No programa 20 MINUTOS ANÁLISE desta terça-feira (19/04), abordei o que representa a chapa Lula-Alckmin e seus desdobramentos. Os debates sobre a correção ou impropriedade dessa fusão improvável vão perdendo sentido prático. As portas para a polêmica virtualmente se fecharam com a decisão do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, no dia 13 de abril, por 68 votos favoráveis contra 16 contra a formula eleitoral entre o ex-presidente da República e o ex-governador paulista.
Quem quiser derrotar Jair Bolsonaro e retomar o processo interrompido pelo golpe de 2016, terá que votar em Lula com Alckmin, por causa de Alckmin ou apesar de Alckmin. Qualquer outra alternativa levaria a maiores riscos de reeleição do presidente neofascista e de fragmentação da esquerda.
De toda maneira, continua a ser muito importante entender como se chegou a esse acordo político entre antigos arquirrivais e qual o papel que pode ter no cenário político, além das discussões que cercaram esse processo desde o seu início.
Argumentos favoráveis à aliança
Essa história da aliança entre Lula e Alckmin começou há vários meses, como já é sabido, a partir de conversas entre Fernando Haddad, do PT, e Márcio França, do PSB, ambos candidatos a governador de São Paulo. Tudo indica que o socialista teria sido o autor da ideia.
A lógica foi singela e quase aritmética. Se Geraldo Alckmin saísse da disputa paulista, seria mais fácil a unidade de PT e PSB ao redor de um nome único, capaz de vencer tanto o PSDB quanto o bolsonarismo no principal estado do país. Para que isso acontecesse, o ex-governador deveria ingressar no PSB e ser candidato a vice de Lula, o que permitiria ao ex-presidente consolidar o giro ao centro para disputar o Palácio do Planalto contra seu atual ocupante.
Como fogo na palha, esse cálculo se espraiou entre lideranças petistas e passou a orientar as articulações para a campanha de 2022. Os argumentos públicos apresentados em sua defesa foram quatro.
O primeiro: Alckmin poderia trazer para Lula os votos centristas que faltariam para uma vitória no primeiro turno ou para uma passagem mais segura à segunda volta. O segundo: a presença de Alckmin na chapa presidencial ajudaria a inibir a chamada terceira via, incorporando parte desse movimento à própria fórmula liderada pelo petista. O terceiro: por supostamente arrefecer resistências conservadoras, Alckmin seria uma carta relevante no caso de vitória eleitoral, para garantir as condições de governabilidade em um parlamento sem maioria de esquerda. E, por fim, o quarto: com Alckmin fora da corrida para o governo paulista o PT teria a chance, pela primeira vez desde 2002, de ir ao segundo turno no estado, com Haddad, e eventualmente conquistar o Palácio dos Bandeirantes.
As pesquisas ainda não corroboram o primeiro argumento. Lula estagnou nos principais levantamentos desde que a hipótese Alckmin se tornou badalada no noticiário. Tampouco há provas e sinais de que essa aliança tenha feito o petista perder votos, é certo, mas a realidade não confirma, até o momento, que esse acordo com o ex-tucano lhe traga maior apoio nas urnas.
Já o segundo motivo revela certa harmonia com os fatos. A aliança com Alckmin pode ter contribuído para a desidratação da terceira via. Algo prejudicial, no entando, pode estar em curso: com a desmoralização desse campo, votos que eventualmente pertencerias aos seus candidatos podem estar retornando a Bolsonaro, em vez de correr para Lula, o que explicaria parte da sua relativa recuperação nas últimas pesquisas.
A terceira razão somente o futuro poderá comprovar, embora seja prudente uma boa dose de pessimismo. Afinal, Alckmin sempre foi um político de província, sem força própria na vida parlamentar nacional e havia desaparecido do mapa depois de sua catastrófica derrota eleitoral em 2018, quando obteve menos de 5% dos votos para presidente, apesar da enorme aliança ao seu redor e de incomparável tempo na televisão.
Mas o quarto elemento da lógica Alckmin parece fazer todo sentido: sem o ex-tucano na corrida, Fernando Haddad gira entre 30% e 35% das preferências eleitorais e a tendência dominante é que passe ao segundo turno, com inegáveis possibilidades de um inédito triunfo.
Ricardo Stuckert
Diretório Nacional do PT aprovou, por 68 votos favoráveis contra 16 contra, a formula eleitoral entre Lula e Alckmin
Além desses quatro argumentos, os defensores da chapa Lula-Alckmin recorrem a um tranquilizante para arrefecer as críticas de esquerda: um empresário conservador, José Alencar, foi o vice-presidente entre 2003 e 2010, prestando enormes serviços ao governo petista, no qual se alinhava, aliás, com a ala que trombava contra a hegemonia do capital financeiro.
São duas as respostas possíveis a esse raciocínio. A primeira, de que o acerto na aliança com Alencar não encobre a tragédia política do pacto com Michel Temer, que lideraria a derrubada da presidente Dilma Rousseff.
A segunda, de que Alckmin – ao contrário do antigo vice de Lula –, não fez qualquer movimento público de ruptura ou crítica em relação às ideias neoliberais. Tampouco reviu sua participação destacada no golpe de 2016 e no apoio à prisão de Lula pela Operação Lava Jato. Se é certo que ele saiu do PSDB, será que há provas de que o PSDB saiu dele? Quanto a pertencer ao PSB, lembremos que esse partido também votou pelo impeachment de Dilma e, como Alckmin, vários de seus parlamentares têm chancelado as reformas liberais de Temer e Bolsonaro.
Esse choque de argumentos, no entanto, somente fica mais claro se o entendermos como parte de um embate mais profundo, dentro do PT e do conjunto da esquerda, sobre a tática política que deveria ser seguida, entre frente ampla e frente de esquerda.
Tática da frente ampla
A frente ampla é a ideia de que, apesar de ser uma ramificação do neoliberalismo, o bolsonarismo corresponderia a um processo semelhante ao fascismo. Por isso, o combate a Bolsonaro, escolhido como prioridade, não poderia estar condicionado à luta contra o neoliberalismo, colocada em um segundo plano para ser possível reunir todas as forças que tenham como princípio a defesa do regime político da VI República, desenhado pela atual Constituição.
Esse arco de alianças, que normalmente poderia se compor em caráter provisório, no segundo turno, deveria ser antecipado, de acordo com seus defensores, para a primeira volta. Alegam que esse movimento tornaria viável a vitória em primeiro turno ou melhoraria muito as condições de disputa em eventual segunda rodada, além de supostamente criar um bloco de governabilidade mais sólido, com compromissos previamente estabelecidos.
Nessa lógica, de frente ampla, é que deve ser entendida a chapa Lula-Alckmin, com um forte deslocamento do PT ao centro, para abrigar parte desse segmento na coalizão liderada por Lula, sem ter como marca de corte o neoliberalismo ou o golpe de 2016, nem sequer a Operação Lava Jato, mas essencialmente a oposição ao neofascismo bolsonarista.
A essa concepção se contrapõe, como tática, a frente de esquerda, cujos defensores partem do pressuposto de que seria grave erro dissociar a luta contra o bolsonarismo do combate ao neoliberalismo. Reduzir o objetivo tático à derrota de Bolsonaro não apenas tornaria mais difícil romper com o modelo neoliberal como também poderia levar à perda de votos: a questão democrática teria pouco impacto nas classes trabalhadores.
Quem defende a frente de esquerda também analisa que o esfarelamento dos partidos dito centristas, desde 2018, teria aberto uma janela de oportunidade para fazer o movimento oposto ao proposto pelos frente-amplistas: ao invés de mover a esquerda ao centro, atrair massas de eleitores centristas à esquerda, a partir de uma forte polarização programática e de uma potente mobilização popular como espinha dorsal da campanha. Consideram que, para fazer essa investida, seria necessária a máxima identidade de esquerda possível, no primeiro turno, para despertar um sentimento radical de mudança, deixando para o segundo turno eventuais acordos que ampliassem a frente contra Bolsonaro.
Consideram, por fim, que uma frente de esquerda traria melhores resultados nas eleições parlamentares, com Lula livre para pedir voto apenas a candidatos de seu campo político – PT, o PCdoB e PSOL –, o que seria decisivo para as condições futuras de governabilidade.
Não dúvidas, porém, que atualmente prevalece, dentro do PT e da esquerda, a tática de frente ampla. Sob a sua batuta está sendo formada a chapa presidencial e será dirigida a campanha presidencial de 2002.
A questão Alckmin já está resolvida. Agora, a polêmica se desloca para o programa. Também na última reunião do Diretório Nacional do PT, ao se discutir os itens programáticos para a federação com PCdoB e PV, foram abandonadas várias formulações do Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil, aprovado em 2020. A carta-programa da federação, por exemplo, não fala de revogar a independência do Banco Central, abolir o artigo 142 da Constituição ou abrir um novo processo constituinte.
Poderíamos ter, nas eleições desse ano e no governo, uma situação na qual a aliança corresse para o centro, com Alckmin e outros mais, mas o programa se mantivesse à esquerda, nos termos em que foi aprovado há dois anos pelo PT?
Essa é a principal dúvida do momento. Cresce a pressão sobre o PT e Lula para moderarem o programa e circunscrevê-lo apenas ao propósito da frente ampla: derrotar Bolsonaro e restaurar plenamente o regime político estabelecido pela Constituição de 1988, mas sem colocar em xeque os fundamentos do modelo neoliberal ou avançar para um outro tipo de sistema político lastreado pela radicalização da democracia.
Há quem defenda que, agora, o que importa é apenas tirar Bolsonaro, o resto a gente vê depois. O problema é que a política, além de não ser aritmética, tampouco se desenvolve uma linha de tempo pré-determinada. Um primeiro passo mal dado pode quebrar a perna do caminhante e permitir que seja ultrapassado por seus concorrentes.