Publicado
originalmente em 3 de fevereiro de 2001
Sabe a livraria? A sala é logo atrás. Numa escondida sala da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, à
frente de duas estantes de metal, o geógrafo baiano Milton Santos, o mais
respeitado nome da área no Brasil, se mostra tranquilo e feliz. Sorri, oferece
água-de-coco, fala devagar.
Santos vê chegar à livrarias, até o meio do mês, O Brasil:
Território e Sociedade no Início do Século XXI (Record, 480 págs., R$ 45). O
trabalho, também assinado por María Laura Silveira, pesquisadora do CNPq no
Departamento de Geografia da USP, procura analisar as mudanças sociais e
políticas no país – “É incrível quanto o Brasil mudou nos últimos dez
anos”, afirma – a partir da história da ocupação do território.
O livro traz também 150 páginas de estudos de caso, que
analisam da rede rodoviária aos nexos entre a atividade publicitária e o
território, de autoria de alunos e de doutores formados em cursos de
pós-graduação. Combina, portanto, interpretação ampla do país com estudos
específicos que ajudam a testá-la e ilustrá-la.
Segundo Santos, trata-se de um balanço, mas, como deveria
ser com todo trabalho acadêmico, também pode ser lido como uma prospecção,
sobre os caminhos que estão sendo abertos pelo uso do território.
Poder
O geógrafo, que recebeu o Prêmio Multicultural Estadão no
ano passado, defende que São Paulo, apesar do esvaziamento industrial (pelo
menos em termos proporcionais), em parte promovido pela guerra fiscal, é cada
vez mais influente na política e na economia nacional, por concentrar a
informação e o capital financeiro. “Desde que cheguei a São Paulo, nos
anos 80, digo que a indústria não era mais sinônimo de poder, mas tive pouca
aceitação; São Paulo se queixa de perder algumas indústrias, mas está cada vez
mais poderosa”, diz, embora esse fenômeno não lhe agrade de todo.
Algo bastante importante que está ocorrendo no país,
acredita, é a conclusão de um processo de urbanização. E, para Santos, como
apenas o Nordeste (um dos quatro Brasis que identifica – os outros são a Região
Concentrada, formada pelos Estados do Sul e do Sudeste, o Centro-Oeste e a
Amazônia) ainda mantém uma população rural representativa, sua urbanização vai,
necessariamente mudar a vida política da região, “atualmente muito
atrasada”: “A urbanização do Nordeste será revolucionária.”
Santos diz que “lugar de pobre é na cidade” –
pois, na cidade, o acesso a educação, saúde e, principalmente, informação é
facilitado. Mesmo que a metrópole, seja com Pitta, seja com Marta, continue
ingovernável. “Na cidade é que eles podem fazer política.” Mas a
urbanização, para ele, tem outro aspecto positivo: o futuro é socialista,
argumenta, porque a cidade é socialista.
Campo e cidade
A tendência, defende Santos, é a redução das diferenças
entre os homens do campo e os da cidade. Na realidade, muitos deles seriam as
mesmas pessoas. “No interior de São Paulo, a produção agrícola é resultado
do trabalho dos que moram nas cidades; é uma população agrícola e urbana.”
Ainda destruindo velhas certezas, Santos acredita já ser
evidente que não são as “classes médias” as que formam opinião. Os
pobres, com o contato que as cidades oferecem, são os verdadeiros formadores da
própria opinião.
O geógrafo sustenta que a ocupação e a movimentação no
território (em dado momento, defende uma geografia do movimento) é fundamental
para entender a sua política. “Espero que os cientistas políticos passem a
integrar a geografia em suas análises.” Entre outros motivos, porque a
globalização teria tornado o território nacional mais poroso, mas igualmente
necessário.
“O Banco Central funciona como uma espécie de cônsul do
capital internacional, mas suas regras, para serem cumpridas, precisam de uma
definição espacial, que é o território.”
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Publicado em 1 de junho 2001, no jornal O Estado de S.Paulo:
‘A cidade já é socialista’, afirmava o geógrafo
No fim de janeiro deste ano, o professor Milton Santos
estava lançando, em coautoria com a pesquisadora Maria Laura Silveira, um
trabalho de anos de pesquisa: Brasil:
Território e Sociedade no Início do Século XXI (Record, 480 págs.) procura
analisar as mudanças sociais e políticas no País a partir da relação entre
sociedade e território.
Tranquilo e bem-humorado, concedeu uma série de entrevistas,
como se a doença não lhe tirasse força alguma. Em uma delas, ao Estado, já
parcialmente publicada pelo Caderno 2, Santos falou sobre como nem sempre as
mudanças na sociedade são percebidas pela universidade e sobre a permanência
dos conceitos de Estado e território.
Santos defende que a globalização, embora tenha tirado
empregos e indústrias de São Paulo, tornou a cidade mais poderosa, quando
comparada com outros grandes centros do País. “É uma pena que os paulistas
possam se sentir mais poderosos, mas é verdade.”
Leia abaixo alguns trechos dessa entrevista.
Campo e cidade
“As pequenas propriedades, com o desenvolvimento
econômico do campo, só são viáveis com cooperativas fortes. Exigir que as
pessoas fiquem no campo é uma crueldade. Como se pode pedir a um sujeito que
fique no interior? Acho que é falta de caridade até. Se você se isola, você não
tem saúde, escola, informação. Tem a que é dada pelo rádio, pela televisão, não
aquela do contato, do intercâmbio direto, que é o que enriquece e que é a força
da cidade.”
São Paulo
“São Paulo concentrou, na fase da globalização, o
instrumento de poder. São Paulo deixou de produzir tantos empregos, passou a
ser ‘mais pobre’. Mas, do ponto de vista de sua força dentro do território,
frente ao resto do território, frente às outras cidades, quem dispõe de poder
de comando da vida econômica é São Paulo.”
Cegueira intelectual
“O problema da prospecção é que você tem de escolher
bem os seus materiais de análise. Eu poderia continuar dizendo, como a maior
parte dos meus colegas continua dizendo, que São Paulo é forte por causa da
indústria. Já escrevia, em 1983, que não era. Não tive nenhuma aceitação. As
teses não só daqui, mas de outras cidades, continuavam repetindo a mesma coisa.
É essa cegueira histórica, que não permite ver a dinâmica histórica.”
Dinâmica territorial
“Num território,
quando ele é analisado a partir da dinâmica social, ele é perceptível pelas
coisas que são fixas e pelas que se movimentam. As coisas que se movimentam é
que dão valor às que são fixas. Para entender a vida no território ou à vida
nacional, é preciso jogar com os dois. Essa geografia do movimento é
indispensável se eu pretendo produzir um retrato dinâmico. E aí se inclui o
dinheiro: um dos grandes elementos da vida nacional é a mobilidade do dinheiro,
nas suas diversas formas. E ainda assim, quando se compara São Paulo com
qualquer outra cidade, é que São Paulo tem uma maior quantidade de dinheiros
que qualquer outro lugar.”
Estado e território
“Com a globalização, o território ficou poroso, essa
porosidade que se mostra, sobretudo, quando temos a função do dinheiro, que
passeia por sobre a fronteira, e a informação. Não quer dizer que deixou de ter
Estado. Todo mundo sabe que o Banco Central é uma espécie de cônsul do dinheiro
internacional. Não nos consultam em suas decisões, consultam os bancos
internacionais; a finança internacional. Para que as suas decisões sejam
efetivas, elas têm de ter um limite para sua eficácia, que é o território. O
Banco Central brasileiro não governa a vida uruguaia. A ideia de território
fica presente, a ideia de Estado fica presente. A globalização favorece a vida
internacional, mas não mata o Estado.”
Pulverização
“Nas grandes cidades, as desigualdades tendem a
aumentar. Sempre se tem dois tipos de capital numa cidade como São Paulo: o
capital máximo e o capital mínimo. O mínimo é o do ambulante e o máximo é o de
um banco. Hoje, isso aumentou. Há uma superconcentração na ponta dos bancos e
uma superpulverização lá embaixo. Aí você discute como se fosse caso de
polícia: os ambulantes, os perueiros, etc., que são uma coisa normal. Isso tudo
com uma redução de poder político na ponta debaixo e um aumento do poder na
ponta de cima. O resultado é que a cidade não é governável: não adianta
imaginar que Pitta é feio e que Marta vai fazer — são pessoas diferentes,
caráter, etc., mas a história concreta que se está fazendo conduz à
ingovernabilidade.”
Ingovernabilidade
“No caso do Brasil, é de alto a baixo. O coitado tem
de, a cada dia, fazer um discurso diferente do outro. Não lhe falta boa
vontade, mas a impressão é que até lhe falta discurso. Essa é outra constatação
do livro: governar toma-se impossível.”
Socialismo
“A cidade mostra uma outra coisa: que não há solução
fora do socialismo, porque a cidade já é socialista. Quando você entrega a
cidade a algumas grandes empresas, quando um empresa cuida da água e outra
cuida da energia de 16 milhões de habitantes, há uma violência que nunca houve
na história humana. Vamos nos encaminhar para uma forma de organização política
que leve em conta isso. Porque, se se deixar esses atores trabalharem sem
contrapoder, como você vai discutir, pedir que sejam gentis, quando têm de ser
competitivos?”
Soluções
“Os pobres nunca tiveram poder político. Hoje, eles têm
uma cultura sua, e essa cultura é produzida em relação com o território e com a
vida. E é por isso que essa cultura é matriz de uma nova política. Você tem
explosões, manifestações de diversos tipos, ‘desordens’, mas uma busca de sentido.
Não é a Lyonnaise des Eaux que busca
sentido, quem busca sentido são as populações dos lugares. O resultado imediato
é a fratura dentro dos aparelhos dos partidos: todos os partidos são
fraturados, uma parcela que busca soluções ‘corretas’ e outras parcelas que são
da política tradicional.”
Debate
“Está havendo uma formidável mudança política no
Brasil. Eu acho que a nação nunca será suficientemente agradecida a Fernando
Henrique, porque, ele sendo tão incapaz de ter uma posição clara sobre qualquer
coisa, ele abre espaço para o debate, que vai lentamente tomando espaço.”
Políticas públicas
“Toda uma ação indireta dos pobres — até o medo que
eles provocam — é respondida com a polícia ou com a caridade, mas isso pode ser
trocado daqui apouco por uma ação política consequente. Não se vai imaginar que
isso mude de um dia para outro, mas vai-se descobrir uma maneira de isso ir
mudando numa certa direção. Quando se pensa numa cidade como São Paulo, não há jeito.”
Classe média
“Nos costumamos a achar que a classe média é que
pensava. Não é nada disso. A classe média não pode ter ideias, porque ela está
preocupada com o bem-estar. Ela está em mutação também. A universidade está
atrasada, como um todo. Em toda a parte há gente interessante.”
Escolas
“Como a escolarização é feita de modo diferente de
acordo como lugar que se tem na sociedade, os pobres vão exigir também, porque
se aumenta a escolarização, mas não a qualidade. Então, a educação é fonte de
desigualdade, mas ela também instrumentaliza para entendê-la um pouco melhor e
para mudar. Na comunidade negra, por exemplo: o número de negros que passa pela
universidade aumentou. No meu tempo, era muito mais difícil, mas também mais
fácil: porque era difícil entrar, mas, quando você entrava, sabia que teria uma
condição razoável para o resto da vida. Hoje, não há garantia de nada.”