Recentemente, em junho, o vigésimo aniversário da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) não ganhou maior destaque nas principais páginas do noticiário político ocidental. A mídia brasileira, aliás, tem sistematicamente ignorado o assunto. O histórico e relevância desta organização é igualmente negligenciado nas principais publicações do campo das Relações Internacionais e demais áreas de Humanidades vinculadas ao estudo da política internacional no Ocidente. É evidente que a visibilidade está aquém de sua centralidade no jogo político global. Afinal trata-se de um bloco que conta com quatro potências nucleares, sendo duas destas membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.
A OCX[1] é uma entidade intergovernamental permanente, cuja criação foi anunciada em 15 de junho de 2001. Sua motivação inicial estava estritamente relacionada com o necessário tratamento político multilateral das questões securitárias da região, tendo como mote o combate aos ‘três males’ (separatismo, terrorismo e fundamentalismo). Já seu processo decisório, é governado por consenso, estruturado por dois órgãos permanentes: o Secretariado em Pequim e a Estrutura Regional Antiterrorista em Tashkent. Além disso, o Conselho de Chefes de Estado e o Conselho de Chefes de Governo da SCO (HGC) se reúnem uma vez por ano para discutir a estratégia de cooperação multilateral da organização e suas áreas prioritárias de atuação.
A OCX, herdeira do antigo grupo dos Cinco de Xangai criado em 1996, hoje é composta por nove membros (China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão, desde 2001; Índia e Paquistão a partir de 2017; e o Irã, a partir de 2021). Além disso, conta com três observadores (Afeganistão, Bielo-Rússia e Mongólia) e nove parceiros de diálogo (Azerbaijão, Armênia, Camboja, Nepal, Turquia, Sri Lanka, Arábia Saudita, Egito e Qatar). Tamanho o peso político, econômico e demográfico do bloco, seus países-membros respondem por mais de 70% do território eurasiático, quase metade da população mundial e mais de 30% do PIB mundial.
O mais recente encontro, a 21ª Reunião do Conselho de Chefes de Estado da OCX, ocorrida em setembro de 2021, também foi ignorada pelos noticiários da grande mídia ocidental. Entretanto, a cúpula foi de grande importância para os imbricados rumos da geopolítica global, marcando o ingresso do Irã como membro-permanente da organização, após constar como membro-observador do organismo desde 2005, e candidato ao ingresso desde 2008. Tal evento trata-se, portanto, de um considerável aprofundamento da aproximação do país persa para com as dinâmicas eurasiáticas lideradas pelo eixo sino-russo.
O fato é que quanto mais os EUA e seus aliados aprofundaram, nos últimos anos, o cerco geopolítico e geoeconômico ao Irã, maior foi o crescimento da sua corrente de comércio e de investimentos da China[2]. A conclusão do acordo bilateral, firmado em 2021, prevê um investimento chinês em território iraniano da ordem de 400 bilhões de dólares, distribuídos ao longo de 25 anos[3]. Assim, além de contribuir com a segurança energética chinesa, o Irã também se soma aos projetos de espraiamento da Iniciativa do Cinturão e Rota, a Nova Rota da Seda chinesa.
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Visibilidade da OCX está aquém de sua centralidade no jogo político global; trata-se de um bloco que conta com quatro potências nucleares
A questão central desta cúpula, contudo, voltou-se para a retirada precipitada das tropas dos EUA e da OTAN do Afeganistão, e seus respectivos desdobramentos securitários para a região. Os países da OCX se manifestaram no sentido de buscar a construção de consensos e reunir esforços para empurrar a situação afegã em direção à estabilização do cenário regional. O representante chinês, Wang Yi, afirmou que “como iniciadores da questão afegã, os EUA não podem simplesmente ir embora, criar mais problemas para o governo afegão e despejar o ‘fardo’ nos países da região”[4].
Dessa forma, o Afeganistão sob o governo Talibã se torna uma prova de fogo para as movimentações políticas da OCX. O país está envolvido com a organização desde 2005, quando se estabeleceu o grupo de contato OCX-Afeganistão, suspenso em 2009; em 2012 se tornou membro-observador; e em 2015 assinou um protocolo com a Estrutura Regional Antiterrorista e se candidatou ao ingresso como membro pleno do grupo. Os membros da organização enfatizaram a necessidade de o território afegão deixar de abrigar qualquer força insurgente ligada ao terrorismo, ao separatismo e ao extremismo, com especial alusão ao Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, ao Tehreek-e-Taliban Pakistan, ao Estado Islâmico e às demais organizações afiliadas da Al Qaeda. A China, em especial, tem profundas preocupações com a desestabilização regional e seus impactos sobre Xinjiang. Para tanto, destacou a importância de trabalhar em conjunto para impulsionar o processo de reconciliação nacional, contribuindo para tornar o Afeganistão um país desenvolvido, independente e estável, respeitando os assuntos políticos internos dos demais países da região.
Parece evidente que embargos econômicos e intervenções militares, as tradicionais estratégias estadunidenses para lidar com os Estados “párias”, não têm resolvido situações políticas e sociais complexas tais como a do Afeganistão. A solução chinesa, por sua vez, passa por engajar Cabul, forçando a moderação do novo governo em troca de reconhecimento político e cooperação econômica e institucional. Nesse sentido, cabe destacar que o Corredor Econômico China-Paquistão (CECP)[5] é um dos mais avançados da Nova Rota da Seda chinesa, e pode facilmente ter seus efeitos ampliados para a órbita do país vizinho, principalmente tendo em vista que o solo afegão é rico em terras raras, com depósitos de minerais e metais estratégicos avaliados em mais de US$ 1 trilhão[6], dentre os quais o lítio. É nesse contexto que Pequim anunciou recentemente uma ajuda de US$ 31 milhões para alimentos e vacinas para o novo governo afegão enfrentar a crise humanitária[7]. Considerando que mais de 60% do comércio afegão já se dá com os países-membros da OCX, o custo para Cabul confrontar os objetivos estratégicos do arranjo regional tende a ser, portanto, demasiadamente elevado.
Paralelamente à retirada do Afeganistão, os EUA têm buscado fortalecer a relevância do bloco QUAD, também conhecido como o Diálogo Securitário Quadrilateral, bloco formado por Austrália, Índia, Japão e os próprios EUA, que rivaliza com os intentos chineses de protagonizar os arranjos políticos multilaterais orientais. Todavia, tal estratégia de Washington parece insuficiente para confrontar a robusta dinâmica de cooperação política, integração de infraestrutura e desenvolvimento econômico regional liderada por Pequim, tais como a OCX, a Nova Rota da Seda e a Parceria Regional Abrangente (RCEP), entre outras.
Resumidamente, os recentes acontecimentos no Afeganistão e nos rumos dos arranjos políticos multilaterais em questão sinalizam o impulsionamento dos efeitos gravitacionais geoeconômicos e geopolíticos da China na região. Assim, indicam mais um largo passo para a consolidação de um novo sistema sinocêntrico e reafirmação da Nova Rota da Seda como o epicentro das movimentações em prol de um projeto chinês de globalização, alternativo ao da ordem neoliberal regida pela unipolaridade estadunidense. E na medida em que a China amplia sua posição central nas redes comerciais e de investimento na grande região asiática e no mundo, mais onerosa se torna a tarefa de Washington para sustentar seus aliados e preservar sua projeção não apenas na Eurásia, mas também no conjunto do sistema internacional. Resta, pois, saber o quão errática e disfuncional será o comportamento de um hegemon (EUA) assustado com desafios e mudanças que lhe escapam o controle.
*Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política pela UFRGS. Atualmente é professor de Geografia do Colégio Militar de Porto Alegre e professor convidado da Especialização em Relações Internacionais – Geopolítica e Defesa, da UFRGS. Autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, Juruá, 2011.
*Tiago Nogara é doutorando em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP).
[1] Ver site oficial da organização: http://eng.sectsco.org/about_sco/
[2] Ver artigo que publicamos sob o título de “O cerco multidimensional à Teerã e a aproximação Sino-Iraniana”
[3] Ver reportagem no The New York Times: https://www.nytimes.com/2021/03/27/world/middleeast/china-iran-deal.html
[4] Ver comunicado oficial intitulado “Organização de Cooperação de Xangai realiza reunião de chanceleres sobre questões afegãs”: https://www.fmprc.gov.cn/mfa_eng/zxxx_662805/t1892261.shtml
[5] Ver capítulo detalhes em PAUTASSO, D. A Nova Rota da Seda e o Corredor Econômico China-Paquistão. In: Tiejun Gu (Org.). Opiniões de Acadêmicos Brasileiros sobre a China. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2019, p. 231-258.
[6] Ver reportagem da Al Jazeera: https://www.aljazeera.com/news/2021/8/24/as-us-exits-afghanistan-china-eyes-1-trillion-in-minerals
[7] Ver reportagem da BBC: https://www.bbc.com/news/world-asia-china-58496867