque traduz a adoção de um critério artificial, estranho à vida, para avaliação da beleza humana. Trata-se, aqui, de um caso de alienação que consiste em renunciar à indução de critérios locais ou regionais de julgamento do belo por subserviência inconsciente a um prestígio exterior (…) O que explica, portanto, esse ‘problema’ de nossa ciência social é uma alienação, uma forma mórbida de psicologia coletiva, a patologia social do brasileiro e do baiano, principalmente. Pode-se dizer, no caso, que se está diante daquilo que Erich Fromm chama de socially patterned defect, de um defeito socialmente padronizado, que o indivíduo reparte com os outros, o que lhe diminui o caráter de defeito e o transforma em uma verdadeira virtude (…) A mim parece necessário seguir essa pista na análise do nosso ‘problema do negro’, negligenciando mesmo os seus aspectos econômicos. O que nos interessa aqui é focalizar a questão do ângulo psicológico, enquanto socialmente condicionado, é atingir a sociologia funcional e científica do negro, inteiramente por fazer até agora, desde que os estudos da questão se rotulam de sociológicos e antropológicos não são mais do que documentos ilustrativos da ideologia da brancura ou da claridade” (RAMOS, 2023, p. 177-178 – destaques nossos)
O fundamento da negativação da população negra é uma estética social alienada, eurocêntrica, antinacional, fruto direto dos séculos de colonialismo com o expansionismo europeu. O sociólogo diz mais: é necessário sublinhar o aspecto psicológico e negligenciar a dimensão econômica. Essa afirmação é coerente com a compreensão do autor de que a emancipação econômica nacional já está em processo, com a superação da fase colonial ou dependente em curso. A partir disso, é como se existisse um desencontro esse a base material e a superestrutura e cabe, agora, a uma práxis política direcionada à produção científica, cultural e de identidade nacional produzir não só uma ciência nacional brasileira, como uma nova estética social, ancorada “na vida”, na nossa realidade.
Nessa tarefa, tem função central a ação do “homem de pele escura” que vai ser sujeito privilegiado de uma compreensão objetiva da questão negra no Brasil. E por que tem o negro essa posição? Bem, para o sociólogo, “começa-se a melhor compreender o problema quando se parte da afirmação – niger sum [negro sou]. Essa experiência niger sum, inicialmente é, pelo seu significado dialético, na conjuntura brasileira em que todos querem ser brancos, um procedimento de alta rentabilidade científica, pois introduz o investigador em perspectiva que o habilita a ver nuanças que, de outro modo, passariam despercebidas” (RAMOS, 2023, p. 181).
É preciso meditar com atenção na inovação desse aporte teórico de Guerreiro Ramos. O sociólogo, inspirado diretamente na abordagem filosófica personalista e na influência do movimento negritude, coloca em tela que o sujeito negro, no ato de negar sua desumanização, recusando essa estética social alienada e eurocêntrica, assume um lugar de mirada cientificamente privilegiado da sociedade. O padrão de branquitude eurocentrado é um problema nacional, a todos atinge, mas é na afirmação como pessoa, como humano, que o ser negro coloca-se diante de si a tarefa de descortinar todos os mitos e mentiras desta “patologia social”. Tal como vários pensadores afirmam que o socialismo é uma proposta para humanidade – logo, universal –, mas o seu protagonista histórico por excelência é a classe trabalhadora, sujeito vocacionado para essa tarefa pelo seu lugar estrutural nas relações de produção, Guerreiro Ramos realiza reflexão análoga, localizando na população negra, no ato político de sua humanização, o potencial de universalidade na direção de uma compreensão real da nossa particularidade nacional.
O trecho a seguir, se me permitem o entusiasmo, é de uma genialidade fantástica e de uma atualidade chamativa. Para Guerreiro Ramos, ao afirmar o niger sum [negro sou] como princípio,
“Então, descortino a precariedade histórica da brancura como valor. Então, converto o ‘branco’ brasileiro, sôfrego de identificação com o padrão estético europeu, num caso de patologia social. Então, passo a considerar o preto brasileiro, ávido de embranquecer se embaraçado com sua própria pele, também como ser psicologicamente dividido. Então, descobre-se-me a legitimidade de elaborar uma estética social de que seja ingrediente positivo a cor negra. Então, afigura-se-me possível uma sociologia científica das relações étnicas. Então, compreendo que a solução do que, na sociologia brasileira, se chama o ‘problema do negro’, seria uma sociedade em que todos fossem brancos. Então, capacito-me para negar validade a essa solução” (RAMOS, 2023, p. 181 – destaques nossos).
Essa reflexão busca pensar uma proposta política antirracista, questionando uma certa construção anti-negra da identidade nacional brasileira, sem enveredar-se no labirinto das disputas fratricidas do extremo-particularismo, tristemente tão em moda nos dias atuais. A crítica ao eurocentrismo e à compreensão racista da nossa identidade nacional caminha para uma proposta de universalidade. É uma nova percepção não apenas dos estudos das relações étnico-raciais no país, como também do nosso próprio ethos nacional.
Buscando aprofundar a reflexão que citamos acima, porém, o sociólogo se enrola novamente na dimensão econômica da questão (esse “enrolo”, ao final do escrito, será debatido em detalhes). Diz que “o problema efetivo do negro no Brasil é essencialmente psicológico e secundariamente econômico”. Afirma isso dizendo que “desde que se define o negro como um ingrediente normal da população do país, como povo brasileiro, carece de significação falar de problema do negro puramente econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do pauperismo. O negro é povo, no Brasil” (RAMOS, 2023, p. 182 – destaques nossos). Diz ainda que a população negra não é elemento estranho da nossa demografia, mas sim nossa “matriz mais importante” e que esse fato deve ser erigido à “categoria de valor, sintoma de nossa dignidade e do nosso orgulho de ‘povo independente’” – afinal, “o negro no Brasil não é anedota, é um parâmetro de realidade nacional” (RAMOS, 2023. p. 182). A conclusão do raciocínio, na página que estamos citando, é mais uma vez apontar que o centro da questão racial, no Brasil daquele momento, é a “hipercorreção estética do branco brasileiro, ávido de identificação com o europeu”. Por fim, novamente destacando o processo de emancipação econômica já em curso, diz que:
“Há, inserida na comunidade racional, uma lógica cujo transporte no plano conceitual constitui uma das tarefas primordiais do sociólogo brasileiro. O Brasil, por força do desenvolvimento de sua riqueza material e de sua crescente emancipação econômica, começa a ter o que se chama de caráter nacional, um orgulho nacional, e, na medida em que esse processo avança, torna-se verdadeiro imperativo categórico de nossos quadros intelectuais procurar aplicar-se na estilização, na valorização de nossos tipos étnicos. A sociologia no Brasil tem sido, em larga margem, uma espécie de patoá ou dialeto da sociologia européia ou norte-americana. Terá, hoje, de procurar tornar-se uma autoconsciência de nosso processo de amadurecimento” (RAMOS, 2023, p. 184 – destaques nossos).
Por fim, antes de passarmos à crítica, vamos ao último ponto do escrito de Guerreiro Ramos. Lembremos que o sociólogo falava de três correntes de interpretação da questão racial no Brasil, e uma delas era constituída pela prática política de emancipação dos negros e negras desde os tempos da Colônia. Pois bem, ele termina o escrito falando dessa corrente. Começa afirmando que o TEN (Teatro Experimental do Negro) é a corporificação da nova compreensão do negro no Brasil (debatida acima) e que tem como antecedentes “os trabalhos do africano Chico Rei” no século XVIII; as confrarias, os fundos de emancipação, as caixas de empréstimos, em suma, um conjunto de organizações que buscavam reunir contribuições para comprar cartas de alforria; ao lado dessas organizações, temos as insurreições de negros mulçumanos na Bahia, os quilombos como “a famosa República dos Palmares (…) verdadeiro Estado de negros”, além dos abolicionistas, com destaque para Luiz Gama e José do Patrocínio, e outras iniciativas como o Clube do Cupim de Recife e as Frentes Negras de São Paulo e da Bahia (RAMOS, 2023, p. 186).
Em seguida, Guerreiro negrita que fala desses episódios históricos e lutas como antecedentes, o que não significa necessariamente aprovar tudo, dado que, segundo o autor, “via de regra, careciam de elaboração teórica e foram, muitas vezes, reações agressivas que não podem ser, hoje, apresentadas como paradigmas” e, ao mesmo tempo, diz que essas iniciativas e lutas foram expressão da busca “de uma condição humana para o negro, em que ele pudesse ser sujeito de um ato de liberdade” (RAMOS, 2023, p. 186).
Na continuidade do argumento, afirma que é na obra de Joaquim Nabuco e de Álvaro Bomílcar que se localiza o antecedente histórico mais próximo do TEN. Fala um pouco sobre Nabuco, figura por demais conhecida e referenciada. Se detém com vagar na obra de Bomílcar, intelectual que, para Guerreiro, é autor do “documento mais importante do diagnóstico científico de nossa questão racial, na fase republicana” (RAMOS, 2023, p. 188). Volta ao tema do TEN e justifica longamente porque este é o continuador por excelência da tradição histórica de peleja pela emancipação da população negra, e como prática social que abriu novas horizontes teóricos e científicos, em conflito com o status quo dos estudos dominantes na sociologia e antropologia – assim termina esse robusto ensaio de Guerreiro Ramos.
Podemos então passar a uma crítica sistemática. Durante a exposição, buscamos usar longas citações para que você, leitora e leitor, visse nas palavras do próprio Guerreiro Ramos sua argumentação. Trata-se de um debate, à luz dos padrões atuais, que difere dos rumos da produção acadêmica e política sobre a questão racial no Brasil – ao mesmo tempo, para alguns, é importante conhecer um debate como esse para “descobrir” que a crítica ao eurocentrismo não começou com a “teoria decolonial”.
Começamos com um ponto óbvio considerando o Brasil atual. O pressuposto de Guerreiro Ramos era que a emancipação econômica do país estava em curso e conseguiríamos, em breve, superar a dependência ou a fase colonial da economia. Antes de tudo, para o nosso sociólogo e praticamente todos de sua geração, dependência, colonialismo e semi-colonialismo eram sinônimos. Não estava consolidada uma teorização precisa das diferenças entre uma economia colonial clássica, situação semicolonial e as economias de capitalismo dependente. Essa “confusão” conceitual explica-se pelo momento histórico.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, começa o gigantesco processo de descolonização afro-asiático. A maioria da humanidade, depois de 400 anos de avanço do colonialismo, caminha para criação de espaços nacionais com soberania jurídico-política e projetos de autonomia econômica e tecnológica. Em paralelo, na América Latina, em particular em países como México, Argentina e Brasil, as décadas de 1930, 40 e 50 caracterizavam-se pela acelerada urbanização, crescimento da indústria e modernização. Ao mesmo tempo, a Rússia, nas primeiras décadas do século XX um país semi-feudal, atrasado e com regime absolutista, em apenas 30 anos conseguiu tornar-se a segunda maior potência econômica e industrial do mundo. A tendência a ver a superação da dependência e do colonialismo como um processo em marcha, cada vez mais forte, abrindo novas possibilidades de autonomia e emancipação, era totalmente compreensível.
No começo da década de 1950 era difícil vislumbrar a possibilidade de que o desenvolvimento capitalista, com industrialização, urbanização, ampliação do consumo de massas e modernização acelerada do aparato estatal poderia ter como resultado a manutenção e aprofundamento da dependência, persistindo, inclusive, vários dos seus aspectos mais gritantes – como a fome, o desemprego em massa, a baixa produtividade do trabalho, o analfabetismo etc.
Na obra do próprio Guerreiro Ramos, especialmente nos primeiros anos de 1960, é possível ver a compreensão do processo econômico brasileiro com menos otimismo e atenção maior à possibilidade de uma construção interrompida a depender do desenrolar dos conflitos políticos do país – algo visível, por exemplo, no livro Mito e Verdade da Revolução Brasileira, de 1963. Como sabemos, a emancipação econômica do país não aconteceu, e mesmo tendo o Brasil atingido altíssimos índices de participação da indústria no PIB, urbanização e crescimento econômico, seguimos ainda como um país de capitalismo dependente.
Pontuar esse contexto, ainda que rapidamente, é muito importante. Não parece ser uma crítica justa tomar como alvo central a compreensão que a emancipação brasileira já estava em curso, a ausência de uma reflexão sobre as possibilidades de uma industrialização periférica e dependente ou o “otimismo” subjacente nas análises. Como lembramos no primeiro escrito dessa coluna, Guerreiro Ramos viveu as transformações da Era Vargas. O nosso autor formou-se e atuou numa época em que no Brasil foi construída a Fábrica Nacional de Motores (1942), a Companhia Siderúrgica Nacional (1941), a Vale do Rio Doce (1942), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (1951), a Petrobras (1953), a Consolidação das Leis Trabalhistas (1943), a Companhia Hidrelétrica do São Francisco – Chesf (1945), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES (1952), o Banco do Nordeste (1952) e mais uma série de outras instituições. De 1930 até 1954, ano do suicídio de Getúlio Vargas, o país viveu transformações abundantes, e fazia sentido imediato pensar que o “desenvolvimento” passava por acelerar e aprofundar (qualitativa e quantitativamente) um processo já em curso.
Contudo, diretamente ligado à compreensão do autor de que a emancipação econômica estava em curso, temos o entendimento de que a população negra não estava mais confinada essencialmente à classe trabalhadora, especialmente aos setores mais precarizados e com piores condições de trabalho e salário. Lembramos que no escrito em análise, o sociólogo diz que “graças ao desenvolvimento econômico e social do país, elementos de cor se encontram, de alto a baixo, em todas as camadas sociais”; “o problema efetivo do negro no Brasil é essencialmente psicológico e secundariamente econômico”; e, “desde que se define o negro como um ingrediente normal da população do país, como povo brasileiro, carece de significação falar de problema do negro puramente econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do pauperismo” (RAMOS, 2023, p. 172 e 182).
É inútil procurar no ensaio qualquer argumento, estudo ou prova que sustente que a população negra disputava e se beneficiava em pé de igualdade com outros contingentes populacionais os frutos do “desenvolvimento econômico e social do país”. Esse entendimento de Guerreiro Ramos não é apenas do texto em análise, mas uma constante em vários outros escritos. Por exemplo, em Semana do Negro de 1955, o sociólogo diz: “sustento que, na base infraestrutural da sociedade brasileira, não existe, hoje, um problema específico do negro. Aí o homem de cor tem praticamente todas as franquias, não sofre discriminações sistemáticas e está confundido com outros contingentes étnicos constitutivos da população. Um ou outro caso isolado que se possa mencionar em desfavor desta tese não a destrói”. Depois dessa assertiva, já tenta responder eventuais críticos dizendo “é verdade que, nada estando solto no contexto global, da sociedade, e havendo, no nível da superestrutura social e institucional do Brasil, dificuldades específicas para o homem de cor, tais dificuldades, em última análise, tem consequências infraestruturais ou econômicas. Certo. Mas, ainda assim, deve-se reconhecer aí um dos casos de ação da superestrutura sobre a infraestrutura, e a essência do que dissemos acima se confirma” (RAMOS, 2023, p. 213).
Em outro texto, Política de relações de raça no Brasil (1957), o autor diz sem explicação ou quaisquer justificativa teórica que é um equívoco com “perigos sociais” definir em “termos raciais” as “tensões decorrentes das relações metrópole-colônia e capital-trabalho” (RAMOS, 2023, p. 222). Em Patologia social do “branco” brasileiro (primeira edição de 1955 e uma nova publicação em 1957), o autor diz que na era colonial, a ideologia de superioridade da brancura era suporte da espoliação econômica, mas no Brasil atual, “em que o processo de miscigenação e de capilaridade social absorveu, na massa das pessoas pigmentadas, larga margem dos que podiam proclamar-se brancos outrora, e em que não há mais, entre nós, coincidência entre raça e classe” (RAMOS, 2023, p. 231) – o sociólogo puxa uma nota de rodapé nesse trecho e, sem argumentos, apenas diz que “entre vários sociólogos e antropólogos brasileiros é corrente a tese de que os nossos problemas raciais refletem determinadas relações de classe. Essa tese é insuficiente, a meu ver. Explica apenas aspectos parciais da questão” (RAMOS, 2023, p. 301).
Por fim, no texto O pluralismo dialético (1955), faz uma crítica ao livro Prestes e a revolução social, de Abguar Bastos, e diz que “é a idolatria da contradição que tem conduzido alguns estudiosos influenciados pelo marxismo a explicar as relações de raça no Brasil em termos de puras relações de classe (…) a chamada questão do negro brasileiro, originalmente condicionada, de fato, pelas relações de classe, é, entretanto, em nossos dias, secundariamente econômica e essencialmente psicológica, só se esclarecendo à luz da ambiguidade dialética” (RAMOS, 2023, p. 257) – o autor, novamente, faz uma nota de rodapé e, para sustentar essa afirmação, remete ao seu escrito Patologia social do “branco” brasileiro, onde não é possível encontrar nenhuma explicação minimamente sólida sobre o tema da relação raça e classe no Brasil, apenas a mesma afirmação feita no texto em questão.
É fácil perceber a dimensão do problema. Guerreiro teria que mostrar como aconteceu uma espetacular mobilidade social, com a população negra não estando mais confinada essencialmente à condição de classe trabalhadora e compondo setores significativos das classes médias e da burguesia brasileira. Em seguida, precisaria mostrar como a racialização não é mais um complexo social estruturante da divisão social do trabalho e que a cor da pele não figura como elemento diferencial para condições de trabalho, salário, acesso ao mercado de trabalho formal, violação ou não direitos trabalhistas, índices de acidentes de trabalho, possibilidade de progressão de carreira etc.
Cumprido esse labor, teria provado que o racismo não tem nenhum papel no padrão de exploração da classe trabalhadora e poderia abordar a dinâmica de reprodução das classes médias, sustentando que a reprodução social desta classe não tem mais relação fundamental com o consumo de força de trabalho negra na forma de mercado informal, com baixíssimos salários, fora da regulação da CLT, com vários aspectos de relações de trabalho análogo à escravidão – enfim, Guerreiro Ramos teria que mostrar não ser mais regra absolutamente majoritária a existência de famílias de classe média brancas com serviçais negros lavando, limpando, cozinhando, cuidando das crianças e afins num regime de trabalho onde, em várias situações, inexistia salário (sendo o pagamento a garantia de casa e comida em “troca” do trabalho).
Concluída essa tarefa hercúlea, o nosso sociólogo teria que debater por qual motivo, até aquele momento, a burguesia e os setores negros da classe média (que ele afirma existir) não tinham ainda criado as condições políticas, culturais e institucionais para desnegativar o ser negro, aproveitando da condição econômica privilegiada para pautar o debate público.
Nada disso, contudo, foi realizado. As afirmações do sociólogo sobre não existir mais coincidência entre “raça e classe” no Brasil são mera profissão de fé. Você acredita ou não. É inútil buscar argumentos para discordar ou concordar com essa sentença. O autor, ironicamente, chega ao limite de apelar para uma espécie de “marxismo vulgar”, quando fala de um problema de racismo apenas na superestrutura, com ação de efeito na infraestrutura, como se as relações de produção, propriedade, poder político e forma-estatal fossem realidades autoconstruídas em separado que, em um segundo momento, se tocam em mecânica de efeito recíproco.
É inegável que entre 1930 e 1960 tivemos uma intensa mobilidade social com o acelerado processo de industrialização, urbanização e modernização promovido pelo varguismo e continuado por seus sucessores, como o presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961). A população negra não poderia ficar totalmente excluída dessa mobilidade, dado não existir no Brasil um regime de apartheid semelhante ao da África do Sul ou dos Estados Unidos (com as leis Jim Crow) ou uma política massiva de imigração visando o braqueamento, como no final do século XIX e começo do século XX. Mas o que Guerreiro Ramos afirma é que tal mobilidade acabou com a “coincidência” entre raça e classe no Brasil e que a população negra não estava essencialmente confinada a lugares específicos da estrutura de classes e divisão social do trabalho.
Contemporâneos do sociólogo baiano, todavia, afirmavam o exato contrário. Citamos apenas dois exemplos para ilustrar. O jornalista Rui Facó, em livro de 1960, Brasil século XX (Editora Vitória), assegura o seguinte:
“Legalmente, constitucionalmente [brancos e homens de cor] têm os mesmos direitos e oportunidades. Na prática, o negro, os mulatos encontram no Brasil numerosas limitações. É impossível dizer onde estas são impostas por motivos de ordem racial ou de classe. Porque a quase totalidade da população negra do Brasil pertence às camadas proletárias ou semiproletárias (…) Este desenvolvimento vem aumentar a distância social entre a parcela branca e rica da população e a parcela colorida e pobre. (…) E como o próprio desenvolvimento capitalista favorecerá também a ascensão social de uma parte da população de cor, é provável que esta vá encontrando cada vez maiores obstáculos em seu caminho: nos estabelecimentos de ensino, nas repartições públicas, nos empregos em geral. Quer dizer, o crescimento das barreiras de classe pode determinar um aguçamento do preconceito racial embrionário em alguns setores” (FACÓ, 1960, p. 23-24 – destaques nossos).
Nelson Werneck Sodré, em Introdução à Revolução Brasileira, livro originalmente de 1958 (usamos a edição da Civilização Brasileira de 1967), diz que,
“A circunstância, entretanto, é muito importante pelas suas consequências: tudo o que está por baixo, socialmente, é negro; tudo o que está por cima é branco. O rótulo de cor começa a funcionar, com os seus poderosos e generalizados efeitos. Nesse sentido, devemos considerar bem como, muito depois de ficar libertado da escravidão, o negro permaneceu submetido à violência dos preconceitos, rotulado que estava. E ainda é indispensável considerar, nessa apreciação, um aspecto que tem sido propositalmente omitido: o negro continua a fornecer, puro ou mestiçado, o grosso da massa de trabalho, em nosso país. Se isolarmos uma consideração da outra, correremos o risco de cuidar erradamente o problema: relações de raça jamais podem isolar-se de relações de classe” (SODRÉ, 1967, p. 147 – destaques nossos)
O livro de Sodré oferece outro bom elemento para pensar a questão. Quando Guerreiro Ramos afirma que os “elementos de cor se encontram, de alto a baixo, em todas as camadas sociais”, o objetivo é fazer uma crítica a um livro de Thales de Azevedo. O autor questiona Thales de Azevedo por exibir fotografias em que aparecem negros “médicos, homens de negócio, universitários, pintores” e afins, como se isso fosse um exotismo, um tema pitoresco (RAMOS, 2023, p. 172). É depois dessa objeção que a frase acima é dita. Para alguns pensadores, o fato de existir negros médicos ou advogados era prova da inexistência de racismo no Brasil. Para Guerreiro, isso era fato comum, só confirmando que não existia mais questão de classe na questão racial. Já Sodré faz o debate por outro caminho:
“E existe uma sociologia das exterioridades, profundamente preocupada com os detalhes, com a cor das gravatas, com a forma dos bigodes, com os beirais das casas, e que, em relação ao negro, numa atitude falsamente renovadora, proclamando-se liberal e avançada, cuida seriamente dos doces, da roupa das vendedoras de rua, dos seus toucados, das pequenas peças de cerâmica, rigorosa e psicanaliticamente analisadas, das pesquisas estatísticas a respeito de negros escravos e de negros doutores. Revistas ilustradas e até revistas especializadas, monografias, filmes de cinema, congressos ditos afro-brasileiros, ensaios, e até longos estudos aparecem, focalizando o pitoresco, o anormal, o excepcional do negro. Não é por mera coincidência que a Bahia se torna o centro de gravidade das pesquisas que aparentam rigores metodológicos. À Bahia são levados, então, não apenas turistas, viajantes ilustres, ficcionistas e artistas de todo gênero, mas pesquisadores, sociólogos, antropólogos, que percorrem, atentos e curiosos, desde os terreiros mais conhecidos até os bairros típicos. Para concluir, no fim de contas, aquilo que todos sabemos, que há médicos negros, advogados negros, poetas negros, como se isso representasse emancipação ou escândalo […] Mas persiste a proclamação ostensiva de que não existe problema de raças no Brasil, de que resolvemos tudo e vivemos, de há muito, sem atritos, nesse terreno. Estudiosos de estatística verificam, aparentando surpresa, que entre os negros está um alto coeficiente de criminalidade. Esquecem-se de que, entre os negros, há, realmente, um alto coeficiente de pobreza, e isso não é espantoso porque eles constituem a massa de trabalho, que não tem condições de saúde, de subsistência, de aprendizagem, de morada” (SODRÉ, 1967 [1958], p. 159-60 – destaques nossos).
A temática fica ainda mais fantástica se pensarmos por outro prisma: o Brasil viveu mais de 300 anos de escravismo e realizou uma abolição sem políticas de reparação, como uma reforma agrária. Antes da abolição e após, dominou uma ideologia de superioridade racial que condenava por todos os aspectos a população negra e estimulava a imigração massiva de europeus para branquear a população. Esses imigrantes europeus desfrutavam de vários privilégios sociais e institucionais frente à população negra e “mestiça” na dinâmica concorrencial do incipiente capitalismo brasileiro. Mesmo com o processo de modernização iniciada em 1930, seguiu a ideologia de superioridade racial branca e práticas institucionais de supremacia racial, como a criminalização e perseguição da capoeira, religiões de matriz africana e louvação da eugenia, como pode ser visto no Artigo 138, alínea B, da Constituição de 1934. Mesmo assim, em 1954, 20 anos depois de ser inserida na Constituição Brasileira a eugenia como ideal a ser buscado, sem nenhuma medida específica de progressão econômica para população negra, ela teria experimentado tal nível de mobilidade social e transformação material na sua existência nacional, que o racismo brasileiro era apenas superestrutural ou um problema essencialmente psicológico. É muito difícil acreditar que um pensador tão sério e qualificado como Guerreiro Ramos acreditava nisso!
Se acreditava ou não, nunca saberemos. O que sabemos, pelo que escreveu, é que sua teoria da estética social brasileira alienada, eurocentrada e da brancura como valor máximo, também não tinha conexão com os interesses da classe dominante interna, com o padrão de dominação política e só de forma indireta tinha conexão com o imperialismo. Se para Guerreiro Ramos era fundamental adequar o pensamento sociológico às “tendências de autonomia espiritual e material” do país, a manutenção de tal inadequação, persistindo a estética social alienada, no mínimo despotencializa a emancipação econômica já em curso, favorecendo o imperialismo. Mas essa sentença já é uma tentativa de extrair raciocínio implícito do ensaio em exame.
Lembra-se o leitor que citamos a crítica de Guerreiro Ramos para Alberto Torres? Repetindo o trecho: “negligenciou, portanto, o condicionamento da psicologia do povo brasileiro e de suas elites pelas condições materiais do país e, assim, incorreu em enganos e erros em muitos aspectos do seu diagnóstico e de sua terapêutica do ‘problema nacional’” (RAMOS, 2023. p. 152). O sociólogo baiano negligenciou completamente as condições materiais do país no seu debate sobre a estética social brasileira.
Sem conexão com a dinâmica de acumulação capitalista, a estrutura de classe, os interesses da classe dominante e o sistema de dominação política, a teoria da estética social de Guerreiro Ramos também carece de uma análise dos aparelhos ideológicos de sua produção e circulação. O autor não debate, neste ensaio, a lógica de funcionamento institucional dos sistemas universitários, editorial, jornalístico, partidário, sindical, religioso, militar e afins. O que ele produz é uma história intelectual ou das ideias, sem preocupação com a forma histórico-concreta de produção e circulação dessas ideias.
O sociólogo debate bastante o efeito de prestígio e a força de irradiação das ideias dos centros imperialistas. Chega a citar, rapidamente, agências educacionais e sanitárias estrangeiras. Pronuncia palavras como essas: “embora redigidos por brasileiros, eles [os estudos sobre o negro] se incluem na tradição dos antigos relatórios para o Reino…, ainda que, hoje, o Reino se metamorfoseie na Unesco, sediada em Paris” (RAMOS, 2023, p. 179). Mas não vai além disso. Não temos uma reflexão sobre que aparelhos ideológicos – ou instituições, se preferirem – são as responsáveis pela reprodução do pensamento consular e a manutenção da estética social alienada. Embora a reflexão sobre o efeito de prestígio dos centros imperialistas esteja correta, sem analisar a dinâmica brasileira, a investigação caminha para uma compreensão difusionista, onde o centro difusor irradia a ideia e ela é assimilada, como em um vácuo institucional sem dinâmica própria, no pólo subordinado.
Alguém pode afirmar que em outros livros, como Introdução crítica à sociologia brasileira (1957), O problema nacional do Brasil (1960) e A crise do poder no Brasil (1961), o sociólogo realiza investigações detalhadas sobre os aparelhos ideológicos ou instituições da alienação nacional brasileira, como a estrutura sindical, partidos, campo acadêmico etc. Essa afirmação é verdadeira, mas no ensaio em estudo, tal análise não comparece – e no conjunto de textos do livro Negro Sou, só precária e fragmetariamente podemos achar considerações sobre a questão.
Por fim, fica sem explicação direta porque a reflexão sobre o negro sou como mirada cientificamente privilegiada para compreender a realidade brasileira da questão racial e de nossa identidade nacional tem consequência apenas teórica e epistemológica e não também político-organizativa. Se o negro brasileiro é, como afirma o sociólogo, a nossa “matriz mais importante” e “parametro de realidade nacional”, porque não demandar, também, um papel de liderança do niger sum na condução política do processo de emancipação econômica e construção nacional em curso? – liderança seja a partir de organizações negras específicas, seja no enegrecimento das diversas organizações do movimento nacionalista em curso.
A partir da reflexão de Guerreiro Ramos podemos afirmar que esse protagonismo, com a compreensão correta, não seria fragmentário, parcial, reivindicação grupal, mas expressão por excelência do ser nacional em ato de emancipação. Arrisco dizer, de forma provisória, que Guerreiro parou sua reflexão no “meio do caminho” por receio das consequências que dela poderia extrair – o sociólogo, como sabemos, tinha repúdio aberto a qualquer política antirracista que pudesse ser “agressiva”.
É pedagógico citar um trecho de um clássico escrito de José Carlos Mariátegui, A questão racial na América Latina (disponível em Textos escolhidos, Editora Cio da Terra, 2020), onde o marxista peruano, em 1929, caminhando por um percurso em alguns aspectos parecido com o de Guerreiro Ramos, diz
“O capitalismo, como sistema econômico e político, mostra-se incapaz, na América Latina, de construir uma economia emancipada dos defeitos feudais. O preconceito da inferioridade da raça indígena, permite ao capitalismo um aproveitamento máximo das obras desta raça, e ele não está preparado para abrir mão dessa vantagem, da qual tira tanto proveito (…) A raça tem, antes de tudo, essa importância na questão do imperialismo. Mas também tem outro papel, que impede a assimilação do problema da luta pela independência nacional nos países da América com alto percentual da população indígena, ao mesmo problema na Ásia ou na África. Os elementos feudais ou burgueses, em nossos países, sentem pelos indígenas, como pelos negros e pardos, o mesmo desprezo dos imperialismos brancos. O sentimento racial atua nesta classe dominante num sentido absolutamente favorável à penetração imperialista. Entre o senhor ou o burguês criollo e seus peões de cor, não há nada em comum. A solidariedade de classe se soma à solidariedade de raça ou preconceito para tornar as burguesias nacionais dóceis instrumentos do imperialismo ianque ou britânico. E esse sentimento se estende a grande parte das classes médias, que imitam a aristocracia e a burguesia com desdém pela plebe de cor, embora sua própria miscigenação seja muito evidente” (MARIÁTEGUI, 2020, p. 128-131)
Mariátegui, tal qual Guerreiro Ramos, é um questionador da importação acrítica de teorias dos centros imperialistas, como o conceito de raça do racismo científico. Também entende como fenômeno de alienação da realidade nacional, mas, ao mesmo tempo, colocando-se desde uma perspectiva das classes exploradas, compreende como essa alienação é funcional para a classe dominante interna e o imperialismo, ajudando a soldar a solidariedade racial-classista entre imperialismo, burguesia interna e classes médias.
Mas Guerreiro Ramos, ao contrário de Mariátegui, não busca analisar a questão racial desde uma perspectiva proletária. Como falamos no primeiro escrito dessa coluna, “Guerreiro Ramos não consegue superar um universo de classe média na análise da questão racial e na proposta de uma política antirracista – ou, melhor dizendo, o sociólogo situa-se no lugar político-analítico de classe média negra”. As lacunas, erros, afirmações não provadas e tensões na reflexão do autor são uma tentativa de equilibrar um projeto onde o racismo é denunciado cobrando de vários setores das elites – especialmente a intelectual – uma “suspensão da brancura” e, ao mesmo tempo, uma tentativa permanente de afastar a possibilidade de uma política proletária para questão negra, com a conclusão de que a superação do racismo demanda alterações radicais nas relações de produção, propriedade e poder político. Desde uma mirada analítica da classe média, Guerreiro tenta equilibrar os dois polos em tensão, preservando a unidade nacional contra o imperialismo – o resultado disso, ao final, é a recusa do mecanicismo de vários marxistas, reduzindo a questão racial a uma dimensão de classe, terminando em outro mecanicismo, o que separa radicalmente a questão racial da estrutura de classe e relações de produção.
Não é coincidência que hoje, em correntes nacionalistas progressistas, seja forte a ideia de taxar a luta antirracista de uma “questão identitária” que divide o país e atrapalha a unidade nacional pelo “desenvolvimento” e contra o imperialismo. O problema teórico-político de equacionar uma proposta nacionalista, antiimperialista e antirracista não é fácil e, à espreita, está sempre a tentação de pensar uma “comunidade nacional” onde toda contradição que não seja nação versus imperialismo, seja secundária e não possa ser levada às últimas consequências – seja no plano analítico, seja no plano político.
Para concluir, podemos dizer que esse ensaio de Guerreiro Ramos carrega um potencial de paradigma teórico para a análise da questão racial que não foi plenamente desenvolvido e levado às últimas consequências. Em breve veremos como esse potencial reprimido se expressa em suas reflexões posteriores, como no importante ensaio sobre a Patologia social do “branco” brasileiro.
Até a próxima!