Incomodou tremendamente o boom de funkeiros, bastante marcante no início dos anos 2000, com projetos como Furacão 2000, por exemplo, no qual vários cantores e cantoras de funk se apresentavam em uma arena, constituindo assim um possível celeiro de vozes interessantes à expansão de um mercado que se anunciava fértil e vigoroso. O funk se tornou a grande mina de ouro do mercado na época, não tanto pela matéria musical, mas por arregimentar junto ao ritmo repetitivo do “pancadão” os elementos que mais fortaleceram a música de massa nos anos 90, ou seja, corpos – na maioria negros – quase desnudos, em danças sensuais que ensinaram muitas crianças a ralarem na boquinha da garrafa, inocentemente, em horários voltados, segundo a grade de programação televisiva, para o deleite familiar.
Curiosamente, os aspectos físicos e de intensa sensualização dos corpos, nesse período, tornaram-se muito mais relevantes do que a linguagem do pagode e do axé que consubstanciavam o produto cultural a ser vendido. Diante dessa constatação, não podemos nos esquivar da existência das próteses racistas que se adequavam à realidade do momento: a maioria das dançarinas seminuas dos grupos dos anos 90 eram negras e, ainda que muitas não se vissem desse modo, as tentativas de amenização da própria negritude verificadas nos cabelos alisados, pintados de loiro e nas cirurgias para remodelar o nariz, apontavam que caucasianas definitivamente elas não eram.
Esse quadro criou economias estrondosas para a indústria musical, mas logo foi abalado pelo fenômeno seguinte, nos anos 2000, como se espera em todo processo que envolve a produção humana em níveis de consumo e descarte imediatos difundidos em grande escala. Os sucessos de ontem foram rapidamente esquecidos e novos projetos artísticos se tornaram a febre do momento. Os empresários de grandes gravadoras perceberam-se no centro de uma problemática técnica e econômica, com o fim da mídia física era necessário compor outros recursos para que seus artistas continuassem produzindo lucro. Além disso, a cena de músicos e produtores independentes tomou forma e sua consolidação levou à bancarrota várias empresas grandes de gravação. Algo precisava ser feito, de tal sorte que não parece uma coincidência que nesse contexto de transição dos modos de produção na indústria musical e do auge da democratização da produção de imagens, surjam personas como Anitta – uma mistura do movimento funkeiro das favelas do Rio de Janeiro e da hiperglobalização da cultura pop/popular mediada pela internet.
Em seu mais recente videoclipe, Girl From Rio, lançado na última semana de abril, Anitta combina esses dois territórios, o Rio de Janeiro e a virtualidade da cultura pop, para confrontar um antiga ideia de brasilidade cunhada pelo olhar norte-americano sobre o Brasil: o do paraíso natural com suas dóceis jovens praieiras abençoadas pelo redentor abraço de Cristo. Na breve narrativa do clipe, Anitta investe mais uma vez em curvas sinuosas e na afirmação da sensualidade, dessa vez como provocação, em uma operação que soa diferente dos materiais anteriores exatamente por sublinhar afirmativamente a objetificação dos corpos expostos e das situações libidinosas, tirando-os do lugar de normalidade em que haviam sido encaixados, também por intenção comercial, nos idos dos anos 90.
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A canção de Anitta mescla a famosa Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes – o produto musical brasileiro mais ouvido em todo o mundo até o advento da internet -, e um trap music, subgênero do rap. Em seus versos a cantora entoa uma letra simples apresentando sua versão das garotas do Rio:
“Garotas gostosas de onde eu venho
Nós não parecemos modelos
Linhas bronzeadas, grandes curvas
E a energia brilha
Você vai se apaixonar”
Em inglês, obviamente, posto que dessa vez o empreendimento de Larissa de Macedo Machado – a empresária, proprietária e intérprete de Anitta – tem por alvo a visibilidade e o mercado do pop norte-americano. Na próxima estrofe, a cantora nos diz: “Deixa eu te contar sobre um Rio diferente” e atua em situações alternadas entre uma forma pin-up que remonta a ideia de boas vindas ao contexto carioca, projetada como efeito colateral da internacionalização da Bossa Nova nos anos 60, e a forma popular das mulheres, majoritariamente negras mais uma vez, em seu espaço de lazer suburbano, o Piscinão de Ramos. A relação é contrastiva não apenas em seu apelo imagético, mas também por seu discurso político; a saber, o Parque Ambiental da Praia de Ramos Carlos de Oliveira Dicró, conhecido popularmente como Piscinão de Ramos, é uma praia artificial que foi assentada no bairro da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, entre os anos 2000 e 2001 no governo de Anthony Garotinho. Na época, um debate acirrado moveu temas como segregação econômica e racial e a garantia do direito à cidade para as populações favelizadas e das regiões afastadas do centro urbano. A discussão sobre o acesso às praias do Rio de Janeiro é antiga e revela uma frágil noção de democratização do espaço público. Para muitos moradores ricos da zona Sul na qual, segundo estimativas do mercado imobiliário localiza-se o metro quadrado mais caro do Brasil, o convívio com pessoas negras e pobres em ambientes de lazer é uma verdadeira afronta, por isso é bom deixá-los em seus piscinões e demais limites territoriais.
O clipe de Anitta apresenta essa dualidade com um erotismo incessante e assombrosamente vendável. Através dos poucos minutos do filmete somos guiados para dois Rios de Janeiro, uma única cidade cortada com sanguinolência ao meio pela desigualdade social. Anitta parece assumir, talvez pela primeira vez na história da canção carioca internacionalizada, a necessidade da cisão estética correspondente à cisão socioeconômica. Anitta, tão comercial quando corrosiva, consegue com Girl From Rio problematizar os antigos rótulos elitistas da Cidade Maravilhosa, pintada em tons pastéis e cujo convite ao turismo sexual era encoberto pela sofisticação das síncopas bossanovísticas.
Em um momento histórico em que o artista já nasce como mercadoria, Larissa de Macedo Machado soa como um fenômeno inédito, não por sua música que, pelo contrário, repete fórmulas previsíveis nos Estados Unidos e em outras bases mundiais do pop (como Austrália, Nova Zelândia e Inglaterra), mas por ser a expressão de um modo de produção que certamente há de caracterizar a segunda década dos anos 2000, isso é, aquele em que a empresa e o artista, amalgamados em um mesmo indivíduo, reconfiguram os sentidos da cultura de massas, aprofundando a complexidade dos estudos sobre o assunto. A arguta Larissa tomou para si os meios de produção de Anitta, num golpe inteligente e ágil, porque entendeu o funcionamento da grande engrenagem do pop e do mercado da música comercial. A empresária/artista ganha tempo antes de seu previsível esmagamento, lançando dezenas de músicas por ano, de modo a alimentar seu nome na história do pop brasileiro como a artista, de origem suburbana, negra e pobre, que desvendou habilmente o caminho das pedras reservado anteriormente aos grandes magnatas de posto adquirido por direito divino, em sua hereditariedade branca e obscenamente abastada. Anitta descortinou o fetiche, cirurgicamente, feito abrisse ao meio a barriga do gigante para entender seus sistemas, sua pulsação, sua estrutura. Não é necessariamente um advento revolucionário ou emancipador, mas Anitta parece nos dizer algo muito refinado e importante sobre o processo de mercantilização da arte em nosso tempo, e por essa razão é bom que nos detenhamos em escutá-la.