Na manhã do dia 10 de setembro de 1973, o presidente Salvador Allende convoca para uma reunião Fernando Flores e Raúl Espejo, diretores responsáveis pelo projeto de “internet socialista” do governo. O Projeto Cybersyn como o presidente conhecia já estava pronto desde agosto, conforme requisitado. Faltava, no entanto, um último detalhe importante: fazer o traslado do opsroom, o centro de operações do sistema, para os subterrâneos do Palácio de La Moneda. Uma tarefa para a qual era necessário o apoio das Forças Armadas, instituição que, àquela altura, já não era mais confiável.
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Em 1973, Allende criava projeto de 'internet socialista' para (tentar) evitar golpe
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Bombardeio sobre o palácio La Moneda, sede presidencial chilena, em 11 de setembro de 1973
“Allende tinha muitas esperanças sobre esse projeto. Para alguns interlocutores, chegou a dizer que, com ele, evitaria um possível golpe de Estado, combatendo com mais eficiência qualquer tentativa de desestabilização da economia, e justamente esse era um dos objetivos para o qual estava desenhado. Aquela reunião foi um pouco melancólica, porque ele lamentava que, quando o projeto finalmente estava pronto, já não havia tempo para colocá-lo em prática”, recorda Raúl Espejo a Opera Mundi.
O matemático boliviano também conta que Allende teria dito, naquela reunião, que “se nos próximos dias acontece um golpe, eu não saio vivo daqui”. No dia seguinte, o presidente chileno estava justamente no mesmo Palácio de La Moneda, enfrentando o bombardeio dos Hawker Hunter da Força Aérea chilena. Fernando Flores era um dos ministros que o acompanhavam. Raúl Espejo e Guillermo Toro estavam no edifício da Corfo (Corporação de Fomento da Produção, braço do governo responsável por desenvolver o projeto SYNCO), enfrentando os ataques com uma pistola de baixo calibre e uma espingarda de chumbinho.
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Quando puderam finalmente sair do edifício, uma kombi dos Carabineros, a polícia militarizada do Chile, os esperava, até que um inesperado ataque a tiros de metralhadora — “que talvez tenha sido fogo amigo do Exército, e que nos salvou nesse momento”, segundo Toro — dispersou os policiais. Os dois técnicos, junto com outras 20 pessoas, conseguiram sair do edifício e do perímetro do centro de Santiago onde ficam os prédios governamentais.
Depois do golpe
Os dias seguintes foram menos tensos para Toro, que, por não possuir filiação partidária, pôde inclusive voltar ao edifício da Corfo e recuperar alguns pertences — e guardar outros para ter alguma lembrança daquele que caracteriza como o projeto mais importante de sua vida: “Que fosse um cartão perfurado, algo que pudesse provar que aquela história foi real”.
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Numa dessas visitas, ele encontrou um dos garotos que trabalhava tirando cópias quando o projeto estava em desenvolvimento. Dessa vez, vestia farda e trazia uma patente de sargento. Era um dos responsáveis por coordenar os trabalhos de destruição do projeto. “Sobrou muito pouca coisa. Algumas pessoas tentaram aproveitar parte do projeto, talvez esse sargento que, por ser infiltrado, sabia mais como ele funcionava, mas não conseguiram entender o projeto como um todo, e no final aquilo não lhes servia. O Exército já tinha seu próprio aparato de informação, que era bastante funcional para os seus propósitos”, comenta Toro.
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Projeto do que seria a opsroom, centro de operações do sistema — faltava acesso direto ao Palácio de La Moneda
Por sua parte, Fernando Flores foi um dos sobreviventes do bombardeio ao Palácio de La Moneda. Capturado pelo Exército, passou por três diferentes centros de detenção, antes de ser liberado por uma missão humanitária da ONU (Organização das Nações Unidas), em 1976. Viveu 20 anos nos Estados Unidos, onde continuou seus estudos sobre cibernética. Voltou ao Chile depois da redemocratização, e apesar da pouca participação na política partidária, conseguiu se eleger senador pela província de Tarapacá, no extremo norte do país. Ele se nega a dar entrevistas sobre o Projeto Cybersyn, e também sobre seus estudos nos Estados Unidos.
Depois do 11 de setembro de 1973, Guillermo Toro e Raúl Espejo conseguiram ficar ainda mais um ano no Chile. Finalmente tiveram que se exilar, em 1974. Toro foi para a Venezuela, onde começou a desenvolver projetos para organismos internacionais, como a OEA (Organização de Estados Americanos). Voltou ao Chile em 1997, e desde então trabalha na Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe).
Stafford Beer estava em Londres quando soube da queda do governo de Allende, que o afetou a ponto de levá-lo à depressão. Anos depois, ajudou Raúl Espejo a conseguir asilo e trabalho no Reino Unido, onde o boliviano vive até hoje. Beer faleceu em 2002, aos 75 anos. Os dois livros sobre o projeto (o do escritor Jorge Baradit e o da professora Eden Medina) asseguram que passou o resto de sua vida lamentando ter perdido a chance de revolucionar o mundo através do SYNCO.