Escrevo essa crônica sobre o Paulinho da Viola.
Um dia foi noticiado que as abelhas estavam entrando em extinção por causa de algum colapso ecoambiental que minha compreensão não é capaz de ensejar. Apenas lamentei porque costumava gostar das abelhas quando criança, sem alimentar aquele sentimento temerário relacionado as suas ferroadas dolorosíssimas, porque me encantava saber que ao enfiarem o seu ferrão, qual uma estaca no móvel cardíaco, eram condenadas à morte imediata.
Suas entranhas escorrem para fora do exoesqueleto de quitina, num mecanismo que teria similaridade com, por exemplo, um soldado de guerra medieval que, ao estocar o inimigo com sua espada, oferece com honradez o peito à própria morte.
Creio, portanto, que são uns bichos um tanto corajosos e me inspiram profundamente. Além disso, tem toda a coisa da polinização, difícil de explicar, que contém a beleza da sexualidade das flores e sua perpetuação.
Pois estava no meio da cidade, cultivando o pequeno canteiro de plantas, quando me dei conta que algumas abelhas começaram a se aproximar, discretamente num primeiro momento, como que para ver qual novidade se anunciara na região. Não sei onde estavam antes, posto que tudo em volta é carro e avenida, mas aconteceu. Foram chamadas talvez por algum feromônio ou estrutura de código Morse. Sei que agora há abelhas todos os dias na porta protegendo minha residência dos traumas da guerra.
Mas aqui não gostaria de falar das abelhas propriamente ditas e sim do que elas significam, talvez para conseguir lograr analogias com os sambas do Paulinho da Viola, com o ânimo que me proporcionam pela sensibilidade das letras, dos arranjos, pela linguagem toda especial que é de longe reconhecível como índice de um grande compositor afiliado ao sonho do samba.
Suas músicas, sobretudo aquelas que se aproximam de temas filosóficos como o mistério do tempo, do amor, da amizade, convocam ao retorno à vida um batalhão de memórias e sentimentos que pareciam mortos, do mesmo modo como se dá o fenômeno da paixão entre uma abelha que surge das cinzas e o pezinho de manjericão florindo.
É na grandiosidade do mínimo que o efeito acontece. Como se deus habitasse mesmo os detalhes.
Platão disse que a filosofia era um espantar-se com o simples, torná-lo uma questão, especular sobre as operações do impalpável pensamento, aquilo que talvez seja a indivisível partícula da engrenagem que funciona sem finalidade objetiva. Paulinho da Viola entendeu e não guardou o ouro para si recusando-se a alimentar o fundo vazio de um currículo encarcerado na universidade. Pelo contrário: fez samba, a meu ver a linguagem mais democrática em seu valor estético e político.
Tenho ouvido Paulinho nesse feriado de consciências negras, talvez para afugentar a oscilação do clima no entreouvido do que diz a chuva e do que diz o sol.
Como exercício de silêncios, esses que Paulinho da Viola evoca para ver as meninas e compor um samba, a seu modo, sobre o infinito, procurei metáforas que dessem conta do que se origina em mim quando me dedico à escuta de sua musicalidade. Cheguei ao zumbido quase calado das abelhas, sua presença na porta de minha casa, insistindo solenemente apesar de toda morte, no voo.
Fiz esse modesto canteiro, sem saber, a fim de chamá-las para perto. Suspeito que, nesse jogo errático de tradução dos efeitos do samba em mim, Paulinho da Viola seja talvez a terra onde plantei meus ais e meu emudecimento para trazer de volta a pulsão dos dias em todas as suas nuances melancólicas e de alegria. A terra, o solo, fontes de renascimento. A areia. Sim. A areia. A areia semeada é um chamamento para o mar. Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar.
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