Muita gente comentou – e não foram poucos os que celebraram – a fala do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o reconhecimento da culpa de seu país pela colonização e a necessidade de reparações pelo colonialismo luso. Ministros do governo Lula rapidamente divulgaram declarações sobre o tema e deram a entender que estavam em contato com as autoridades portuguesas neste sentido. Mas pouca gente parou para perguntar quem é essa figura que atualmente ocupa a cadeira presidencial no Palácio de Belém e, portanto, como deve ser entendida a bombástica declaração sobre reparações coloniais. Ao deixar de fazê-lo, quase ninguém no Brasil se apercebeu da grande verdade por trás das palavras do Chefe de Estado português: nada.
Como dizem os americanos: a big nothing burger (Um grande hambúrguer de nada).
Sim, nada daquilo que foi dito deve ser levado a sério. As declarações foram feitas em um jantar semiformal com correspondentes estrangeiros em Portugal, por ocasião das comemorações do 25 de Abril, data cívica mais importante do país ibérico. Marcelo falou ininterruptamente por quatro horas sobre os mais variados temas. Em cada um deles soltou declarações não menos bombásticas, ao menos para o debate público doméstico em seu país.
Em primeiro lugar, revelou que havia “cortado relações” com seu filho Nuno Rebelo de Sousa, pivô de um mega escândalo que corrupção, abuso de poder e tráfico de influência que envolveu o nome do pai-presidente: a pedido do filho, alguém do Palácio de Belém conseguiu furar a fila de pacientes destinados a receber um tratamento especial para uma doença rara para duas bebês gêmeas, brasileiras, filhas de amigos milionários de Nuno. Marcelo, portanto, está sob forte pressão política, tendo colocado toda culpa no filho por usar seu nome indevidamente. O “caso das gêmeas brasileiras” não sai do ar desde então.
Pressão esta que só aumentou com o envolvimento presidencial na trama jurídico-política que levou à queda do primeiro-ministro socialista António Costa no fim do ano passado. A chamada Operação Influencer foi uma espécie de mini Lava-Jato lusitana, um caso explícito de lawfare destinado a destruir um governo que tinha conquistado maioria absoluta em eleições recentes. No dia em que foi deflagrada a operação (com forte apoio midiático), o presidente forçou o primeiro-ministro a renunciar, antes mesmo de serem apreciadas as acusações lançadas pelo Ministério Público contra o chefe do governo. Resultado: novas eleições foram convocadas, nas quais o Partido Social Democrático, de centro-direita (do qual Marcelo faz parte) conseguiu vencer por ínfima margem e, assim, formar um governo minoritário. Jogada de mestre? Nem tanto. Logo em seguida ao pleito, o Judiciário rejeitou as acusações contra Costa como meras elucubrações dos procuradores portugueses, que só tinham convicções, mas não tinham provas… Diante da saia-justa, o presidente fez o que sabe de melhor: botou a culpa em terceiros. Neste caso, na Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, numa tentativa desesperada de se desvincular do caos político fabricado por ele e seus aliados conservadores. No jantar, chamou-a de “maquiavélica” na frente de todos os jornalistas presentes: o que é verdade, mas abre uma crise institucional entre dois poderes!
O presidente estava inspirado. Prosseguiu sua noite verborrágica com ataques racistas que geraram perplexidade em seu país (e que no Brasil seriam crime). Afirmou que António Costa era “lento” por ser “oriental”. Atenção, trata-se do primeiro e único Chefe de Governo português não-branco até hoje, cuja família provém, em parte de Goa, na Índia, antiga colônia lusitana na Ásia e, noutra parte, de Moçambique, na África. Não satisfeito, Marcelo ainda referiu-se pejorativamente ao atual primeiro-ministro, Luís Montenegro – seu correligionário no PSD – afirmando que ele tinha mentalidade “rural”, num grosseiro elitismo de alguém que se crê parte da intelligentsia urbana civilizada: professor de direito na Universidade de Lisboa, comentarista político na televisão e, finalmente, presidente da República. Do alto de sua vaidade ilimitada, até seus colegas de partido lhe parecem uns caipiras despreparados.
Nesta altura, os jornalistas já não sabiam se riam, choravam ou continuavam a twittar incrédulos aquilo que ouviam (e gravavam). De repente, até seus próprios netos foram vítimas da língua afiada do presidente, que afirmou ter um preferido dentre os quatro (que foi nomeado). Uma humilhação pública e constrangedora – e desnecessária – para com os outros três netos do mandatário, que já posaram junto ao avô em capas de revistas e coisas do tipo. Onde ele queria chegar? Ninguém sabia. Foi então que soltou a pérola sobre reparações do colonialismo, como se não houvesse mais nada a dizer capaz de chocar a sua audiência seleta.
É um contexto mais do que relevante para entender (ou não) as fortes declarações do presidente que chegaram ao Brasil. Um pouco de atenção bastaria para deduzir que nada daquilo era sério, mas o próprio Marcelo confirmou a sua falta de seriedade no dia seguinte, ao desdizer publicamente suas declarações da véspera. Essa segunda notícia não chegou ao Brasil.
Assim, é também constrangedor que figuras públicas, personalidades políticas e intelectuais brasileiros continuem a tratar de um não-tema como este. Não haverá reparação nenhuma. Marcelo foi massacrado por todo o espectro político português por seu show de comédia política irresponsável. Aliás, Marcelo este que tem ligações de berço com a ditadura salazarista, sendo filho de um importante ministro do antigo regime fascista (incluindo o cargo de Ministro do Ultramar, ironicamente) e que lhe batizou em homenagem ao herdeiro político de Salazar, Marcello Caetano, contra quem foi feita a Revolução de 25 de Abril de 1974. Trata-se de um legítimo representante das elites conservadoras que tanto lucraram com o colonialismo português. Alguém que está em franco declínio político e apela até mesmo para suspeitas sobre sua própria sanidade mental a fim de se esquivar das responsabilidades por seus atos a cada dia mais impróprios: já até comentou sobre os decotes nos seios de uma menor de idade na mesma tarde em que chamou uma cidadã de gorda, tudo na frente das câmeras. Vale tudo para tentar desviar a atenção do público das suspeitas que lhe recaem. Mas os danos causados à sua imagem já não podem ser objeto de reparações.
O que pode e deve ser reparado, neste caso, é apenas a desatenção daqueles no Brasil que tomaram pelo seu valor de face as mais novas loucuras, friamente calculadas, de um presidente fanfarrão em fim de mandato, com o ego no chão e com o traseiro na reta de fartas acusações.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.