A gravidade da situação torna o mundo extremadamente pesado. Poucas vezes os presságios de um desastre global pesaram tanto, e não é para menos. O peso do mundo contagia o pessimismo da humanidade, convencida da inexorabilidade de uma nova Guerra Mundial. Tudo faz acreditar que essa guerra inevitável é produto do destino, da fatalidade, mas o futuro, como diria Weber, nunca é necessário; sempre é contingente para permitir a decisão como âmbito específico da política. No caso de uma Guerra Mundial, não será o destino que a imporá à humanidade, mas a decisão daqueles irresponsáveis que, tendo o poder de impedi-la, não o fazem.
Por uma decisão discutível, o império decadente, em lugar de tentar melhorar sua posição para se tornar competitivo, propõe abrir mais frentes de guerra pelo mundo como se fosse um leque madrilenho. Não basta guerrear até o último ucraniano, nem manter hipocritamente sua indireta presença em Gaza, capaz de afundar de vez a ONU e os organismos internacionais de justiça: também brinca com Taiwan jogando gasolina no Pacífico e crava suas garras no Quênia, tentando não perder de vez o continente Africano.
O fato de que a Terceira Guerra Mundial não seja inexorável, mas apenas contingente, e que dependa da decisão de alguns poucos governos, sinaliza para uma saída pela decisão, isto é, pela política, que consiga retirar o mundo da direção do desastre nuclear.
Vozes da sociedade civil contra a guerra já se ouvem pela Europa e refletiram nos resultados eleitorais que levaram a topografia política ainda mais para a direita, mas paradoxalmente mais nostálgica do Estado de bem-estar social e questionadora do atlantismo e suas guerras. Pode-se dizer que, embora preocupante pela radicalidade ideológica dos vencedores, o grande perdedor das eleições para o parlamento europeu foram os “partidos da guerra”; aqueles partidos cujos líderes pretenderam manter uma preferência eleitoral pelo medo da guerra. Essas vozes, que levaram Macron a antecipar as eleições que poderão dar a vitória a Le Pen e que podem reverberar na Alemanha, não aceitam a degradação econômica e social das populações nacionais para defender a Ucrânia numa guerra perdida, enquanto são invadidos por refugiados ucranianos que já incomodam.
Um condicionante que pode levar as partes beligerantes à mesa de negociações é a eminência da contraofensiva de verão, pacientemente preparada pelos russos e angustiantemente esperada pelo enfraquecido exército ucraniano. A ajuda prometida e já decidida pelo Congresso estadunidense talvez não chegue a tempo ou não seja suficiente para parar o ímpeto das forças russas. Com efeito, o armamento requerido para frear o avanço russo não chegará todo junto e de uma vez. Por um lado, porque o estoque estadunidense para alguns produtos necessários está baixo ou em processo de industrialização. O preço do armamento – objetivado pela avidez da indústria de armamento, orientada pelo ânimo de lucro mais do que pela efetividade em combate – dissolve o esforço econômico da ajuda em poucas das peças necessárias para contrabalancear o dispositivo russo, de peças baratas e eficientes, produzidas por uma musculosa indústria que opera incansavelmente na orientação da eficácia na conjuntura do combate.
Por outro lado, como já apontou Clausewitz tentando distinguir a guerra absoluta (puramente ideal) da guerra real, a decisão não se alcança num único golpe nem toda a força pode se reunir de uma vez para o combate. Em efeito, não há como colocar todo o material solicitado pela Ucrânia em uma única partida, mas apenas em várias. A própria situação de combate indica que deve ser entregue em múltiplas partidas e preferentemente repartidas em diferentes locais para não facilitar sua destruição pelos russos. Uma grande concentração de tropas e/ou armamento seria um convite para o emprego de uma bomba nuclear táctica por parte da Rússia.
Com toda a ajuda prometida, e se de fato se concretizar a tempo, as depauperadas forças armadas ucranianas, ainda que continuem a receber o apoio material e em combatentes dos países da OTAN, apenas conseguirão retardar o avanço das tropas russas, mas não detê-las, o que significa que a Ucrânia continuará a perder terreno para Rússia. Terreno esse que dificilmente será devolvido nas eventuais negociações de paz. Para qualquer cálculo racional, a prolongação da guerra significa maior perda de território por parte da Ucrânia e um melhor posicionamento estratégico da Rússia para sentar-se à mesa de negociação. A possibilidade do exército russo abrir uma frente no Norte, saindo da Bielorrússia pela fronteira entre a Ucrânia e a Polônia e dissuadindo esta última de tentar abocanhar parte do território ucraniano, significará uma maior perda de terreno estrategicamente operacional para receber auxílio material e humano pela sua fronteira mais propícia para isso. Atender a abertura de uma nova frente debilitará o dispositivo ucraniano, que terá que reposicionar suas tropas, o que poderá facilitar o avanço do exército russo pela costa do mar Negro e quiçá chegar a Odessa, fechando a saída marítima da Ucrânia e deixando-a sem portos para seu comércio exterior.
Um largo preparo da tropa russa, a surpreendente aceleração produtiva da indústria de armamento da Rússia, a reconstrução do desenho logístico e o aproveitamento estratégico do êxito das últimas operações funcionam como uma poderosa mola dessa contraofensiva de verão, que pode ser a nota bélica final do último ato da tragédia em curso. O resultado das eleições para a presidência dão a Putin a fortaleza política para garantir o empreendimento bélico na frente ucraniana. A recente declaração de amizade “que vai além de uma aliança” com Xi Jinping dá um fôlego para empreender a contraofensiva de verão e, em contrapartida, oferece certa segurança à China no Oceano Pacífico, onde tem realizado manobras conjuntas ensaiando a interoperabilidade.
Outro elemento que pode funcionar como um freio à louca escalada nuclear pode vir a ser de ordem estratégica, e vinculado à estratégia de dissuasão nuclear. Ela funcionou muito bem durante todo o período da Guerra Fria, sustentada pelo apocalíptico princípio da Mútua Destruição Assegurada (MAD, sua sigla em inglês). O emprego do armamento nuclear por uma potência que o possua não caracteriza uma guerra para merecer o nome de Guerra Nuclear. Tecnicamente, chamamos um conflito bélico como “Guerra Nuclear” quando se trata de um confronto bélico entre duas potências nucleares que usem nele o seu arsenal nuclear. Ainda o mundo não conheceu nada parecido, e essa é uma das condições de possibilidade de estar escrevendo estas linhas. O princípio MAD se manteve ativo durante toda a Guerra Fria e sua capacidade dissuasória funcionou – como toda dissuasão – na ordem psicológica da sociedade. A dissuasão é um fenômeno psicológico. Ela funciona quando o resultado imaginado da operação resulta pavoroso. Assim funcionou durante toda a Guerra Fria; o medo estava profundamente instalado na psique da sociedade mundial. Mas hoje, em que a maioria dos líderes europeus ainda não tinha nascido ou era muito criança na época álgida do terror nuclear, parecem não conseguir imaginar o que é uma guerra nuclear, e não a temem – ou calculam ingenuamente que nenhuma das potências nucleares iniciaria uma guerra dessa magnitude. A dissuasão funciona quando a ameaça do primeiro ataque é crível, mas hoje ninguém parece acreditar nessa possibilidade.
Não obstante, a Rússia plasmou nas suas progressivas doutrinas de emprego do armamento nuclear os casos em que pode ser desencadeado um ataque e a ordem da escalada do tático ao estratégico, mas, embora elas sejam de público conhecimento, parecem não ter sido suficientemente dissuasivas. No ingresso de novos membros à OTAN, Putin ativou o sistema estratégico e aviões nuclearmente carregados voaram na fronteira com a Finlândia, mas tampouco isso surtiu o esperado efeito dissuasório. Finalmente, no último 13 de junho, os Estados Unidos enviaram um submarino de propulsão nuclear para estacionar perto de Cuba como contramedida ao anunciado arribe ao porto da Havana, um dia antes, do navio russo Almirante Gorshkov e o novíssimo submarino nuclear russo Kazan. O estacionamento do armamento nuclear russo tão próximo da Flórida talvez consiga recuperar a credibilidade de um ataque nucelar e, consequentemente, restabelecer a dissuasão.
A presença de armamento nuclear russo a poucos quilômetros de distância dos Estados Unidos da América do Norte é um xeque-mate que, espero, possa ser o que falta para obrigar as partes beligerantes a se sentarem à mesa de negociação e pôr fim a essa guerra. Se esse mecanismo não funcionar, a Rússia ainda pode colocar armamento nuclear em outro país que goze de uma posição geopolítica estratégica, como, por exemplo, o Irã.
A negociação entre Ucrânia (sem Zelensky) e Rússia não implicará na recuperação de território perdido para a Rússia. Obviamente, Putin não negociará território conquistado que já considera russo. A melhor oportunidade de negociação foi em Minsk, um mês depois de ter começado a guerra em 2022, que implicava apenas no reconhecimento dos acordos anteriores, de Minsk em 2014, e que o comediante Zelensky desperdiçou, em notável ignorância da história e de suas consequências.
De uma coisa parece que ninguém mais duvida: é que, se houver uma próxima Guerra Mundial, ela será radioativa e, dado o poderoso arsenal nuclear estocado no mundo, ela será a última, porque não restará mais ninguém para lutar. Todavia, a desinteligência bélica da humanidade pode ser a esperada salvação do planeta Terra – digo isto apenas para terminar esta nota com uma frase de otimismo.
(*) Héctor Luis Saint-Pierre é professor da Unesp, coordenador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e ex-diretor da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É autor de “Max Weber: entre a paixão e a razão” (Editora Unicamp) e “A política armada: fundamentos da guerra revolucionária” (Editora Unesp).