A pandemia da covid-19 chegou ao mundo, ao Brasil e à Paraíba com característica muito marcante, o terror e o medo que aplacou em todos, potencializando ainda mais a pressão que acompanha o dia-a-dia dos gestores de saúde.
Esse terror e medo tomou conta dos profissionais de saúde, que se viram diante de uma guerra sanitária contra inimigo desconhecido, tendo que ser os guerreiros da sua linha de frente, em função do lugar em que estavam.
Diante da avalanche de informações que chegavam dos outros países, dos altos índices de contaminação dos profissionais da saúde, das incertezas, em Conde senti uma forte pressão deles pela autoproteção, pauta legítima. Não foi à toa que uma das nossas primeiras ações foi adquirir equipamentos de proteção individual (EPI) e material de limpeza, focando na proteção dos trabalhadores e por conseguinte, também dos usuários. Diga-se de passagem que o uso de EPIs veio com a pandemia para ficar no dia-a-dia. Mas a autoproteção solicitada no início foi muito grande também no que se refere ao afastamento de suas funções, para isolamento social em casa, diante de inúmeras situações específicas particulares de cada um. Esse foi meu primeiro grande momento de pressão.
É evidente que os trabalhadores que se enquadravam nos grupos de risco deveriam ser afastados, e nesse sentido fizemos em Conde. Mas as situações específicas, que também requeriam algum tipo de atenção e análise, começaram a se proliferar. O fato de ter filhos crianças, o fato de morar com um idoso, o fato de morar em cidades outras em que a pandemia estava mais avançada, enfim, a cada dia aumentavam os pedidos pela proteção em casa, de forma remunerada, o que deixaria vago uma função de saúde necessária.
Não é nada fácil dizer não, ainda mais no tumulto inicial dessa pandemia. Tive divergências com pessoas da gestão da Secretaria de Saúde que eram muito próximas no engajamento das ações, que me causaram muitas dificuldades.
Mas como gestora da Saúde, meu dilema era: como combater numa guerra sanitária sem soldados? E além disso, como não os ter ao meu lado, no momento em que a atuação em conjunto era ainda mais necessária?
Um dos caminhos usados para minimizar esse medo e essa pressão foi solicitar que os pedidos de afastamento fossem formalizados e avaliados pela Secretaria de Administração, na qual existe a Junta Médica. Dessa forma, cada caso teria uma avaliação técnica médica objetiva.
Outro caminho foi mesmo o convencimento e a neutralização do discurso do medo, tão comum em alguns profissionais de saúde que estavam em outras linha de frente de combate à covid-19. Não havia como recuar num momento em que a saúde era chamada a proteger a sociedade.
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Para retribuir a empatia e coragem desses trabalhadores é necessário engrossar o debate sobre a desigualdade
O fato é que muitos profissionais de Saúde continuaram com medo ao atuar diariamente, muitos adoeceram, foram afastados, curaram-se e voltaram para a linha de frente. Não raro recebo mensagens de manhã falando da paúra que acomete determinada profissional em ir trabalhar, ou o cansaço imenso por conta de um plantão num hospital de referência pra covid-19 na noite anterior, ou da suspeita de estar com a covid-19, em função dos sintomas de síndrome gripal. Enfim, esse terror grande inicial continuou a estar presente na vida cotidiana dos trabalhadores da Saúde, que foram e estão aprendendo a lidar com ele.
Ao mesmo tempo em que esse terror os acompanha, impressiona-me a coragem que eles têm em lidar com ele e trabalhar. É impressionante como muitos enfrentam diariamente o medo com a coragem e o amor ao próximo, que acessa os serviços de saúde justamente para receber o cuidado necessário. Empatia é a palavra que define os profissionais de saúde nesse momento tão delicado pelo qual o mundo passa.
Mas para além do agradecimento a esse gesto valioso, grandioso, nobre deles, o trabalho dos profissionais de saúde traz à tona a importante discussão sobre a desigualdade presente nas profissões da saúde no que se refere ao seu reconhecimento e sua valorização profissional. Falo dos seus vencimentos e status profissional.
Assim que assumi o cargo de Secretária da Saúde, surpreendi-me com a importância da enfermagem nos serviços de saúde. São as enfermeiras e enfermeiros os principais gerentes dos serviços, aqueles que promovem a interligação entre os demais profissionais e que dialogam com os usuários. Eles estão no acolhimento, na atenção, no transporte dos usuários, na vigilância em saúde, na promoção, na rede de frio, enfim, em todas as dimensões do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas essa importância deles não acompanha sua contraprestação salarial. Essa mesma situação repete-se em outras categorias da política de saúde, na qual a profissão melhor valorizada são os médicos e médicas. Se forem especialistas, maior valorização ainda. Todos são importantes em medidas diferentes e de forma complementar, mas a realidade da política salarial não acompanha essa importância.
Como gestora da Saúde, não falta vontade de realizar a melhoria salarial desta e de outras categorias profissionais. Mas querer nem sempre é poder na Administração Pública.
É importante ressaltar que essa situação de desigualdade entre as profissões da saúde decorre da correlação de forças da sociedade no âmbito nacional, da atuação mais ou menos efetiva dos sindicatos e de conselhos de classe, de questões de classe, do financiamento da Saúde e das regras atinentes à Administração Pública. Os municípios têm pouca possibilidade de mudar radicalmente, em âmbito local, grandes problemas de perspectiva nacional.
Para haver qualquer decisão no sentido de majoração, faz-se necessário que haja mais recursos financeiros para o Sistema Único de Saúde (SUS). Não adianta aprovar um piso salarial que quadriplica o valor do salário base de uma das categorias, se os municípios não tiverem condições de realizar esse pagamento. Para isso, portanto, é necessário pressionar por mais recursos financeiros para o SUS, aumento dos atuais 15% vinculados da arrecadação dos municípios para a saúde, majoração das transferências federais, a repactuação da distribuição dos recursos ou cobrança dos impostos em função da readequação do Pacto Federativo, como também repensar regras que impactam na possibilidade desse pagamento, como o limite de gastos com pessoal da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Desta forma, se a sociedade brasileira de fato quer reconhecer o trabalho dos profissionais da saúde, estes que vêm cuidando dela e de seus membros durante a pandemia, precisa engajar-se e escolher representantes na política que façam essa defesa. Agradecer com flores, pizzas, afetos é simpático. Mas para retribuir a empatia e coragem desses trabalhadores, é necessário engrossar o debate sobre a desigualdade e sobre a necessária valorização das profissões no âmbito da saúde. Sem isso, a gentileza individual e esporádica perde-se no tempo e no espaço, e a desvalorização e a desigualdade persistem.
*Renata Martins Domingos é secretária de Saúde da Prefeitura de Conde, na Paraíba